Poder ou função moderadora na ótica constitucional

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bit.ly/3e91YZC | O poder moderador ou a função moderadora não possuem espaço jurídico no atual Estado brasileiro. A CF/88 limitou-se a prever a existência de três Poderes ou três Funções de Estado que são independentes e harmônicos entre si, art. 2º.

Então por que falar em intervenção militar como função moderadora?

Numa tentativa de responder ao questionamento sobredito, o texto exporá alguns fatos e argumentos indicadores da impossibilidade de uma intervenção moderadora e militar no atual sistema jurídico brasileiro.

Aspecto histórico constitucional

Em nome da Santíssima Trindade, o Império do Brazil, ainda escrito com “z” na época da Carta de Lei de 05 de março de 1824, insculpiu no seu art. 10 uma divisão quadrilátera de Poderes, a saber: Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial.

O Poder Moderador era a chave de toda organização política do império, seu exercício cabia privativamente ao Imperador que, por força daquela Constituição, era titulado como chefe supremo da Nação, inviolável e sagrado, artigos 98 e 99 do texto imperial Maior.

E quais eram as competências constitucionais do Poder Moderador exercido pelo Imperador?

O art. 101 previa que cabia ao Moderador uma lista de competências, dentre elas merece destaque as seguintes: a) nomear Senadores; b) dissolver a Câmara dos Deputados a pretexto de salvar o Estado; c) suspender magistrados; d) alterar condenações criminais estabelecidas em sentenças, entre outras competências.

E sobre a previsão constitucional das Forças Armadas em 1824, o que se pode destacar? É possível destacar que tinha previsão constitucional nos artigos 145 a 150 sem alusão à possibilidade de interferir na independência e harmonia dos Poderes do império. Mesmo assim o Imperador foi destronado pelos militares brasileiros instigados por ânimos republicanos aflorados em 1870 em razão da pressão de proprietários rurais (partidários do federalismo norte-americano), jacobinistas inspirados no modelo francês de Estado e intelectuais positivistas. Nenhum deles defendeu os direitos individuais e ou abolicionistas. Tomado o poder, os militares inauguraram a velha República Brasileira.

Em 1891, dia 24 de fevereiro, nasce a República dos Estados Unidos do Brazil. Sua constituição previa apenas três Funções de Estado, art. 15 do texto republicano.

Destaca-se que foi expurgado com Dom Pedro II o poder e ou função de Estado moderadora.
Salienta-se ainda que as Forças de Terra e Mar, assim denominadas as Forças Armadas, tinham previsão sintética no texto constitucional e a obrigação de atuar dentro dos limites da lei e a obrigação de sustentar (proteger) os demais Poderes, art. 14 da Carta de 1891.

Em 1934, ao final da República Velha e após eleições presidenciais surge, no vácuo do movimento revolucionário liderado pelo militar Getúlio Vargas, a terceira Constituição brasileira que manteve a divisão montesquiana de Poderes. A referida Carta sequer fez previsão em capítulo ou seção às Forças Armadas ou sobre a existência de um poder ou função moderadora.

Durou pouco o texto Maior de um governo dito provisório. Três anos depois foi decretada, em 10 de novembro de 1937, A Polaca, o provisório tornou-se quase permanente. Mesmo assim não se vê no texto de 1937 uma repartição de Poderes diversa daquela tripartite encontrada atualmente no art. 2º da CF/88. Da mesma forma não havia previsão de poder e ou função moderadora assim como não se encontra nas diversas passagens constitucionais sobre Forças Armadas, Segurança Nacional e Defesa do Estado a função moderadora.

Em 1946, dia 18 de setembro, é promulgada uma das Cartas políticas mais importantes e democráticas da história do Brasil, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Ela manteve em seu texto a tripartição de poderes (art. 36). E não atribuiu às Forças Armadas a possibilidade de interferir nas atividades fundamentais do Estado como função moderadora, mas impunha-lhe obediência à lei, art. 176 e o dever de defender os Poderes constitucionais, art. 177.

Isso não impediu o advento do AI 1 e depois, o AI 5. O primeiro legitimou a tomada de poder no Brasil em 10 de abril de 1964 e o segundo tornou o regime democrático algo semelhante ao que George Orwell descreveu na obra 1984, cujo lema do Grande Irmão era: Guerra é paz; Liberdade é escravidão; Ignorância é força.

