O que há de errado no reconhecimento fotográfico de Michael B. Jordan?

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Nesta sexta-feira (7/1), chegou ao conhecimento da comunidade jurídica o fato de que uma foto do ator americano Michael B. Jordan fora exibida em reconhecimento fotográfico realizado pela Polícia Civil do Ceará, na investigação da chacina da Sapiranga, ocorrida em 25 de dezembro e que deixou cinco mortes em Fortaleza. Isso mesmo, ele constava como o "suspeito dois" no termo de reconhecimento cuja imagem rodou as principais redes sociais e veículos de informação brasileiros. O caso chamou imediata atenção pelo manifesto racismo que representa: nem mesmo uma estrela hollywoodiana — aclamada por seu incontestável talento e pela fundamental representatividade que trouxe à população negra de todo o mundo — foi poupada da generalização espúria que teima em correlacionar a cor de sua pele à criminalidade. Em uma sociedade tradicionalmente racista, não é difícil imaginar as ilações que guiaram a formação do mosaico que acabou resultando no apontamento de mais um jovem negro, dessa vez de 17 anos. Aliás, a diferença etária entre sujeito que foi identificado e Jordan (de 34 anos) serve a revelar que a cor da pele dos suspeitos parece ter sido a única característica a despertar a atenção dos investigadores responsáveis.

Longe dos parâmetros técnicos que a histórica decisão do STJ, no bojo HC 598.886, estabeleceu que também devem ser cumpridos na modalidade fotográfica do reconhecimento, o procedimento concretamente realizado pela policia cearense representa verdadeiro acinte à construção de uma sociedade democrática. O ato, a uma só vez, desrespeita aos direitos de Jordan e afronta o direito da população negra em geral, pois desnuda, mais uma vez, a facilidade com a qual a imagem de uma pessoa negra pode passar a integrar o arquivo policial de suspeitos (como o que aconteceu com Tiago Vianna Gomes e Luis Carlos Justino, por exemplo). O fato de que uma foto de um ator hollywoodiano tenha tido sua imagem exibida em investigação no Ceará escancara a total ausência de critérios para a inclusão/exclusão da fotografia de alguém em álbum de suspeitos bem como a falta de transparência quanto à procedência/origem delas, pois é inegável que a imagem foi conseguida na internet, sem que se impusesse qualquer freio à utilização da imagem daquela pessoa.

O feito atualiza o verso de Elza Soares, que alerta para a realidade nada exagerada de que "a carne negra é a carne mais barata do mercado" e comprova que a presunção de inocência de pessoas negras é deficitária. Se nem mesmo um ator de prestígio internacional, dono de extensa filmografia, está livre de ser exibido em fila de suspeitos, o que se poderá dizer dos negros periféricos brasileiros? As condenações injustas deitam suas raízes nos reconhecimentos irregulares realizados a partir de práticas como esta. É o que sabemos a partir de pesquisas como as realizadas pelo Innocence Project (contexto estadounidense) e Condege (contexto brasileiro), as quais já fizemos referência em diversos textos, como aqui e aqui.

Tudo isso por si só já evidencia o despreparo, ou pior, a indiferença dos policiais do Ceará no tocante a uma atuação pautada pelo novo entendimento conferido à prova de reconhecimento — a partir do qual, inclusive, vem-se trabalhando para atingir reformas legislativas mais profundas e para aperfeiçoar o entendimento jurisprudencial por meio do trabalho de um grupo de especialistas na matéria criado pelo Conselho Nacional de Justiça. Mas como nada é tão ruim que não possa piorar, a Secretaria de Segurança Pública daquele estado, a pretexto de oferecer esclarecimentos capazes de apaziguar as críticas, emitiu nota problemática. Embora o seu inteiro teor não tenha sido divulgado a todos, alguns trechos foram reproduzidos nas inúmeras notícias do ocorrido. Gostaríamos de analisar um trecho específico:

De acordo com a nota:

"A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS-CE) e a Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE) determinaram que esse tipo de procedimento, que não reflete a rotina, não seja mais utilizado em reconhecimentos fotográficos de suspeitos. Serão utilizadas apenas imagens de pessoas com histórico de envolvimento no tipo de crime investigado".

