Adimplemento Substancial: desafios da tese no cenário da jurisprudência

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bit.ly/2YSstfc | No caso de incumprimento do contrato, o art. 475 do CCB [i]coloca à disposição do credor a opção entre o cumprimento forçado (a execução específica) ou a extinção pela resolução, que impõe a devolução de tudo que foi recebido por força do contrato (efeito retroativo), sendo que, em qualquer das hipóteses, pode haver cumulação com pleito indenizatório em face de eventuais danos sofridos.

Todavia, percebe-se que tal concepção torna excessivamente objetiva a análise da satisfação do interesse do credor. Nota-se que a questão em foco relaciona o conceito de mora (inadimplemento relativo), vez que quando a prestação é possível e útil ao credor o inadimplemento (relativo) autoriza, apenas, a execução da prestação, além dos outros efeitos da mora, vale dizer, a responsabilização do devedor por todos os prejuízos causados ao credor mais juros, atualização monetária e honorários de advogado (art. 395 do CCB).[ii]  De outra forma, quando a prestação torna-se inviável, converte-se em inadimplemento absoluto, possibilitando a resolução do contrato.

Nessa linha de raciocínio, desponta o Enunciado n. 162 do CJF: “A inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor.” Com isso, conclui-se que é preciso analisar a utilidade da obrigação em acordo com os princípios da Função Social do Contrato (eficácia interna), da Boa-Fé objetiva e da Preservação do Negócio Jurídico de maneira a evitar onerosidade excessiva e o enriquecimento sem causa.

Nesse contexto de conflitos contratuais, contudo, esse direito de resolver o contrato tem sido considerado remédio drástico em algumas situações. Assim, com base na principiologia contratual contemporânea, nossos tribunais têm exercido um controle do exercício abusivo do direito de extinção por resolução toda vez que a obrigação tiver sido quase toda cumprida  e  a resolução  se afigure medida desproporcional ao descumprimento do contrato, tendo   em conta o prejuízo que resulte da resolução para o devedor e terceiros bem como o projeto de benefícios resultante do negócio, considerando a possibilidade do credor dispor de meios menos gravosos para obter a tutela adequada do seu interesse.

Trata-se da teoria do adimplemento substancial (substantial performance) ou inadimplemento mínimo. A respeito da tese em lide, prevê o Enunciado n. 361 do CJF: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.”

É importante destacar que, como anunciado anteriormente, havendo danos a serem ressarcidos, pois o descumprimento do contrato por si só não deflagra o dever de indenizar, tal efeito não está vinculado, propriamente, à resolução. Assim, o credor inadimplido deve ser indenizado independentemente da extinção ou não do contrato. Não há, portanto, um efeito indenizatório automático e decorrente da resolução.

O grande desafio da doutrina e da jurisprudência no campo da Teoria do Adimplemento Substancial tem a ver com a falta de parâmetros para estabelecer, em cada caso, o adimplemento apto a autorizar a resolução do contrato, tendo em vista a finalidade econômico-social do contrato bem como da obrigação. Isso porque, diferente do que ocorre no código civil alemão (§ 323, 5), português (art. 802) e italiano (art. 1.455), não há no CCB previsão específica na legislação sobre o tema.

Contudo, a larga aplicação da técnica das cláusulas gerais no código civil vigente – uma vez que é impossível esgotar na lei a previsão específica de regras sobre todos os possíveis fatos associados a interesse jurídicos tuteláveis- bem como a força normativa dos princípios permite, a partir do costume jurisprudencial, a adoção da tese em comento. Nesse sentido, a jurisprudência superior tem aplicado a teoria em situações de inadimplemento de pouca relevância, por exemplo, o leading case sobre o tema[iii], de Relatoria do Min. Ruy Rosado, decidiu que a falta de pagamento de uma prestação (uma de três parcelas acordadas, o que equivale a 66% das prestações), considerando o montante do negócio, não autorizava a resolução do contrato por parte da seguradora, pois o contrato tinha sido cumprido substancialmente. O STJ também já decidiu, nessa mesma linha de intelecção, que a falta de pagamento de apenas uma prestação num contrato de financiamento não autoriza busca e apreensão do bem, mas apenas ação de cobrança ante o adimplemento substancial pelo devedor do contrato, sob pena de ferida à Boa-Fé Objetiva. [iv]

Também decidiu sobre que o atraso no pagamento da última parcela do prêmio não permite a seguradora suscitar inadimplemento absoluto do segurado.[v] O STJ também aplicou a tese do adimplemento substancial defendendo que não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora.[vi] Contudo, por conta da falta de suporte teórico, as cortes brasileiras têm, muitas vezes, invocado o adimplemento substancial apenas em abordagem quantitativa.

