“Há homens galantes que só querem acesso às crianças”, diz juíza do TJRJ

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Isabela Nardoni, Bernardo Boldrini e, mais recentemente, Henry Borel tornaram-se sinônimos de violência contra crianças no Brasil. Diante de casos brutais como esses, a sociedade deve se questionar sobre as próprias falhas e se perguntar como proteger quem tem seus direitos básicos violados.

Henry Borel foi torturado pelo padrasto Jairo Souza Santos Júnior, conhecido como Dr Jairinho, dentro de casa, no Rio de Janeiro. Também foi negligenciado pela mãe Monique de Medeiros e, infelizmente, não é uma exceção.

Em mais de 65% dos casos que envolvem crianças e adolescentes o crime é cometido por alguém de extrema confiança, como destaca Cristiana Cordeiro, juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desde 1998 e integrante da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Juíza Cristiana de Faria Cordeiro, do TJRJ

Em entrevista ao Metrópoles, a magistrada falou sobre a importância de ouvir o que crianças e adolescentes têm a dizer e de ficar atento aos sinais de violência. A juíza também relatou as partes mais difíceis de sua atuação no tribunal e falou a respeito de como formar uma rede de proteção que pode salvar vidas e evitar abusos.

Baseada na sua experiência e na sua perspectiva sobre a realidade, casos como o do Henry Borel são frequentes?

Sem adentrar ao caso específico da criança Henry Borel, porque existe uma vedação para que juízes se manifestem sobre casos em andamento, o que posso dizer é que 65% dos casos de violências contra crianças e adolescentes são praticados dentro de casa, por algum familiar ou alguém de extrema confiança dessa criança.

Existe um perfil de agressor?

Infelizmente não existe um perfil do agressor. Julguei vários casos em que o perpetrador da violência era a pessoa “mais bem quista da comunidade”. Não dá para dizer, por exemplo, que o agressor vá ser uma pessoa que também já sofreu agressões na infância e por isso se torna um agressor adulto, não dá para identificar quem é o agressor por classe social ou formação educacional e profissão. Se fosse assim seria muito mais fácil manter algum tipo de vigilância para a segurança das crianças e adolescentes.

A senhora mencionou que existe um comportamento predador de homens que se aproximam de mulheres com interesse em crianças, é possível ler esses sinais? Ao que ficar atento?

Quanto a essa questão de haver homens que se aproximam de mulheres com filhos ou que conquistam a confiança de uma família para ter contato com crianças e adolescentes, o indispensável é que as crianças e adolescentes tenham voz, pois precisam confiar nas pessoas que cuidam deles, podem ser os pais, avós, irmãos mais velhos.

O essencial é que tenham confiança que vão ser escutados se falarem. Não podemos esquecer o caso do Bernardo Boldrini, que foi brutalmente morto no Rio Grande do Sul e procurou autoridades para relatar que era agredido e não teve escuta.

Como os responsáveis podem criar esse espaço de escuta?

A criança e o adolescente desde cedo precisam ter a noção do que é ou não permitido que um adulto faça com eles. De que tipo de tratamento deve aceitar ou não e o que deve relatar caso exista algum tipo de conduta inadequada de um adulto. Isso vale especialmente nos casos de abuso sexual.

Muitas vezes uma criança só vai se dar conta que foi abusada quando começa a estudar sobre corpo humano na escola.

Se a família desde muito cedo não conscientiza a criança do que é um contato sexual que não pode ser realizado por um adulto em relação a ela, se não ensinar a criança sobre as partes íntimas, essa criança se torna muito mais facilmente objeto de um abuso sexual.

Nesses 23 anos de atuação na área da infância e criminal, quais foram os casos que mais marcaram a sua carreira?

Os casos mais difíceis são aqueles em que é preciso ouvir o relato da criança ou adolescente vitimizado. Tudo anda muito lentamente na apuração desses casos, infelizmente. Muitas vezes pela síndrome do segredo, ou seja, a violência é um tabu dentro de casa, e estou falando de qualquer tipo de violência.

Existe uma morosidade do sistema judicial e de polícia para apuração dos diversos casos. Com as novas tecnologias as violências também são praticadas de forma cibernética. Atuei desde casos em que não tínhamos internet. Nas situações de abuso sexual e tortura, as vítimas são muito vitimizadas ao terem que relatar as circunstâncias desses maus tratos e abusos para um juiz.

É uma tarefa muito árdua. Existe uma lei que prevê como o juiz deve realizar a oitiva dessa criança e adolescente de uma maneira prudente para que eles não sejam revitimizados pela própria justiça.

A todo momento escuto crianças e adolescente relatando situações traumáticas. Algo que também acontece e as pessoas não se dão conta é a omissão de uma das figuras parentais quando existe a agressão. O crime pode ser praticado por ação ou omissão. A omissão é mais grave ainda quando a pessoa tem o papel do garantidor, e não se trata só da figura da mãe.

Para ficar mais fácil de entender, podemos colocar aqui a figura do guardião de piscina: a função dele é evitar que quem quer que seja se afogue, se ele avista uma pessoa se afogando e permite que essa pessoa se afogue ele pratica o crime de homicídio.

Uma mãe que sabe que seu filho é brutalizado, torturado, castigado e se mantém inerte, da mesma forma é responsabilizada por essas lesões ou mortes.

Jairo Souza Santos Júnior, o Dr Jairinho, por exemplo, já tinha um histórico de violência contra mulheres e crianças, e sempre saía impune. Como mudar essa realidade e proteger crianças desse tipo de abuso?

A proteção de crianças e adolescentes tem a ver com informação, eles precisam receber informações sobre os cuidados necessários. A gente tem uma legislação muito completa em termos de proteção, além da Constituição, há o Estatuto da Criança e do Adolescente e outras leis que protegem a criança de negligências e violações de seus direitos.

Além da questão educacional, de conscientização dos direitos, existe uma responsabilidade das escolas e dos serviços de saúde de notificação compulsória de qualquer caso suspeito ou comprovado de maus tratos.

Existe uma ficha nacional, um documento que é obrigatoriamente preenchido pelos profissionais de saúde e educação, para notificar o Conselho Tutelar ou Ministério Público toda vez que for verificado que podem ter havido maus tratos.

É dever da família, da comunidade e do Estado, de uma forma geral, garantir que aquela criança não seja violentada. A criança é patrimônio de todos e precisa ter sua proteção garantida.

Leilane Menezes
Fonte: www.metropoles.com

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