O caso boate Kiss e o uso de regras penais e processuais penais à la carte

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Há 20 dias, a quase totalidade da comunidade jurídica e parte significativa de leigos curiosos estão envolvidos com os desdobramentos do julgamento do caso da boate Kiss. Na sociedade informacional em que vivemos, um julgamento transmitido pelas redes gera um engajamento nunca visto em outros processos.

Não apenas sobre teses e provas apresentadas, mas também sobre postura, comportamento. É um escrutínio em tempo real a que todos estão, inapelavelmente, submetidos.

Em condições normais, costumo ser contrário a exploração midiática de processos. Penso que as vaidades envolvidas acabam por ofuscar a essência do julgamento. Não raras vezes, pessoas absolvidas acabam condenadas por uma opinião pública sedenta por respostas e, sobretudo, por resultados. A resposta só é satisfatória quando dada no sentido que se a buscava.

Entretanto, no caso da Boate Kiss, o que houve foi rigorosamente o contrário. Desde o primeiro dia atuando no processo, o que percebemos foi que a opinião pública, em homenagem ao luto coletivo que se abateu sobre todos — especialmente sobre Santa Maria —, não estava interessada na versão dos acusados. Era como se o direito de defesa fosse uma afronta à dor de pais, familiares e amigos das vítimas.

Desenvolvemos o nosso trabalho silencioso, dentro do processo. Denunciamos a inadequação do indiciamento por dolo eventual em concurso formal impróprio (como pode quem "não quer" o resultado ter "desígnios autônomos"); apontamos o absurdo das qualificadoras imputadas na denúncia. Sustentamos que o Superior Tribunal de Justiça, ao restabelecer a pronúncia, em um extenso voto de mais de 120 laudas, estava negando a essência de sua Súmula 7, que tanto impede o trânsito aos recursos defensivos.

Tudo, absolutamente tudo, sem a plena compreensão da opinião pública, para quem éramos um empecilho para o desejo da sociedade, em geral, e dos familiares de vítimas, em particular.

Com o início do julgamento, as coisas passaram a ser ditas com todas as suas letras. Testemunhas se sentaram à frente do magistrado e disseram, por exemplo, como o engenheiro que desenvolveu o projeto acústico na boate, que a espuma não era indicada para o tratamento pretendido, mas jamais por sua suposta inflamabilidade; ou o Promotor de Justiça que disse que não suspeitou de nada irregular de uma casa com uma única porta, sem saídas de emergência, com barras para organizar o fluxo porque havia alvarás. E, à medida que o tempo passava, o público atento começou a se questionar: mas se os poderes públicos podem crer nos alvarás, por que os sócios não?

Ao final de tudo, a condenação. Democratas, por essência; além de entusiastas do Tribunal do Júri, jamais ousaríamos condená-lo por uma decisão com a qual não concordássemos. Lembramos que, ao longo desses nove anos, o Poder Judiciário teve incontáveis oportunidades de impedir que fossem os réus submetidos a júri, e, em todas elas, ora agiu, ora se omitiu, sempre no caminho menos técnico e mais populista-midiático. Sempre oportuno lembrar a lição do saudoso Evandro Lins e Silva, no Boletim IBCCRIM nº 100, março/2001): "O juiz lava a mão como Pilatos e entrega o acusado (que ele não condenaria) aos azares de um julgamento no Júri, que não deveria ocorrer, pela razão muito simples de que o Tribunal de Jurados só tem competência para julgar os crimes contra a vida quando este existe, há prova de autoria ou participação do réu e não está demonstrada nenhuma excludente ou justificativa".

Terminado o julgamento, iniciou-se uma sucessão de medidas jurídicas, com nítida orientação de satisfação opinião pública. Desde o "dolo eventual intenso", passando pela prisão obrigatória decorrente do artigo 492, inciso I, "e" do Código de Processo Penal, coroado por uma extravagante Suspensão de Liminar e negativa de seguimento de Habeas Corpus, os dois últimos diretamente no Supremo Tribunal Federal.

Uma vez mais, a presunção de inocência encontra-se sob ataque, agora sob o véu da soberania dos vereditos do Tribunal do Júri. A discussão sobre a constitucionalidade da execução provisória da pena nos julgamentos pelo Tribunal do Júri é tão complexa que, por si, já deveria ser interpretada em favor do réu.