Como tem pontuado de forma precisa a doutrina e jurisprudência italianas, a análise do adimplemento substancial deve passar por dois filtros: um objetivo (quantitativo) a partir da medida econômica do descumprimento   e outro subjetivo no sentido de considerar a lealdade contratual. Corroborando com o entendimento em tela, o Enunciado n. 586 do CJF destaca: “Para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil – CJF), levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos.”  Nesse cenário, não adianta um adimplemento quantitativo relevante se há, no caso, abuso do direito, por exemplo, purgação de mora sucessiva em curto espaço de tempo. Confira-se o aresto abaixo:

“Ressalvada a hipótese de evidente relevância do descumprimento contratual, o julgamento sobre a aplicação da chamada ‘Teoria do Adimplemento Substancial’ não se prende ao exclusivo exame do critério quantitativo, devendo ser considerados outros elementos que envolvem a contratação, em exame qualitativo que, ademais, não pode descurar dos interesses do credor, sob pena de afetar o equilíbrio contratual e inviabilizar a manutenção do negócio (…) A aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial exigiria, para a hipótese, o preenchimento dos seguintes requisitos: a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários (STJ, REsp 1.581.505/SC, 4ª Turma, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 18.08.2016)”

Como a teoria do Adimplemento Substancial vem sendo cobrada em concursos?

Analisemos, abaixo, a questão cobrada em 2018 no XVII Exame de Ordem Unificado.

(OAB/FGV/ 2018 – Exame de Ordem Unificado – XXVII – Primeira Fase) Renata financiou a aquisição de seu veículo em 36 parcelas e vinha pagando pontualmente todas as prestações. Entretanto, a recente perda de seu emprego fez com que não conseguisse manter em dia a dívida, tendo deixado de pagar, justamente, as duas últimas prestações (35ª e 36ª). O banco que financiou a aquisição, diante do inadimplemento, optou pela resolução do contrato. Tendo em vista o pagamento das 34 parcelas anteriores, pode-se afirmar que a conduta da instituição financeira viola o princípio da boa-fé, em razão do(a)

A dever de mitigar os próprios danos.

B proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprium).

C adimplemento substancial.

D dever de informar.

Com base na construção doutrinária e jurisprudencial posta em evidência, obviamente, a alternativa correta é a “C” uma vez que restou caracterizada a possibilidade da aplicação da tese do adimplemento substancial. Nesse contexto, é importante observa que o enunciado da questão, além de apresentar o aspecto quantitativo, o inadimplemento mínimo (duas parcelas de trinta e seis), deixou claro, também, que não houve deslealdade contratual (requisito qualitativo), vez que destacou   que o inadimplemento se deu pelo fato de Renata, sujeito passivo da obrigação, perder o emprego. Também é importante notar que a questão versava contrato de financiamento. A FGV, pelo menos nas questões de Direito Civil do Exame de Ordem, geralmente, muito sensata.

Outra questão cobrada no certame para o cargo de defensor público de São Paulo.

(DPE-SP/FCC/ 2012 – DPE-SP – Defensor Público) A caracterização do adimplemento substancial das obrigações produz os seguintes efeitos, EXCETO:

A inaugurar ou ratificar a possibilidade de o credor perseguir o ressarcimento pelas perdas e danos.

B obstar a resolução unilateral do contrato.

C impedir que o credor argua a exceção do contrato não cumprido.

D) liberar o devedor da obrigação

E descaracterizar a impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação.

Neste caso, a questão versava sobre os efeitos da aplicação da tese em foco e destacava que a teoria impõe, na verdade, que o devedor tenha o direito de honrar o débito de maneira menos gravosa como, por exemplo, por meio de ação de cobrança autônoma, execução ou mesmo ação monitória. Assim, a impossibilidade de resolver o contrato, de nenhuma maneira libera o devedor do débito, encargos contratuais, eventual indenização, enfim, dos outros efeitos do inadimplemento. Desse modo, o gabarito da alternativa é a alternativa “D”.

O RESp. 1.622.555/MG e a controvérsia acerca da aplicação da teoria do adimplemento substancial às alienações fiduciárias em garantias de bens móveis

Inúmeros são os precedentes, no STJ, que aplicam a tese do adimplemento substancial em inadimplementos de pequena relevância em contratos de financiamento, por exemplo, em contrato de leasing para aquisição de 135 carretas, sendo que 30 (trinta) das 36 (trinta e seis) parcelas da avença foram pagas (que equivale a 83% das pretações). Assim, no caso narrado, o direito ao crédito foi preservado, mas a reintegração de posse indeferida[vii]. Na mesma linha de intelecção encontramos julgados reconhecendo o não cabimento de busca e apreensão em razão de adimplemento substancial do contrato de alienação fiduciária[viii].

