STF precisa ser contra prisão imediata de réu condenado no Tribunal do Júri

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No apagar das luzes de 2021, assistimos a um dos Tribunais do Júri mais midiáticos da história do país. Transmitido integralmente no YouTube, o julgamento causou grande comoção, sobretudo naqueles diretamente afetados pelos acontecimentos da Boate Kiss. Trata-se, inegavelmente, de caso que põe à prova qualquer sistema de Justiça Criminal, pela magnitude da tragédia e pelo contínuo sofrimento das famílias. Embora tais ingredientes turvem, pela emoção, nosso olhar sobre o caso, é necessário retornarmos à racionalidade, sem ceder à tentação de abrir exceções casuísticas e, com isso, suprimir direitos e garantias individuais.

Do ponto de vista jurídico, muitos são os pontos de discussão: (a) a competência do Tribunal Júri em si, diante do questionável enquadramento das condutas como crimes dolosos contra a vida; (b) a utilização de carta psicografada durante o plenário e a eventual nulidade do procedimento; (c) a questionável fundamentação da dosimetria da pena realizada pelo magistrado que presidiu o Júri, elevando a reprimenda para mais de 15 anos de reclusão; (d) a determinação da execução imediata da pena, com base na inovação trazida pelo "Pacote Anticrime" (nova redação do art. 492, I, e, CPP)1; (e) o manejo, pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), da "suspensão de liminar" diretamente para o STF; (f) a surpreendente sustação, pelo ministro presidente do STF, da liminar em habeas corpus que impedia a execução imediata da pena2 e, posteriormente, também a decisão que tornou sem efeitos a confirmação da ordem pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Suspensão de Liminar 1.504)3.

Do mar de problemas oriundo do caso, pinçamos aquele que nos parece o mais urgente a ser enfrentado: a possibilidade de execução imediata da pena dos condenados pelo Tribunal do Júri a 15 anos de prisão ou mais, conforme o art. 492, I, e, do CPP. A problemática não é nova, pelo contrário. Trata-se de mais um mergulho na questão da presunção de inocência enquanto regra de tratamento do acusado (art. 5º, inc. LVII, Constituição Federal).

Lembremos que, em 2019, no julgamento conjunto das ADCs n. 43, 44 e 544, a maioria dos ministros do STF, em composição diversa da atual, definiu que os acusados, sem exceção, só poderão ser compelidos a iniciar o cumprimento de suas penas após o trânsito em julgado da condenação. Antes disso, portanto, seriam cabíveis apenas prisões cautelares, sujeitas a hipóteses legais específicas, jamais o início do cumprimento da pena privativa de liberdade.

Ocorre que o julgamento das ADCs ocorreu antes da introdução, pelo Pacote Anticrime, do art. 492, I, e, ao CPP. Trata-se justamente da norma que amparou a determinação da prisão imediata dos réus pelo juiz que presidiu o Júri da Boate Kiss, bem como que serviu de argumento para o ministro presidente do STF no bojo da referida Suspensão de Liminar. A pergunta que surge é: seria tal artigo constitucional? A questão já foi levada ao STF5 e precisará ser enfrentada em breve.

Não é possível fazê-lo, no entanto, sem reabrir a discussão do sentido constitucional da presunção de inocência, o que seria um risco diante da mudança de composição da Corte, ainda mais se tivermos como pano de fundo um caso tão chocante quanto o do incêndio ocorrido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul .

A discussão é antiga. Apesar da resistência de parte da doutrina e da jurisprudência, aqueles que acompanham Júris presenciam, há décadas, a determinação da prisão dos condenados, logo após o julgamento em primeira instância, pelos mais evasivos argumentos (geralmente, ligados à gravidade do crime e à demora da conclusão do caso).

Não esqueçamos, inclusive, que o próprio ministro Dias Toffoli, ao votar nas ADCs que proibiram a prisão automática em segunda instância, fez ressalva às decisões do Tribunal do Júri6, mencionando expressamente o caso Kiss. A posição à qual se filiou o ministro ganhou força no legislativo e a inclusão da possibilidade de prisão imediata nos julgamentos pelo Júri no CPP representou uma vitória nesse sentido.