Em 1967, 24 de janeiro, promulgava-se nova Constituição que manteve a divisão tripartite de Poderes e também não previu a possibilidade da função moderadora. Mas a Carta Maior estabelecia a obrigação constitucional dos militares defenderem os Poderes constitucionais, artigos 6º e 92. Essas disposições constitucionais não foram materialmente alteradas pela EC 01 de 1969.

Posto isso, conclui-se que, com exceção da Constituição Política do Império do Brasil (1824), nenhuma outra mencionou a função moderadora e quaisquer das Constituições supracitadas estabeleceram que os militares detivessem o poder de moderação, ainda que de modo implícito.

Aspectos jurídicos

Com o advento da CF/88, inaugurou-se novo regime jurídico no Brasil, escorado em fundamentos republicanos, democráticos e de direito.

A CF/88, nominada de Cidadã, apresenta texto simples, em linguajar popular e ao mesmo tempo técnico, pois se trata de documento fundador do Estado e ao alcance da compreensão mediana do povo que emprestou parcela de seu poder soberano para fundar um Estado Democrático de Direito.

O texto constitucional em vigor tem características marcantes. Uma delas é a forte estruturação do Estado como gestor de políticas públicas, há nele detalhamentos até excessivos a respeito da gestão pública brasileira, como se verifica no art. 37, ou na seção da saúde, por exemplo.

De outro lado, enxerga-se a olhos desarmados a preocupação do legislador constituinte originário que buscou harmonizar interesses estatais com interesses individuais e sociais. A CF/88 apresenta uma carta de direitos e deveres fundamentais típica de um povo ainda teme pela volta de um passado de troca de poderes ao arrepio de seus interesses. Interesses que via de regra são, ou deveriam ser, legitimadores das regras que os regem, especialmente em sociedades contemporâneas e complexas como a nossa.

Assim a CF/88 manteve a tripartição de Poderes ou de Funções de Estado, estabelecendo no art. 2º que são “(...) Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Inexiste qualquer ressalva a eventual função moderadora.

A norma sobredita é de eficácia constitucional plena e, nas lições do professor José Afonso da Silva, ela se trata de elemento orgânico do Estado Brasileiro. Destarte, o dispositivo é cláusula pétrea e não pode ser abolida, tal como prevê o art. 60, §4º da CF/88. Aliás, sobre esse artigo vale asseverar que ele é mais do que uma cláusula pétrea é uma cláusula imutável ou imodificável, pois qualquer tentativa de alterá-lo, ainda que fosse para “melhorar” esse sistema de repartição de funções, implicaria na sua abolição.

Apesar disso, pode-se questionar: Mas em casos de graves crises, como solucioná-las juridicamente?

O texto constitucional não é infectado por uma cegueira branca, nem foi concebido como norma indefesa. A Constituição de 1988 prevê um sistema de controle de crises. Esse sistema permite o uso de mecanismos estatais pautados na supremacia do interesse público, quais sejam: Intervenção, Estado de Defesa e o Estado de Sítio. Todos com execução a partir das mãos do Presidente da República.

Mesmo assim, os artigos 34 a 36 (Intervenção), 136 a 139 (Estado de Defesa e de Sítio) não admitem atuação isolada do Presidente, tampouco permitem que as Forças Armadas substituam-no ou substituam quaisquer das outras Funções de Estado. Aliás, esses mecanismos de defesa são controlados politicamente pelo parlamento brasileiro e juridicamente pelo STF. Salienta-se que esse é um exemplo do sistema norte-americano freios e contrapesos.

É sobremodo importante ainda assinalar a presença de mais outro sistema de proteção constitucional dos interesses do povo. O sistema de proteção normativa da Carta Política deste país, cujas armas são as ações constitucionais de controle de constitucionalidade. E além desse sistema, há que se mencionar as medidas de controle da Administração Pública, quais sejam: os remédios constitucionais.

Postos esses fatos, convém ainda questionar: O que a CF/88 dispõe a respeito das Forças Armadas?

Diversamente das Constituições anteriores, a Cidadã, tratou em detalhes das Forças Armadas brasileiras, não lhe tolheu atuação, mas impôs-lhe diretrizes democráticas importantes, tal como se verifica nos artigos 91 (Conselho de Defesa Nacional) e 142 (Forças Armadas).

Em virtude disso estabeleceu-se que as Forças Armadas são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica. Essas instituições tem caráter nacional, permanente e regular. E a organização delas é baseada na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República. Aqui vale um destaque a respeito da expressão “autoridade suprema do Presidente da República”. Ela indica que no estrito âmbito das Forças Armadas autoridade suprema é a do Presidente da República. Isso não implica em afirmar que o Presidente da República é a autoridade suprema do Estado Brasileiro.

