Aumento no uso de inteligência artificial por advogados e juízes acende alerta no Judiciário, que debate soluções

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Via @jornaloglobo | Um aumento inesperado de produtividade despertou a atenção da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Maranhão para a atuação de um juiz no município de Balsas, no interior do estado. Nos sete primeiros meses de 2024, Tonny Carvalho havia mantido uma média de 80 decisões mensais. Em agosto, porém, foram 969 sentenças, numa disparada acima dos 1.000%. Menções a precedentes inexistentes deram pistas do que poderia estar por trás da aparente eficiência: a inteligência artificial. Em meio ao boom da tecnologia em diferentes áreas, o Judiciário também se vê às voltas com os desafios inerentes ao — bom ou mau — uso da ferramenta em processos e afins.

Em abril, o desembargador José Luiz Oliveira de Almeida determinou a abertura de uma sindicância, ainda em curso, para apurar a suspeita de utilização de IA na 2ª Vara da Comarca de Balsas. Na decisão, Almeida destacou que o salto de produtividade coincidiu com a publicação de sentenças “que parecem seguir padrão único, a indicar o uso de inteligência artificial de forma inadequada”. A defesa de Carvalho não comentou por entender “que o tema ainda está em discussão nos canais institucionais competentes”.

Advogado em um dos processos citados na sindicância, Júlio Wanderson Barbosa diz que a suposta conduta do juiz pode ter prejudicado sua cliente, uma mulher analfabeta. Na ação, que acabou perdendo, a moradora de Balsas pedia a nulidade de um empréstimo consignado:

— A minha posição é no sentido que não podemos fechar os olhos para as inovações, mas, obviamente, tem de ser feito de uma forma que não leve a uma situação de prejuízo a uma pessoa hipervulnerável.

Sentença no Chat-GPT

O caso no Maranhão não é isolado. Em 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se deparou pela primeira vez com um episódio do tipo, quando jurisprudências inexistentes serviram para basear uma decisão do juiz Jefferson Ferreira Rodrigues, da 2ª Vara Cível e Criminal de Montes Claros (MG), que negou indenização a uma servidora pública. Em depoimento à Corregedoria após alerta do advogado da parte autora, um assessor do magistrado admitiu ter retirado as sentenças do Chat-GPT. O processo acabou arquivado em julho de 2024.

Em março, o CNJ publicou uma resolução para orientar juízes e tribunais quanto ao uso de IA, com padrões de auditoria, monitoramento e transparência, além da obrigatoriedade de proteção de dados pessoais e respeito ao segredo de Justiça. O documento também cria uma classificação de riscos. Entre as maiores ameaças, está o uso da tecnologia para identificar perfis e padrões comportamentais, bem como para classificar fatos como crimes ou identificar quais leis se aplicam aos casos. Outros atos da elaboração de decisões judiciais, como a pesquisa de jurisprudência, constam como de “baixo risco”.

— A resolução deixou muitos buracos. A principal preocupação é a possibilidade do juiz usar serviços públicos que não têm nenhuma regra de proteção de dados. Não se dá ao juiz o treinamento adequado para que ele entenda o que é um sistema como esse — pontua a professora de Direito Ana Frazão, da Universidade de Brasília (UnB).

Para o advogado e especialista em tecnologia Ronaldo Lemos, será preciso criar normas e procedimentos para lidar com a ferramenta:

— Vão ser necessários protocolos para o uso da IA, inclusive com verificação humana dos resultados. Ao mesmo tempo, será preciso capacitar juízes, advogados e equipes jurídicas. Muitos erros são por ignorância pura e simples de como a IA funciona.

Os desafios aparecem também do outro lado do balcão do Judiciário. Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin rejeitou uma petição na qual identificou o uso da tecnologia pela presença de “precedentes inexistentes e declarações falsas”, além da marca d’água em todas as páginas que indicava o emprego de um assistente de escrita com IA. Zanin também determinou que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fosse notificada do caso e, por entender ter ocorrido má-fé, condenou o autor a pagar o dobro das custas processuais.