Ou seja: a polícia esclarece que o ocorrido "não reflete a rotina", informa também que determinaram que "esse tipo de procedimento não seja mais utilizado" e finaliza dizendo que "serão utilizadas apenas imagens de pessoas com histórico de envolvimento no tipo de crime investigado". É nessa parte final que se encontra o problema, pois, de forma sofrível a Polícia assume pretender dar continuidade a uma prática altamente desaconselhável desde os avanços alcançados pela psicologia do testemunho ao dizer que vão usar "apenas imagens de suspeitos". As inúmeras pesquisas realizadas pela Psicologia consideram verdadeiro retrocesso a exibição de mais de um suspeito por alinhamento realizado [1].

Dito de maneira mais detalhada, de um ponto de vista preocupado com a minimização de erros, é preciso tomar o cuidado de se desenvolver apenas uma linha investigativa por fila de pessoas apresentada à vítima/testemunha. Isso significa que é urgente assumir o dever de exibir um alinhamento que conte somente com um possível suspeito, este acompanhado com outras pessoas sabidamente inocentes e com ele semelhantes. Esse é o modo, segundo a Psicologia do Testemunho, por meio do qual o sistema mostra-se capaz de extrair o que de mais confiável a memória humana é capaz de oferecer, sem facilitar a injusta condenação de pessoas que apenas sejam parecidas com o culpado. Nesse sentido, mesmo que se queira apresentar mais de um suspeito à mesma vítima/testemunha, sempre há que se ter a precaução de que seja um suspeito por alinhamento, e que, evidentemente, seja este único suspeito sempre acompanhado de outras pessoas sabidamente inocentes e com ele semelhantes.

Tomando essas medidas e fazendo com que a vítima/testemunha saiba que é possível que o culpado não esteja na fila (afinal, a mera intuição dos investigadores de que o suspeito é o culpado, por mais forte que seja, nunca é o bastante para convertê-lo em verdadeiro culpado — é só viés confirmatório), assegura-se a confiabilidade mínima que uma prova dependente da memória precisa apresentar. E precisa apresentar não para que seja considerada conclusiva da culpa caso o reconhecimento seja positivo, mas para que simplesmente seja passível de ser utilizada, se e somente se — frise-se — venha a ser corroborada por outras provas dela independentes que apontem para a mesma hipótese de autoria delitiva. Não é possível ignorar as peças que a memória humana é capaz de pregar em cada um de nós, especialmente em se tratando do contexto de determinação dos fatos para a atribuição de consequências jurídicas gravosas como a perda da liberdade. Logo, erra grosseiramente a Polícia Civil do Ceará ao assumir que pretende continuar a usar apenas imagens de suspeitos, pois o que está a dizer, em outras palavras, é que manterá altas as probabilidades de falsos positivos.

Sabemos que o desafio não é pequeno, nem se restringe à polícia do Ceará, mas o que está no horizonte de nosso sistema jurídico no que refere ao reconhecimento fotográfico é desvendar como produzir uma base de imagens de pessoas sabidamente inocentes para figurarem nos mosaicos que a cada caso concreto precisam ser montados, de modo a prover efetivas condições de que uma pluralidade de pessoas de fato semelhantes entre si seja apresentada à vítima/testemunha. Não há como continuarmos as exibições de um único suspeito (show up), de múltiplos suspeitos (álbum de suspeitos) ou de permanecermos apostando todas as nossas fichas em reconhecimento presencial. Vamos repassar as razões que nos forçam ir adiante:

O show up é inerentemente sugestivo porque a apresentação de um único suspeito facilita que as lacunas criadas pelo decurso do tempo, os traumas do evento, as semelhanças físicas que uma pessoa inocente possa ter com o culpado dêem lugar ao preenchimento daquela recordação com o rosto recém apresentado (edição do conteúdo recordação por sugestionamento na etapa da recuperação).