Primeiro, porque embora o dispositivo do artigo 492, I, "e" do CPP efetivamente a contemple, a Constituição Federal assegura a presunção de inocência de forma incondicionada.

Em sentido contrário, ainda que goze de alguns entendimentos no âmbito dos Tribunais Superiores, parece-nos equivocada a leitura de que a soberania dos vereditos permitiria turbar a presunção de inocência. Nitidamente, a soberania refere-se ao fato de que o tribunal de apelação não pode reformar o mérito do julgamento proferido pelo Conselho de Sentença, senão apenas o anular para que seja novamente submetido a julgamento (em razão de nulidade ou decisão manifestamente contrária à prova dos autos), ou, ainda, redimensionar a pena.

Vale dizer, a soberania não se sobrepõe à própria ordem jurídica.

E, especificamente no caso Boate Kiss, há diversas nulidades que foram tempestivamente apontadas. Apenas algumas delas, para melhor ilustrar, foram o uso do silêncio dos réus como argumento de autoridade, feito pelo Assistente à Acusação; a inovação acusatória, em réplica, que, tendo acusado um dos réus por condutas comissivas, justificou o Promotor de Justiça, em sua fala derradeira, que a condenação se justificaria pelas teorias da cegueira deliberada e do domínio do fato, nitidamente aplicadas a condutas omissivas; e, ainda, a deficiência na elaboração do quesito relativo ao dolo eventual, o qual não guardou congruência com a descrição do elemento subjetivo descrito na denúncia.

Mas, seguimos.

Ainda, para além de toda a questão jurídico-constitucional envolvida, há argumentos de raiz lógica envolvidos.

Qual a diferença, sob a perspectiva da soberania dos vereditos, entre uma pena de 14 anos e outra de 15 anos? Por que prender imediatamente alguém condenado por homicídio simples com dolo eventual (na fronteira com a culpa), e não o fazer com o latrocínio, ou o estupro? Ou — avança-se — tomemos como exemplo alguém condenado a 14 anos e dez meses, por homicídio simples, e outra pessoa condenada a 15 anos por homicídio qualificado. A culpabilidade do primeiro é bem maior do que a do segundo, tomando-se como referência o afastamento da pena final em relação à pena mínima; e, mesmo assim, a prisão somente incidira no segundo caso.

O que pretendemos dizer é que, quisesse, de fato, dar especial peso à soberania dos vereditos — a nosso juízo de forma inadequada, pelas razões acima —, o Pacote Anticrime não deveria ter estabelecido um patamar de pena a justificar a prisão obrigatória, mas sim fazê-lo de forma indiscriminada. A se permitir a aberração jurídica envolvida passaremos a ter (se já não o temos) dosimetrias de pena construídas artificialmente para se chegar a resultados desejados, autorizadores de prisão obrigatória.

Aliás, não é nada irrazoável a suposição. Todos lembramos dos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri até o ano 2008, em situações em que as penas chegavam muito próximas a 20 anos, mas dificilmente cruzavam a linha que permitia o "protesto por novo júri". Era um malabarismo aritmético-interpretativo para assegurar a pena mais alta possível, sem que fosse assegurado o direito a novo julgamento. Estamos em vias de chancelar o mesmo, só que agora com relação a uma prisão obrigatória.

No caso presente, importante que se diga, a dosimetria de pena, sem qualquer agravante ou majorante, elevou a pena-base de forma extremamente rigorosa, sendo lícito crer que as penas serão revisitas e, invariavelmente, diminuídas nas instâncias recursais. E, se assim ocorrerem, para aquém dos 15 anos, a prisão ora vigente demonstrar-se-á flagrantemente abusiva e ilegal.

Enfim, são muitas questões envolvidas a serem resolvidas monocraticamente em uma Suspensão de Liminar e na negativa de seguimento de um Habeas Corpus.

Justiça se faz cumprindo a Carta Magna, especialmente o devido processo legal e a presunção de inocência. Lembramos sempre do ministro Marco Aurélio, que não cansava de repetir que "no processo penal são os meios que legitimam os fins, jamais o contrário".
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*Bruno Seligman de Menezes é advogado criminalista, professor universitário (UFSM, UFN e Fadisma), mestre em Ciências Criminais e doutorando em Direito pela Universidad de Buenos Aires.
*Mario Luís Lírio Cipriani é advogado criminalista, professor Universitário (Fadisma e AMF) e mestre em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.
Fonte: Conjur

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