Barreto acrescenta que, objetivando evitar a multiplicação de processos, os tribunais brasileiros criaram então uma "jurisprudência defensiva", ora para negar indenizações por danos morais ora para reduzir seu valor, de modo a desestimular novas ações. O autor faz a distinção da jurisprudência defensiva processual, centrada num exame formal rigoroso dos requisitos de admissibilidade dos recursos, da jurisprudência defensiva material, focada na rejeição do mérito das ações ou na redução dos valores das reparações.
Nesse contexto surgiu a chamada tese do "mero aborrecimento", que fundamenta a jurisprudência defensiva material que pode ser resumida no REsp 844.736 de 2009 do Superior Tribunal de Justiça:
"(...) Segundo a doutrina pátria 'só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo' (...)".
Esse entendimento reverbera um conceito já ultrapassado de dano moral, cujo grande expoente no Brasil é o professor Sergio Cavalieri Filho. O autor outrora defendia que, se não fosse essa a compreensão do instituto, o dano moral acabaria banalizado, dando ensejo a ações judiciais "em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos" da vida [2].
Embora já esteja superado pela doutrina mais recente e pelo próprio autor que atualizou o seu entendimento, tal conceito anacrônico continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro. Nesse sentido, Fernando Noronha adverte, até mesmo, que existe uma "tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais (...) presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali" [3].
Em face dessa situação, Francisco Amaral [4] explica que dano extrapatrimonial é aquele que decorre da lesão a bem jurídico que não integra o patrimônio da pessoa, sendo no Brasil chamado de "dano moral". Paulo de Tarso Sanseverino [5] reforça que no Direito pátrio, à exceção do dano estético que adquiriu relativa autonomia, os prejuízos sem conteúdo econômico têm sido abrangidos pela "denominação genérica de dano moral".
Lançando luz sobre a problemática, Lucas Barroso e Eini Dias [6] esclarecem que, em sentido estrito, o dano moral é sinônimo do dano anímico, configurando-se na lesão que causa dor ou sofrimento anímico sem provocar um estado patológico no espírito. Os autores, entretanto, distinguem-no do dano psíquico que, no seu entender, implica o desenvolvimento de transtornos psíquicos de ordem patológica, sendo o resultado de uma lesão à integridade psicofísica da pessoa. Mesmo nas situações em que o dano moral (anímico) provoca uma patologia psíquica, não se pode confundir o dano anímico com o dano psíquico. E concluem que, apesar de a expressão "danos morais" ser normalmente utilizada para designar a lesão aos direitos extrapatrimoniais, os danos morais em sentido estrito apenas alcançam os denominados danos anímicos, não cabendo, portanto, reduzir a ideia da reparação extrapatrimonial exclusivamente à figura desse dano moral tradicional.
Em obra recente, Flávio Tartuce [7] salienta que, atualmente, há duas correntes doutrinárias sobre o dano moral. A primeira, que, segundo o autor, é majoritária e à qual ele se filia, "relaciona os danos morais às lesões aos direitos da personalidade", ao passo que a segunda vê "o dano moral como lesão à cláusula geral de tutela da pessoa humana".
A 4ª Turma do STJ, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, proferiu decisão emblemática consagrando as duas correntes doutrinárias hodiernas do dano moral, inclusive sua desvinculação de eventuais consequências emocionais da lesão. O julgamento unânime ocorreu em 17/03/2015 no REsp 1.245.550, nestas palavras: "A atual Constituição Federal deu ao homem lugar de destaque entre suas previsões. Realçou seus direitos e fez deles o fio condutor de todos os ramos jurídicos. A dignidade humana pode ser considerada, assim, um direito constitucional subjetivo, essência de todos os direitos personalíssimos e o ataque àquele direito é o que se convencionou chamar dano moral".
Portanto, dano moral é todo prejuízo que o sujeito de direito vem a sofrer por meio de violação a bem jurídico específico. É toda ofensa aos valores da pessoa humana, capaz de atingir os componentes da personalidade e do prestígio social.
O dano moral não se revela na dor, no padecimento, que são, na verdade, sua consequência, seu resultado. O dano é fato que antecede os sentimentos de aflição e angústia experimentados pela vítima, não estando necessariamente vinculado a alguma reação psíquica da vítima.
Em situações nas quais a vítima não é passível de detrimento anímico, como ocorre com doentes mentais, a configuração do dano moral é absoluta e perfeitamente possível, tendo em vista que, como ser humano, aquelas pessoas são igualmente detentoras de um conjunto de bens integrantes da personalidade.
Francisco Amaral [8] sintetiza a melhor doutrina sustentando que "o direito brasileiro considera dano moral o que decorre da lesão de bem jurídico não patrimonial, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade, os direitos políticos e sociais, e os direitos ou situações jurídicas de família". Segundo o autor, "o dano moral ou extrapatrimonial compreende, portanto, o dano resultante da lesão de direitos extrapatrimoniais da pessoa, como são os direitos subjetivos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e também direito à saúde, este um direito social, e ainda os direitos políticos, sociais e de família".
A fim de compatibilizar o entendimento doutrinário-jurisprudencial anterior com a necessidade de se conferir efetividade ao princípio da reparação integral, é preciso que se reconheçam novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa e, ao mesmo tempo, que se permita a reparação autônoma de mais de uma espécie deles oriunda do mesmo evento danoso [9]. Desse modo os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados no Brasil de "danos morais", podem ser assim identificados e classificados com base no bem jurídico lesado: dano moral lato sensu e dano moral stricto sensu.
