Câmara muda lei do banco de DNA, e peritos veem risco a apuração de estupro

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bit.ly/3rRxaTt | A Associação dos Peritos Criminais Federais vê com preocupação a decisão da Câmara dos Deputados de incluir de volta à lei anticrime um artigo que desobriga condenados por alguns crimes hediondos a ceder material genético. Para a entidade, as medidas dificultam a investigação e a condenação de crimes, como homicídios e estupros.

Já na avaliação do criminalista Gustavo Badaró, a maioria das mudanças é positiva por impor limites à coleta de DNA. O texto ainda vai ser analisado pelo Senado, sem previsão de data.

A entidade que representa os peritos enviou uma nota técnica à direção da Polícia Federal e a alguns senadores pedindo que os quatro vetos de Jair Bolsonaro, derrubados pelos deputados, sejam mantidos na lei.

O banco de DNA foi criado em 2013, ainda no governo de Dilma Rousseff (PT), mas ganhou um reforço na gestão de Bolsonaro, quando seu cadastro saltou de 20 mil para 100 mil perfis — aumento creditado ao ex-ministro Sergio Moro.

O sistema permite que policiais comparem vestígios de cenas de crimes, como manchas de sangue, com o DNA de presos condenados que está registrado no banco. A confirmação pode indicar o verdadeiro culpado de um crime e também mostrar que uma pessoa acusada é inocente.

"Os dispositivos vetados em análise representariam retrocesso aos esforços de combate à criminalidade por meio da ferramenta dos perfis genéticos, em especial em seus bancos de dados"

Marcos Camargo, presidente da associação de peritos.

Os artigos "ressuscitados" pela Câmara nesta semana incluem a proibição de busca familiar, quando são localizadas informações de parentes de vítimas e criminosos. De acordo com o presidente da entidade, isso ajuda na solução de crimes, como o de estupro.

Há casos de estupro nos quais a mulher demora dias ou semanas para procurar ajuda na polícia ou nos hospitais. Com isso, o sêmen do criminoso não está mais no corpo da vítima, mas é possível identificá-lo em caso de gestação iniciada.

"Utilizada em muitos países, é a busca familiar simples para identificar o autor de crime de estupro na hipótese do delito resultar em gravidez, com base no material biológico do feto ou do bebê", escreveu Camargo em nota técnica.

A mesma técnica facilita a busca de pessoas desaparecidas, afirmou ele. O presidente da associação de peritos entende que, quanto maior o tamanho do banco de dados, melhor será a possibilidade de uso da ferramenta na solução de crimes.

Limites precisam ser respeitados, diz professor

Para o criminalista Gustavo Badaró, que é doutor em direito processual penal e professor da USP (Universidade de São Paulo, a investigação deve ser proporcional ao crime. Por isso, é preciso limitar a alimentação e uso do banco de dados.

Segundo ele, não seria possível usar de todos os meios disponíveis numa apuração quando se trata de uma informação tão íntima e pessoal, como os dados de DNA de uma pessoa.

"Existem limites que precisam ser respeitados na busca da verdade"

Gustavo Badaró, doutor em direito

"O Estado ter o código genético do cidadão é uma medida altamente invasiva. O código genético de cada pessoa é sensível, portanto, deve haver uma justificativa razoável para que se possa ter acesso a esse código genético de qualquer cidadão", disse.

Câmara barrou ingresso de todos os crimes hediondos

Um dos vetos derrubados pelos deputados retira os condenados por crimes hediondos do rol de pessoas que são obrigadas a ter seu DNA coletado quando são condenadas.

Para Badaró, a limitação é positiva porque impedirá que pessoas sentenciadas por delitos como tráfico de armas, falsificação de remédios e furto com explosivos sejam obrigadas a fornecer material genético.

Ele afirma que crimes como estes não têm relação com o tema. "Quem é identificado com exame de DNA por tráfico de armas?", questiona o professor.

Os condenados por genocídio e organização criminosa também não seriam mais obrigados a fornecer material genético. "Seria grave retrocesso à sistemática estabelecida do combate à criminalidade por meio da ferramenta dos bancos de perfis genéticos, retirando de sua rede de proteção uma série de delitos de natureza grave", afirma Camargo.

Como funciona a rede de perfis genéticos no Brasil:

  • A Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG) possui bancos de dados estaduais e um nacional
  • Foi criada em 2013, por decreto de Dilma Rousseff
  • Todas as informações são interligadas em rede
  • As consultas são reservadas a alguns policiais
  • As investigações não podem usar informações de fenótipo, como traços físicos, cor de pele, altura e cor de cabelo
  • Até 2019, havia 20 mil perfis
  • Hoje são quase 100 mil perfis
  • O material auxiliou 1.977 investigações desde 2013

Outro veto derrubado pela Câmara ordena que o material biológico do preso seja descartado e não seja utilizado "para qualquer outro fim".

Em nota, o presidente da associação de peritos afirma que, se o Senado seguir a mesma linha que a Câmara, haverá questionamentos judiciais de perfis genéticos identificados nessas condições. O resultado seria "desestabilizar" possíveis condenações feitas com base nessas informações.

Camargo e o criminalista Badaró concordam, porém, que deve ser mantido o veto à obrigatoriedade de que materiais genéticos só possam ser coletados por peritos oficiais. Para eles, bastam profissionais de saúde para fazer a tarefa.

Técnica também serve para inocentar pessoas

O banco de DNA serve para inocentar pessoas também, como Israel Pacheco, acusado de estupro e que ficou dez anos na cadeia.

Ele estava preso por causa de depoimentos. Mas o exame mostrava que ele não era o criminoso. Pacheco só foi absolvido em 2018, quando o Supremo Tribunal Federal avaliou o caso considerando as provas científicas do processo.

Nos EUA, uma pesquisa da psicóloga forense Alison Redlich identificou que 18% das condenações incorretas que ela analisou "contêm falsos acordos, ou pessoas inocentes assumindo culpa". Os exames de DNA foram as principais ferramentas para desfazer injustiças cometidas mesmo com confissões.

"A principal razão é porque a pessoa acredita que ela será condenada no tribunal e quer conseguir os benefícios do 'plea bargain' [espécie de colaboração premiada nos EUA]", disse ela.

O UOL questionou a Polícia Federal, o Ministério da Justiça e o novo ministro, Anderson Torres, mas não obteve esclarecimentos até a publicação desta reportagem.

Eduardo Militão
Do UOL, em Brasília
Fonte: noticias.uol.com.br

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