Assim, mesmo antes da alteração promovida pelo pacote anticrime, em vigor desde de janeiro de 2020, a questão da execução provisória da pena no Tribunal do Júri já batia às portas do STF. O RE 1.235.340, de relatoria do min. Barroso, por exemplo, teve repercussão geral reconhecida em outubro de 2019, no Tema 1068. O julgamento virtual iniciou-se em abril de 2020, já na vigência da nova lei , e a tese proposta pelo ministro relator, acompanhado pelo min. Dias Toffoli7, foi no sentido de que "a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada".

Abriu a divergência o min. Gilmar Mendes, propondo tese em sentido oposto: "A Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (art. 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (art. 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do art. 312 do CPP, pelo Juiz Presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados"8. Ao final, o ministro aproveitou para declarar, expressamente, sua posição pela inconstitucionalidade do art. 492, I, e, do CPP. Em sequência, antevendo um desenrolar preocupante, pediu vista o min. Lewandowski.

Pois bem, se do ponto de vista de timing político o momento não é dos mais favoráveis para examinar a questão da execução imediata da pena imposta pelo Tribunal do Júri, do ponto de vista jurídico, os argumentos são sólidos. A regra do art. 492, I, e, no CPP tem vício de origem irremediável, pois viola direta e frontalmente a Constituição Federal, ao abrir uma exceção permissiva à execução provisória não autorizada pelo art. 5º, inc. LVII da CF. Contudo, esta regra constitucional não está sujeita a defeasibility, ou seja, não pode ser afastada, derrotada ou superada em um dado caso concreto9. Não pode, menos ainda, ser desautorizada por uma regra infraconstitucional.

Alguns poderão contra-argumentar, no mesmo sentido dos ministros Barroso e Dias Toffoli no RE 1.235.340, que o caso do Tribunal do Júri é especial por conta do ingrediente constitucional da "soberania dos veredictos" (art. 5º, inc. XXXVIII, c, CF). Nessa linha, tal soberania seria capaz de derrotar a regra da presunção de inocência, abrindo espaço para o cumprimento imediato de qualquer quantum de pena fixado no âmbito do Tribunal do Júri. Ou seja, a sua interpretação seria, surpreendentemente, ainda mais abrangente do que a regra do art. 492, I, e, no CPP.

É preciso discordar frontalmente desse entendimento. Afinal, a soberania dos veredictos tem estrutura lógica de regra de competência e julgamento e é uma garantia fundamental do acusado (não da sociedade), estando intencionalmente localizada no art. 5º da CF — "dos direitos e garantias individuais". Ademais, a soberania dos veredictos não torna a decisão do Tribunal do Júri incindível ou imutável, sendo esta, ainda, apenas uma decisão em primeira instância, sujeita, assim, ao controle dos Tribunais.

Alguém poderia, ainda, indagar: mas, se a soberania dos veredictos é regra, então como é possível anular um Júri em caso de decisão "manifestamente contrária à prova dos autos" (art. 593, III, d, CPP)10? A pergunta não é trivial e a questão está em discussão no ARE 1.225.185 (Repercussão Geral Tema 1087), de relatoria do min. Gilmar Mendes, com data de julgamento para 10/02/2022.

Em nossa posição, essa hipótese recursal somente deve estar disponível à defesa. Como se observa, a soberania dos veredictos é garantia do acusado, cedendo muito excepcionalmente se e quando puder, de algum modo, prejudicá-lo. Não faria o menor sentido permitir uma condenação, pelo Tribunal do Júri, de um réu que claramente seria absolvido pelo juízo togado. A recíproca não é verdadeira, justamente pelo quesito da clemência (art. 483, III, e §2º, CPP)11. Uma vez que a soberania dos veredictos é uma garantia do réu, o Júri pode, sim, absolvê-lo, por clemência, ainda que as provas dos autos indiquem tecnicamente a condenação — e essa decisão não poderá ser atacada recursalmente pela acusação12.