Os conflitos decorrentes do uso da IA, contudo, vão além. A OAB do Rio de Janeiro processa uma empresa por entender que ela viola o Estatuto da Advocacia ao vender petições geradas por IA para serem usadas nos Juizados Especiais, instâncias dedicadas a casos de menor complexidade e nas quais é permitido impetrar ações sem um advogado.

— A própria parte pode peticionar, o que não pode é alguém ter lucro com um trabalho jurídico sem participação de advogados. Se fosse revisado por um, não teria problema — argumenta a presidente da OAB-RJ, Ana Tereza Basilio.

A 27ª Vara Federal do Rio chegou a conceder uma liminar suspendendo as atividades do site, posteriormente derrubada. A OAB-RJ recorreu, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o presidente da Corte, Herman Benjamin, optou por não acolher o pedido. Para o ministro, a plataforma não aparenta violar nenhuma norma.

“Seria paradoxal dispensar por lei a assistência obrigatória de advogado e, ao mesmo tempo, entender que o cidadão só poderia receber auxílio, inclusive na formalização de seu pedido, por meio de advogado. E ainda pior seria vedar, pela via transversa, o uso de ferramentas amplamente utilizadas atualmente até por pessoas leigas, como a inteligência artificial”, escreveu Benjamin.

O processo ainda não teve o mérito julgado e segue tramitando. Procurada, a empresa Resolve Juizado disse prestar serviço “a pessoas que muitas vezes não têm a menor noção de seu direito e não tem condição de pagar ou mesmo de procurar um advogado”.

Uso em 80% dos tribunais

A expectativa de que a tecnologia possa trazer evolução levou o CNJ a lançar, em 2020, a plataforma Sinapses, dedicada ao armazenamento, treinamento, controle e auditoria de modelos de IA no Judiciário. Segundo o conselho, existem hoje 140 projetos, em diferentes estágios de desenvolvimento, englobando cerca de 80% dos tribunais do país.

É o caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Em julho, ele anunciou que uma ferramenta desenvolvida internamente havia sido usada 149 mil vezes para realizar funções como gerar minutas. O sistema tem ainda uma inteligência artificial voltada para cidadãos, a “Explica aí, tchê”, que traduz o “juridiquês”.

— O Brasil tem 83 milhões de processos em curso, e a utilização responsável da IA pode gerar benefícios. Uma pesquisa da Universidade de Chicago com juízes federais dos EUA concluiu que ela pode reduzir inconsistências e trazer mais coerência às decisões — sustenta Ronaldo Lemos.

Responsável pela área de inovação jurídica do escritório Opice Blum Advogados, Danielle Serafino afirma que a IA pode tornar o Judiciário “mais eficiente, acessível e previsível”, auxiliando na triagem de processos, em pesquisa e na elaboração de minutas, liberando tempo dos juízes para decisões que exijam análise mais aprofundada. Já para os advogados, a tecnologia pode agilizar a rotina e ajudar a organizar dados processuais.

— É essencial que a IA seja usada como ferramenta de apoio, não de substituição. Juízes e advogados devem revisar criticamente qualquer conteúdo gerado por sistemas automatizados. Também é necessário exigir transparência nos modelos utilizados e garantir supervisão humana — frisa.

O que diz a resolução do CNJ

  • Comitê: A resolução divulgada pelo CNJ em março cria o Comitê Nacional de Inteligência Artificial, composto por 14 membros e responsável por monitorar e atualizar as diretrizes de uso da tecnologia.

  • Alto e baixo risco: As finalidades da IA são divididas entre alto ou baixo risco. No primeiro grupo está, por exemplo, a “identificação de perfis e de padrões comportamentais”; no segundo, a transcrição de áudio e vídeo.

  • Proibições: A resolução veda o uso de tecnologias que não permitam a revisão humana ou que usem traços da personalidade ou características de pessoas para avaliar ou prever o risco de cometimento de crimes.

  • Alertas: O texto estabelece ainda que usuários externos deverão ser informados sobre o uso de IA nos serviços prestados. No entanto, é uma opção do signatário de decisões judiciais comunicar ou não sobre o uso da tecnologia.

Por Paulo Assad
Fonte: @jornaloglobo

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