A solução indicada pela SSPDS-CE para o ocorrido com o ator Michael, é igualmente sugestiva, e quiçá ainda mais arriscada para o sistema de Justiça. Trata-se do álbum de suspeitos, procedimento comum no Brasil e como o próprio nome já indica, sugere à vítima/testemunha que todos os que estão ali são culpados por algum delito, criando a falsa ilusão de que as probabilidades seriam favoráveis a um positivo verdadeiro [2]. É preciso questionar os critérios a partir dos quais uma foto é incluída em um álbum de delegacia — os policiais podem, por exemplo, tirar fotos de jovens negros em abordagens policiais e usar a partir de sua "conveniência investigativa"?. Se respondermos afirmativamente a essa pergunta, será questão de tempo para que um inocente de periferia seja injustamente apontado como culpado por um assalto, não porque as vítimas tenham a intenção de mentir, mas porque todos os humanos estamos sujeitos aos limites da memória, todos somos capazes de cometer erros honestos.

Finalmente, não podemos reduzir o reconhecimento ao reconhecimento pessoal porque, do ponto de vista prático, isso implicaria aquiescer com a formação de alinhamentos de pessoas que, em realidade, não são semelhantes entre si. É ilusório esperar que em cada delegacia haverá sempre uma pluralidade de pessoas à espera da realização de um reconhecimento. A demanda por realização de procedimentos fará que, inevitavelmente, funcionários e passantes, com seus uniformes e roupas distintivas, sejam exibidos junto com o suspeito que vai se destacar como o que, segundo o "faro investigativo", mereceria ser apontado.

Por tudo isso, é urgente colocar em debate os reais desafios da construção de um banco de imagens auditável (procedência da imagem rastreável e legal), padronizado (todas as fotografias com mesma qualidade) e que, assim, seja capaz garantir efetivos contornos à presunção de inocência do cidadão que porventura assuma a condição de suspeito de um delito. O crasso erro da utilização da foto de Michael B. Jordan em um reconhecimento fotográfico não poderá ser abrandado por nota à imprensa que informa que a nefasta prática, conhecida como "álbum de suspeitos", é que será perseguida por uma polícia supostamente atenta ao risco de falsos positivos. Também não é razoável tratar a atuação da polícia do estado do Ceará um caso isolado: no que refere à produção de reconhecimento, é necessário implementar o aparelhamento e a capacitação ética e técnica de toda a malha policial. Há racismo na exibição na imagem do ator norteamericano e há racismo na preservação do "álbum de suspeitos", e a solução deve vir do sistema de Justiça, ao viabilizar tecnologia e capacitação para o reconhecimento e protocolos de reconhecimento baseados em evidência, a exemplo de países como Estados Unidos e Inglaterra [3]. O antirracismo que deve estar presente em todas as instituições que compõem um sistema de Justiça democrático não pode compactuar nem com uma prática, nem com outra.
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[1]. Wells, G. L., Kovera, M. B., Douglass, A. B., Brewer, N., Meissner, C. A., & Wixted, J. T. (2020). Policy and procedure recommendations for the collection and preservation of eyewitness identification evidence. Law and Human Behavior, 44(1), 3. Disponível em: https://psycnet.apa.org/fulltext/2020-06220-002.html. Em português, ver Cecconello, W. W., & Stein, L. M. (2020). Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicología Latinoamericana, 38(1), 172-188. Disponível em: https://revistas.urosario.edu.co/xml/799/79963266012/html/index.html.

[2] STEIN, L. M., & ÁVILA, G. N. D. (2015). Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série Pensando Direito, No. 59). Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf.

[3] Fitzgerald, R. J., Rubínová, E., & Juncu, S. (2021). Eyewitness identification around the world. In Methods, measures, and theories in eyewitness identification tasks (pp. 294-322). Routledge.
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Janaina Matida é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.
William Cecconello é professor de Psicologia da Faculdade Imed e doutor em Psicologia pela PUC-RS.
Fonte: Conjur

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