Sobre o tema, ainda, é importante atentar ao conteúdo do Enunciado 354 do CJF: “A cobrança de encargos e parcelas indevidas ou abusivas impede a caracterização da mora do devedor.” Isso por que tais cobranças, abusivas, podem ser utilizadas como argumento para elidir a aplicação da tese do inadimplemento mínimo.

Como é sabido, a alienação fiduciária, direito real de garantia, institui uma propriedade resolúvel a favor do credor fiduciário de bem móvel ou imóvel. Assim, o credor fiduciário paga o preço diretamente ao alienante originário e transfere a posse direta do bem ao devedor fiduciante, tendo o credor fiduciário a posse indireta do bem. Nesse caso, o fiduciante assume todas as responsabilidades e encargos decorrentes da lei e do contrato – trata-se de direito real instrumentalizado por contrato. O CCB inovou ao tratar da alienação fiduciária de bens móveis infungíveis (disciplinada nos art.s 1361 a 1368-B do CCB e Decreto – lei 911/1969). A ação de busca e apreensão na alienação fiduciária está tratada no art. 3º do Decreto-Lei 911/1969[ix], dispositivo que sofreu alterações em face da Lei 10.931/2004 e pela Lei 13.043/2014. Diante das alterações legislativas citadas, notadamente a lei 10.931/2004, o STJ passou a entender pela impossibilidade de purgação da mora em contratos de alienação fiduciária[x], o que choca frontalmente com os princípios contratuais contemporâneos, especialmente o princípio da conservação dos negócios jurídicos e o da função social dos contratos, dos quais se depreende que a extinção dos pactos deve ser a última medida a ser tomada. Ao lado disso, não se pode esquecer que presente a relação de consumo na alienação fiduciária de bens móveis, aplica-se o art. 53 do CDC[xi], norma cogente (de ordem pública), que consagra a nulidade absoluta de cláusula de decaimento, de perda de todas as parcelas pagas por parte do devedor nos casos de inadimplemento.[xii]

Em março de 2017, a segunda seção do STJ concluiu que a teoria do adimplemento substancial não se aplica para “purgar a mora” em contrato de alienação fiduciária e afastar a busca e apreensão do bem, desconsiderando, portanto, o adimplemento relevante do devedor para afastar a medida de retomada do bem. Aqui, cabe ressaltar, foi invocado recurso repetitivo[xiii], sendo que o aludido julgado, na verdade, firmou apenas a tese de que não cabe purgação da mora relativa às parcelas em atraso e a necessidade de quitar totalmente o saldo devedor, sem entrar no mérito da aplicação da teoria do adimplemento substancial ou, dito de outra forma, a possibilidade do devedor honrar o saldo devedor de forma menos gravosa. Na fundamentação do julgado, ainda, foi apontado que o adimplemento substancial visa impedir que o credor resolva a relação contratual em razão de inadimplemento mínimo, sendo que quando o credor fiduciário promove ação de busca e apreensão, na verdade, tem o propósito de dar cumprimento ao quanto previsto no contrato. Nesse sentido, sustenta-se que a aplicação da tese do adimplemento substancial para obstar a busca e apreensão, nesse contexto, seria um incentivo ao não pagamento das últimas parcelas contratuais, o que desestimularia o credor, tendo em vista o custo benefício de satisfazer seu crédito por outras vias judiciais, ainda por cima, mesmo eficazes, o que, de toda sorte, afasta-se do princípio da boa-fé contratual. A esse respeito, a fundamentação do julgado foi no sentido de que a lei especial afastaria a incidência, por interpretação extensiva, do princípio da boa-fé[xiv]. Por evidente, a força normativa dos princípios contratuais não deve ser afastada em razão de nenhuma lei especial que discipline qualquer contrato, ao revés, tais enunciados normativos é que devem ser concebidos de forma a atender aos vetores principiológicos, mormente, aqueles com viés constitucional e de ordem pública, como é o caso dos princípios contratuais sociais (art 2035, § único do CCB)[xv].

Conclusão

É necessário o debate sobre os critérios objetivos e subjetivos acerca da teoria do adimplemento substancial, especialmente, sua aplicabilidade nos contratos de alienação fiduciária de bens móveis em razão do argumento de que  as alterações promovidas pela Lei 10.931/2004, que inspirou o STJ a entender pela impossibilidade de purgação da mora em contratos de alienação fiduciária resultaria no entendimento da não aplicabilidade dos princípios contratuais sociais e da tese do Adimplemento Substancial em tais contratos. Nesse contexto, é importante atentar que o costume jurisprudencial brasileiro é pacífico sobre a possibilidade de aplicação da construção doutrinária em análise, o que suscita sua cobrança nos mais variados certames, inclusive prova da OAB.

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[i] Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

[ii] Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

[iii] STJ, REsp. 76.362-MT

[iv] STJ, REsp. 272.739-01-MG

[v] STJ, REsp. 293.722-SP

[vi]  STJ, REsp. 469.577/SC.