Vale ainda lembrar que no Brasil o imperador foi autoridade suprema, assim como Getúlio Vargas na vigência da Polaca. Nesse último exemplo a prerrogativa presidencial estava no art. 73 da Constituição de 1937. Dois exemplos da violação da tripartição de Poderes.

E a atual missão constitucional das Forças Armadas qual é? Sua função estatal é das mais valiosas do Estado. Destina-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, à defesa da lei e da ordem.

Ainda sobre sua missão, sobressalta-se a lei complementar nº 97 de 09 de junho de 1999 que prevê atribuições das Forças Armadas e dentre elas a promoção da garantia dos Poderes constitucionais. É o dever de proteger os Poderes do Estado e, jamais abraçar como sua qualquer das Funções que juraram defender.

O dispositivo infraconstitucional sobredito, em plena obediência ao texto constitucional, regula que o emprego das Forças Armadas não se dará apenas para garantir o pleno funcionamento independente dos Poderes constituídos, mas também para defesa da Pátria, da lei e da ordem. Salienta-se que o uso dessa força pública compete ao Presidente da República, seja por disposição constitucional (art. 84, XIII, da CF/88), seja por disposição legal (art. 15, §1º da LC 97/99).

Merece ainda atenção o comando legal previsto no art. 15, §2º da lei complementar nº 97/99. Nele se vislumbra diretriz de prudência de atuação estatal ao estabelecer que as Forças Armadas possam ser acionadas por quaisquer dos Poderes constituídos desde que para garantir do império da lei e da ordem pública, no momento em que se verificar que os instrumentos constitucionais de segurança pública restaram ineficientes para esse mister.

Nesse sentido o decreto nº 3897/01, ao fixar diretrizes para o emprego das Armas, regulamenta que sua atuação afasta-se da ideia de intervenção militar moderadora, até porque tal figura não tem previsão no sistema jurídico atual. O afastamento se dá pela simples confirmação de que o emprego das forças militares sujeita-se a critérios objetivos, a saber:

  • a) subordinação ao comando decisório do Presidente da República, que por sua vez, obedece à CF/88, na sua integralidade;
  • b) a finalidade do emprego da atividade castrense está vinculada à garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio (não há previsão para propósitos intervencionistas moderadores);
  • c) a condição circunstancial imposta para o acionamento dos militares é, além de eventual crise, a comprovação da inexistência, indisponibilidade ou esgotamento da eficiência dos instrumentos de segurança pública, previstos no art. 144 da Constituição;
  • d) as atribuições a serem investidas, por tempo e território determinados, aos militares da União são as de polícia ostensiva, de natureza preventiva ou repressiva, típica das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos pelo ordenamento jurídico.

Convém ponderar, portanto, que a atuação das Armas, sob o manto da Constituição e das normas infraconstitucionais pertinentes, se dá para garantir a lei e a ordem e isso não significa, ainda que usados os mais diversos recursos de interpretação a serviço da hermenêutica, interferir nas Funções de Estado como função moderadora.

Felizmente a CF/88, a lei complementar 97 e seu decreto regulamentador estabelecem que o emprego dos comandos militares se dê para substituir os ditos instrumentos de segurança pública previstos no art. 144 da CF/88, especificamente para exercer as atribuições e funções das Polícias Militares e isso difere, em muito, do histórico poder moderador previsto na Constituição Imperial de 1824.

Assim, com o devido respeito às posições diversas, seria uma interpretação hiperbólica admitir que, segundo o ordenamento jurídico vigente nesta República, as Armas do Brasil podem assumir função intervencionista moderadora e, de alguma forma, impedir direta ou indiretamente o pleno funcionamento dos Poderes constituídos.

Ainda nesse exercício exegético, vale lembrar que a lei nº 6.080/80 previu, mesmo antes da promulgação da CF/88, que as Forças Armadas têm como uma de suas principais responsabilidades, a de garantir os Poderes constituídos. E o que significa isso? Significa que em caso de cerceamento ilegal e ou inconstitucional do funcionamento de quaisquer dos Poderes, deve o militar da União resguardar as Funções de Estado.

Como se nota, isso não significa que as Forças Armadas poderão substituir-se a qualquer dos Poderes constituídos. Aliás, essa possibilidade (intervenção moderadora) não está prevista na CF/88 e, portanto, qualquer interpretação nesse sentido estaria não apenas contribuindo para um desvio teleológico dos textos legais sobreditos, bem como estaria ajudando a contrariar o sistema de fundamento de validade das normas e a teoria da hierarquia das normas.

