Não apenas sobre teses e provas apresentadas, mas também sobre postura, comportamento. É um escrutínio em tempo real a que todos estão, inapelavelmente, submetidos.
Em condições normais, costumo ser contrário a exploração midiática de processos. Penso que as vaidades envolvidas acabam por ofuscar a essência do julgamento. Não raras vezes, pessoas absolvidas acabam condenadas por uma opinião pública sedenta por respostas e, sobretudo, por resultados. A resposta só é satisfatória quando dada no sentido que se a buscava.
Entretanto, no caso da Boate Kiss, o que houve foi rigorosamente o contrário. Desde o primeiro dia atuando no processo, o que percebemos foi que a opinião pública, em homenagem ao luto coletivo que se abateu sobre todos — especialmente sobre Santa Maria —, não estava interessada na versão dos acusados. Era como se o direito de defesa fosse uma afronta à dor de pais, familiares e amigos das vítimas.
Desenvolvemos o nosso trabalho silencioso, dentro do processo. Denunciamos a inadequação do indiciamento por dolo eventual em concurso formal impróprio (como pode quem "não quer" o resultado ter "desígnios autônomos"); apontamos o absurdo das qualificadoras imputadas na denúncia. Sustentamos que o Superior Tribunal de Justiça, ao restabelecer a pronúncia, em um extenso voto de mais de 120 laudas, estava negando a essência de sua Súmula 7, que tanto impede o trânsito aos recursos defensivos.
Tudo, absolutamente tudo, sem a plena compreensão da opinião pública, para quem éramos um empecilho para o desejo da sociedade, em geral, e dos familiares de vítimas, em particular.
Com o início do julgamento, as coisas passaram a ser ditas com todas as suas letras. Testemunhas se sentaram à frente do magistrado e disseram, por exemplo, como o engenheiro que desenvolveu o projeto acústico na boate, que a espuma não era indicada para o tratamento pretendido, mas jamais por sua suposta inflamabilidade; ou o Promotor de Justiça que disse que não suspeitou de nada irregular de uma casa com uma única porta, sem saídas de emergência, com barras para organizar o fluxo porque havia alvarás. E, à medida que o tempo passava, o público atento começou a se questionar: mas se os poderes públicos podem crer nos alvarás, por que os sócios não?
Ao final de tudo, a condenação. Democratas, por essência; além de entusiastas do Tribunal do Júri, jamais ousaríamos condená-lo por uma decisão com a qual não concordássemos. Lembramos que, ao longo desses nove anos, o Poder Judiciário teve incontáveis oportunidades de impedir que fossem os réus submetidos a júri, e, em todas elas, ora agiu, ora se omitiu, sempre no caminho menos técnico e mais populista-midiático. Sempre oportuno lembrar a lição do saudoso Evandro Lins e Silva, no Boletim IBCCRIM nº 100, março/2001): "O juiz lava a mão como Pilatos e entrega o acusado (que ele não condenaria) aos azares de um julgamento no Júri, que não deveria ocorrer, pela razão muito simples de que o Tribunal de Jurados só tem competência para julgar os crimes contra a vida quando este existe, há prova de autoria ou participação do réu e não está demonstrada nenhuma excludente ou justificativa".
Terminado o julgamento, iniciou-se uma sucessão de medidas jurídicas, com nítida orientação de satisfação opinião pública. Desde o "dolo eventual intenso", passando pela prisão obrigatória decorrente do artigo 492, inciso I, "e" do Código de Processo Penal, coroado por uma extravagante Suspensão de Liminar e negativa de seguimento de Habeas Corpus, os dois últimos diretamente no Supremo Tribunal Federal.
Uma vez mais, a presunção de inocência encontra-se sob ataque, agora sob o véu da soberania dos vereditos do Tribunal do Júri. A discussão sobre a constitucionalidade da execução provisória da pena nos julgamentos pelo Tribunal do Júri é tão complexa que, por si, já deveria ser interpretada em favor do réu.
Primeiro, porque embora o dispositivo do artigo 492, I, "e" do CPP efetivamente a contemple, a Constituição Federal assegura a presunção de inocência de forma incondicionada.