Concluída esta observação, voltemos à questão da execução provisória da pena no Júri. Recorrer à soberania dos veredictos com a intenção de afastar a presunção de inocência é um equívoco. Ambas as regras, como referido, servem exclusivamente ao acusado, não à noção (vaga) de coletividade. A própria localização de tais regras na Constituição bem esclarece a questão. Elas não compõem os direitos sociais (ou à prestações do Estado), mas sim os direitos individuais que se opõem ao poder estatal -as liberdades inderrogáveis dos cidadãos (cláusulas pétreas).

Mais: ainda que se aceitasse a falaciosa ideia de que a soberania dos veredictos pode ser utilizada contra o réu, fato é que uma regra constitucional — a presunção de inocência — não poderia ser afastada por outra, nem de igual, nem de menor hierarquia. Seria o mesmo que dizer que a soberania dos veredictos poderia justificar a criação de uma regra no Código Penal ou no Código de Processo Penal, por exemplo, que negasse vigência a qualquer das garantias e dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal, como a legalidade em direito penal, o devido processo legal ou a proibição de penas cruéis.

Por esses motivos, e tantos outros, cabe ao STF, mais uma vez, cumprir seu papel de guardião da Constituição e julgar inválida a regra do art. 492, I, e, do CPP, assim como qualquer outra interpretação judicial que pretenda impor o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da condenação. A presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado, não pode estar à deriva nem da comoção do caso nem da gravidade do crime.
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1 CPP, Art. 492 - "Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I - no caso de condenação: (...) e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;"

2 Estamos de acordo com a crítica de Alberto Zacharias Toron (https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/alberto-toron-justica-todos-boate-kiss).

3 O Departamento de Amicus Curiae do IBCCRIM, o qual temos a honra de integrar, já apresentou pedido de ingresso como amicus curiae no bojo da Suspensão de Liminar n. 1.504. Acesse o pedido na íntegra: <https://www.ibccrim.org.br/media/posts/arquivos/arquivo-22-12-2021-11-01-11-224397.pdf>

4 Os acórdãos das ADCs foram publicados em meados de 2020. Conferir: https://www.conjur.com.br/2020-nov-16/stf-publica-acordaos-julgamento-prisao-segunda-instancia

5 Exemplificativamente, nas ADIs 6.735 (ABRACRIM) e 6.783 (CFOAB).

6 Ver <https://www.conjur.com.br/2019-nov-07/voto-toffoli-derruba-entendimento-prisao-instancia>

7 Ver <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5776893>

8 O Departamento de Amicus Curiae do IBCCRIM, o qual temos a honra de integrar, já apresentou Parecer no RE 1.235.340, defendendo a impossibilidade de execução provisória da pena em qualquer contexto, inclusive no Tribunal do Júri, na linha que seguiu a divergência (https://arquivo.ibccrim.org.br/acoes_amicus_curiae). No mesmo sentido, o precendente da 2a Turma do STF, em julgamento unânime do HC 174759/CE, em 10 de outubro de 2020, de relatoria do Ministro Celso de Mello.

9 Sobre o tema da defeasibility, ver ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 17. ed. Malheiros, 2016, p. 141 ss.

10 CPP, Art. 593. “Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: (...) d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”.

11 CPP, Art. 483. “Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; § 2o Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado?”.

12 No ARE 1.225.185 (Repercussão Geral Tema 1087), o Departamento de Amicus Curiae do IBCCRIM, o qual temos a honra de integrar, apresentou parecer no sentido de que “é preciso conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 593, III, d, do CPP, de modo a estabelecer que tal fundamento recursal está disponível apenas à defesa e tem por finalidade anular exclusivamente decisões condenatórias do Conselho de Sentença que sejam manifestamente contrárias às provas dos autos”.
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*Maíra Fernandes é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC Rio e da FGV Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.
*Raquel Scalcon é advogada e professora de Direito Penal na FGV Direito-SP; membro do Departamento de Amicus Curiae do IBCCrim.
*Pollyana de Santana Soares é advogada criminalista e membro Departamento de Amicus Curiae do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
Fonte: Conjur

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