A história nos mostra que Aristóteles em A Política, citando Sócrates, registrou que “(...) só admite a classe dos guerreiros no Estado no momento em que a formação do território põe cidadãos em contato e em guerra com povos vizinhos”. Nisso se mostra que na formação das sociedades as armas não são os elementos originais, fundamentais e formadores dela, mas são necessários para promoção da proteção de um povo e de seu território já formado e talvez em expansão. Salienta-se que na mesma obra ainda se ensina: “(...) precisarão que alguém administre a justiça e se pronuncie sobre o direito de cada um”.

A Política apresenta o caminho inicial da organização e da separação dos Poderes, e faz indicação expressa sobre a função das Armas em um Estado. Mostra que a função militar não é a de moderar Poderes constituídos, mas defende-los.

Conclusão

Feitas essas considerações observa-se que a possibilidade do exercício de um poder e ou de uma função moderadora a ser exercida por instituições militares não possui lastro jurídico. Nesse toada, a atuação das Forças Armadas com a finalidade de moderar crises institucionais equivaleria ao desrespeito da legalidade administrativa, princípio constitucional a que estão sujeitas e cujo desrespeito implicará na ofensa à CF/88, assim como às normas infraconstitucionais.

O poder ou função moderadora, comportamento que muitos pretendem atribuir aos militares, impingiria, ao menos em tese, aos seus representantes de maior importância hierárquica, possível prática de crime previsto na Lei de Segurança Nacional nos artigos 17 e 18, ou ainda crimes de responsabilidade administrativa da lei nº 1079/50 que tutelam o livre exercício de quaisquer dos Poderes ou ainda a segurança interna do país.

É de se esperar que um país disposto a limpar-se do mar de lama que cobriu sua estrutura e seu povo, entenda que as normas são necessárias para que nos distingamos dos selvagens. É de se esperar que a legitimidade dessas normas seja fruto não apenas na tradicionalidade de um povo, mas também na racionalidade procedimental da produção normativa constitucional e que isso nos leve ao equilíbrio e não aos extremos.

A sociedade brasileira é contemporânea e complexa, por essas razões não há solução pautada apenas em uma ideia. Somos uma democracia pluralista, nova e ainda estamos construindo a identidade nacional. Dessa feita, o sucesso da constituição de uma Nação não está nos extremos, mas no meio, na comunicação, na formação de pontes e não na formação de barricadas.

Posto isso, e respeitadas opiniões distintas, um povo que aspira status de civilizado precisa, antes de qualquer coisa, respeitar o império da lei. E quando a lei não for suficiente, que se busque civilizadamente os meios constitucionais para mudar e atender ao interesse público. E quando esses meios não forem eficazes? Aprender-se-á, inexoravelmente, a dura lição de que escolhemos representantes que são reflexos da nossa sociedade. Mudar isso não depende de armas, depende de educação.

Rodrigo Belmonte é servidor concursado do Ministério Público Federal, bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá, especialista em Direito Público pela mesma instituição de graduação, especialista em Gestão Pública Municipal pela UNB, professor de Direito Administrativo e de Direito Constitucional, ex-pregoeiro e ex-coordenador da Assessoria Jurídica da Procuradoria da República em Mato Grosso, instrutor de cursos para Administração Púbica, autor de artigos jurídicos e palestrante.

Bibliografia consultada.

  • A Política, Aristóteles, editora Escala, São Paulo, pag. 173/174;
  • Constituição Política do Império do Brazil, jurada em 25 de março de 1824;
  • Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891;
  • Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934;
  • Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946;
  • Constituição do Brasil, promulgada em 24 de janeiro de 1967;
  • Constituição da República Federativa do Brasil com a redação da Emenda Constitucional 01 de 20 de outubro de 1969;
  • Constituição da República federativa do Brasil de 1988, promulgada em 05 de outubro de 1988.
  • Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 23ª edição, Malheiros, São Paulo, 2004, pág. 44.
  • Direito Constitucional ao alcance de todos. Uadi Lamêgo Bulos, Saraiva, São Paulo, 2009, pág. 58/59;
  • História Geral e do Brasil, 2ª edição, 2011, São Paulo, editora Harbra;
  • 1984, Geroge Orwell, escrito em 1948, 29ª edição, 3ª reimpressão, Companhia Editora Nacional, 2004, São Paulo;

Por Rodrigo Belmonte – Servidor do MPF, Professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo, Especialista em Direito Público e Gestão Pública

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