O dano moral lato sensu, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, é o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade, ao passo que o dano moral stricto sensu, enquanto espécie de dano extrapatrimonial que corresponde ao dano moral lato sensu, é o prejuízo não econômico que decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa — cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento.
Ao estudar a problemática na "Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor" [10] — que identificou e valorizou o tempo do consumidor como um bem jurídico —, percebi que não se sustentava a compreensão jurisprudencial de que a via crucis enfrentada pelo consumidor, diante de um problema de consumo criado pelo próprio fornecedor, representaria "mero aborrecimento", e não algum dano indenizável.
O substantivo "aborrecimento" traduz um sentimento negativo qualificado pelo adjetivo "mero", que significa simples, comum, trivial. Em outras palavras, a jurisprudência baseada na tese do "mero aborrecimento" está implicitamente afirmando que, em determinada situação, houve lesão à integridade psicofísica de alguém apta a gerar um sentimento negativo ("aborrecimento"). Porém, segundo se infere dessa mesma jurisprudência, tal sentimento é trivial ou sem importância ("mero"), portanto incapaz de romper o equilíbrio psicológico da pessoa e, consequentemente, de configurar o dano moral reparável.
Com efeito, essa jurisprudência tradicional revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era essencialmente a dor, o sofrimento, o abalo psíquico, e se tornou a lesão a qualquer bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O segundo (equívoco) é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar — como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar. O terceiro (equívoco) é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte, o lógico é concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu compensável.
Ocorre que o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar. Logo um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial pela alteração prejudicial do cotidiano e do projeto de vida do consumidor [11].
Com a disseminação da nova "Teoria" a partir de 2012, os tribunais brasileiros progressivamente passaram a adotá-la e a aplicá-la, iniciando assim um processo de gradual transformação daquela jurisprudência lastreada na tese do "mero aborrecimento". Até então e em grande medida, tal jurisprudência defensiva não reconhecia a existência de danos morais (lato sensu) em situações em que eles estavam claramente presentes, sob o argumento de ter ocorrido um "mero aborrecimento" do cotidiano no caso concreto.
O ápice da alteração da jurisprudência em análise ocorreu em 17/12/2018, quando o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) cancelou, por unanimidade de votos, após provocação da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ), o enunciado da Súmula 75 que havia sido criada em 2004 e ficara conhecida como a "súmula do mero aborrecimento". Tanto o pedido da OAB-RJ quanto a decisão do TJ-RJ foram fundamentados na "Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor" [12].
A referida decisão ocorreu no Processo Administrativo 0056716-18.2018.8.19.0000, cujo acórdão relatado pelo desembargador Mauro Pereira Martins consagrou o seguinte entendimento em sua ementa: "Julgados desta Corte de Justiça que, desde os idos de 2009, trazem dentre os direitos da personalidade o tempo do contratante, que não pode ser desperdiçado inutilmente, tomando por base a moderna Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor. Súmula que não mais se coaduna com o entendimento adotado por este Sodalício".
Em resumo, o conceito de dano moral ampliou-se ao longo dos anos, partindo da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade — como o tempo da pessoa humana. Essa ampliação conceitual vem permitindo o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa — como o dano temporal, o dano existencial —, bem como a reparação autônoma de mais de uma espécie deles originária do mesmo evento danoso.
A "Teoria do Desvio Produtivo" promoveu a ressignificação e a valorização do tempo vital do consumidor — elevando-o à categoria de um bem jurídico —, vem possibilitando a crescente superação da jurisprudência baseada na tese do "mero aborrecimento" — que fora construída sobre bases equivocadas —, contribuiu para a ampliação do conceito de dano moral — apontando esse tempo como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado — e ensejou o surgimento de uma nova jurisprudência brasileira — a do "desvio produtivo do consumidor".
Conforme pesquisa quantitativa de jurisprudência que realizei em 15/6/2021, até então a expressão exata e inequívoca "desvio produtivo" já havia sido citada em 19.827 acórdãos dos 27 tribunais estaduais e do DF, em 92 acórdãos dos cinco tribunais regionais federais, em 86 decisões monocráticas do STJ e no REsp 1.737.412 da sua 3ª Turma. A tese consumerista também já foi aplicada, por analogia, ao Direito Administrativo pelo TJ-SP e pelo TRF-2, bem como ao Direito do Trabalho pelo TRT-17, cuja utilização na esfera juslaboral foi posteriormente confirmada pelo TST [13].
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[1] BARRETO, Miguel. A indústria do mero aborrecimento. 2ª ed. Juiz de Fora: Editar, 2016. p. 27-45.
[2] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. rev. e ampl. 3ª reimpr. São Paulo: Atlas, 2009. p. 84.
[3] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.
[4] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10ª ed. rev. e modif. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 956-957.
[5] SANSEVERINO, Paulo de T. Princípio da reparação integral: indenização no código civil. 1ª ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 189.
[6] BARROSO, Lucas A.; DIAS, Eini R. O dano psíquico nas relações civis e de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 94, 2014. passim.
[7] TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 427.
[8] AMARAL, 2018, p. 957.
[9] BARROSO; DIAS, 2014, p. 93-94.
[10] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed. Vitória: Edição do Autor, 2017. passim.
[11] ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, v. 6, nº 24, São Paulo, RT, out.-dez. 2005. passim.
[12] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-17/orgao-especial-tj-rio-cancela-sumula-mero-aborrecimento. Acesso em: 09/06/2021.
[13] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-03/tst-confirma-aplicacao-teoria-desvio-produtivo. Acesso em: 09-06-2021.
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Marcos Dessaune é advogado, autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor e membro do instituto Brasilcon e da Comissão Nacional de Defesa do Consumidor do CFOAB.
Fonte: Conjur
Excelente artigo.
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