Em sentido contrário, ainda que goze de alguns entendimentos no âmbito dos Tribunais Superiores, parece-nos equivocada a leitura de que a soberania dos vereditos permitiria turbar a presunção de inocência. Nitidamente, a soberania refere-se ao fato de que o tribunal de apelação não pode reformar o mérito do julgamento proferido pelo Conselho de Sentença, senão apenas o anular para que seja novamente submetido a julgamento (em razão de nulidade ou decisão manifestamente contrária à prova dos autos), ou, ainda, redimensionar a pena.
Vale dizer, a soberania não se sobrepõe à própria ordem jurídica.
E, especificamente no caso Boate Kiss, há diversas nulidades que foram tempestivamente apontadas. Apenas algumas delas, para melhor ilustrar, foram o uso do silêncio dos réus como argumento de autoridade, feito pelo Assistente à Acusação; a inovação acusatória, em réplica, que, tendo acusado um dos réus por condutas comissivas, justificou o Promotor de Justiça, em sua fala derradeira, que a condenação se justificaria pelas teorias da cegueira deliberada e do domínio do fato, nitidamente aplicadas a condutas omissivas; e, ainda, a deficiência na elaboração do quesito relativo ao dolo eventual, o qual não guardou congruência com a descrição do elemento subjetivo descrito na denúncia.
Mas, seguimos.
Ainda, para além de toda a questão jurídico-constitucional envolvida, há argumentos de raiz lógica envolvidos.
Qual a diferença, sob a perspectiva da soberania dos vereditos, entre uma pena de 14 anos e outra de 15 anos? Por que prender imediatamente alguém condenado por homicídio simples com dolo eventual (na fronteira com a culpa), e não o fazer com o latrocínio, ou o estupro? Ou — avança-se — tomemos como exemplo alguém condenado a 14 anos e dez meses, por homicídio simples, e outra pessoa condenada a 15 anos por homicídio qualificado. A culpabilidade do primeiro é bem maior do que a do segundo, tomando-se como referência o afastamento da pena final em relação à pena mínima; e, mesmo assim, a prisão somente incidira no segundo caso.
O que pretendemos dizer é que, quisesse, de fato, dar especial peso à soberania dos vereditos — a nosso juízo de forma inadequada, pelas razões acima —, o Pacote Anticrime não deveria ter estabelecido um patamar de pena a justificar a prisão obrigatória, mas sim fazê-lo de forma indiscriminada. A se permitir a aberração jurídica envolvida passaremos a ter (se já não o temos) dosimetrias de pena construídas artificialmente para se chegar a resultados desejados, autorizadores de prisão obrigatória.
Aliás, não é nada irrazoável a suposição. Todos lembramos dos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri até o ano 2008, em situações em que as penas chegavam muito próximas a 20 anos, mas dificilmente cruzavam a linha que permitia o "protesto por novo júri". Era um malabarismo aritmético-interpretativo para assegurar a pena mais alta possível, sem que fosse assegurado o direito a novo julgamento. Estamos em vias de chancelar o mesmo, só que agora com relação a uma prisão obrigatória.
No caso presente, importante que se diga, a dosimetria de pena, sem qualquer agravante ou majorante, elevou a pena-base de forma extremamente rigorosa, sendo lícito crer que as penas serão revisitas e, invariavelmente, diminuídas nas instâncias recursais. E, se assim ocorrerem, para aquém dos 15 anos, a prisão ora vigente demonstrar-se-á flagrantemente abusiva e ilegal.
Enfim, são muitas questões envolvidas a serem resolvidas monocraticamente em uma Suspensão de Liminar e na negativa de seguimento de um Habeas Corpus.
Justiça se faz cumprindo a Carta Magna, especialmente o devido processo legal e a presunção de inocência. Lembramos sempre do ministro Marco Aurélio, que não cansava de repetir que "no processo penal são os meios que legitimam os fins, jamais o contrário".
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*Bruno Seligman de Menezes é advogado criminalista, professor universitário (UFSM, UFN e Fadisma), mestre em Ciências Criminais e doutorando em Direito pela Universidad de Buenos Aires.
*Mario Luís Lírio Cipriani é advogado criminalista, professor Universitário (Fadisma e AMF) e mestre em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.
Fonte: Conjur
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