[vii] STJ, REsp. 1.200.105/AM, publicado no informativo 500 do STJ

[viii] STJ, Ag. Rg. 607.406/RS e REsp. 469.577/SC

[ix] Art. 3o O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)

§1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)

§2º No prazo do § 1o, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)

§3º O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)

(…)

[x] Informativo 540 do STJ.

DIREITO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE DE PURGAÇÃO DA MORA EM CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA FIRMADOS APÓS A VIGÊNCIA DA LEI 10.931/2004. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).

Nos contratos firmados na vigência da Lei 10.931/2004, que alterou o art. 3º, §§ 1º e 2º, do Decreto-lei 911/1969, compete ao devedor, no prazo de cinco dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária. De início, convém esclarecer que a Súmula 284 do STJ, anterior à Lei 10.931/2004, orienta que a purgação da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado. A referida súmula espelha a redação primitiva do § 1º do art. 3º do Decreto-lei 911/1969, que tinha a seguinte redação: SEGUNDA SEÇÃO

“Despachada a inicial e executada a liminar, o réu será citado para, em três dias, apresentar contestação ou, se já houver pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a purgação de mora.” Contudo, do cotejo entre a redação originária e a atual – conferida pela Lei 10.931/2004 -, fica límpido que a lei não faculta mais ao devedor a purgação da mora, expressão inclusive suprimida das disposições atuais, não se extraindo do texto legal a interpretação de que é possível o pagamento apenas da dívida vencida. Ademais, a redação vigente do art. 3º, §§ 1º e 2º, do Decreto-lei 911/1969 estabelece que o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente e, se assim o fizer, o bem lhe será restituído livre de ônus, não havendo, portanto, dúvida acerca de se tratar de pagamento de toda a dívida, isto é, de extinção da obrigação. Vale a pena ressaltar que é o legislador quem está devidamente aparelhado para apreciar as limitações necessárias à autonomia privada em face de outros valores e direitos constitucionais.

A propósito, a normatização do direito privado desenvolveu-se de forma autônoma em relação à Constituição, tanto em perspectiva histórica quanto em conteúdo, haja vista que o direito privado, em regra, disponibiliza soluções muito mais diferenciadas para conflitos entre os seus sujeitos do que a Constituição poderia fazer. Por isso não se pode presumir a imprevidência do legislador que, sopesando as implicações sociais, jurídicas e econômicas da modificação do ordenamento jurídico, vedou para alienação fiduciária de bem móvel a purgação da mora, sendo, pois, a matéria insuscetível de controle jurisdicional infraconstitucional.

Portanto, sob pena de se gerar insegurança jurídica e violar o princípio da tripartição dos poderes, não cabe ao Poder Judiciário, a pretexto de interpretar a Lei 10.931/2004, criar hipótese de purgação da mora não contemplada pela lei. Com efeito, é regra basilar de hermenêutica a prevalência da regra excepcional, quando há confronto entre as regras específicas e as demais do ordenamento jurídico. Assim, como o CDC não regula contratos específicos, em casos de incompatibilidade entre a norma consumerista e a aludida norma específica, deve prevalecer essa última, pois a lei especial traz novo regramento a par dos já existentes.

Nessa direção, é evidente que as disposições previstas no CC e no CDC são aplicáveis à relação contratual envolvendo alienação fiduciária de bem móvel, quando houver compatibilidade entre elas. Saliente-se ainda que a alteração operada pela Lei 10.931/2004 não alcança os contratos de alienação fiduciária firmados anteriormente à sua vigência. De mais a mais, o STJ, em diversos precedentes, já afirmou que, após o advento da Lei 10.931/2004, que deu nova redação ao art. 3º do Decreto-lei 911/1969, não há falar em purgação da mora, haja vista que, sob a nova sistemática, após o decurso do prazo de 5 (cinco) dias contados da execução da liminar, a propriedade do bem fica consolidada em favor do credor fiduciário, devendo o devedor efetuar o pagamento da integralidade do débito remanescente a fim de obter a restituição do bem livre de ônus. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.398.434-MG, Quarta Turma, DJe 11/2/2014; e AgRg no REsp 1.151.061-MS, Terceira Turma, DJe 12/4/2013. REsp 1.418.593-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014

[xi]    Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

[xii] STJ, REsp. 401.702/DF.

[xiii] (STJ, REsp 1.418.593/MS)

[xiv] STJ, REsp.1.622.555/MG

[xv] Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045 , mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
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Por Rubem Valente
Doutorando em Direito Patrimonial pela Universidade de Buenos Aires – UBA. Advogado, palestrante e professor de cursos preparatórios de carreira jurídica.
Fonte: genjuridico.com.br

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