Como sabemos, o próprio Código de Trânsito (CTB- Lei nº 9503/97) em seu artigo 230, inciso I, estabelece punições de natureza administrativas contra quem conduz veículos com sinais identificadores alterados: prevendo multa e apreensão do veículo. Entretanto, a referida sanção administrativa sanciona somente o indivíduo surpreendido pego na condução conduzindo do veículo em condições irregulares, sendo necessário, portanto, a intervenção do Direito Penal, buscando coibir o próprio ato de adulteração, realizado com frequência por organizações criminosas juntamente com delitos de furto, roubo e receptação, trazendo uma verdadeira simbiose delitiva.
Na redação conferida pela Lei nº 9.426/96, o art. 311 do Código Penal se referia especificamente ao veículo automotor, e tinha como condutas típicas somente os atos de adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor.
A nova alteração legislativa veio ampliar a criminalização de comportamentos, antes considerados como atípicos.
Vejamos as alterações legais no quadro abaixo:
Redação anterior à Lei nº 14.562/2023 | Redação com o advento da Lei nº 14.562/2023 |
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Art. 311 CP. Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento. Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996) |
“Art. 311 CP. Adulterar, remarcar ou suprimir número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, de semirreboque ou de suas combinações, bem como de seus componentes ou equipamentos, sem autorização do órgão competente:(Redação dada pela Lei nº 14.562, de 2023) Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)” |
§ 1º - Se o agente comete o crime no exercício da função pública ou em razão dela, a pena é aumentada de um terço. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996) | § 1º - Se o agente comete o crime no exercício da função pública ou em razão dela, a pena é aumentada de um terço. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996) |
§ 2º Incorrem nas mesmas penas o funcionário púbico que contribui para o licenciamento ou registro de veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial. | “§ 2º Incorrem nas mesmas penas do caput deste artigo:(Redação dada pela Lei nº 14.562, de 2023) I – o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial;(Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023) II – aquele que adquire, recebe, transporta, oculta, mantém em depósito, fabrica, fornece, a título oneroso ou gratuito, possui ou guarda maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração de que trata o caput deste artigo;ou (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023) III – aquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)” |
Sem correspondente | “§ 3º Praticar as condutas de que tratam os incisos II ou III do § 2º deste artigo no exercício de atividade comercial ou industrial:(Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023) Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023)” |
Sem correspondente | § 4º Equipara-se a atividade comercial, para efeito do disposto no § 3º deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive aquele exercido em residência. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 2023) |
Dentre as alterações de maior relevância, podemos elencar as seguintes, vejamos:
1) Inclusão do verbo “suprimir” ao artigo 311 do Código Penal
A redação anterior previa somente os verbos “adulterar” e “remarcar”.
Adulterar significa alterar, modificar, ao passo que remarcar é marcar novamente o sinal identificador. Assim, caracteriza-se como crime, portanto, quando o agente adultera o chassi de um veículo colocando nova marca sobre a anterior, quando substitui as placas verdadeiras por falsas, etc.
A nova redação típica incluiu a conduta nuclear de “suprimir”, devendo ser entendida como o ato de remover, retirar. Podemos aqui abordar a hipótese de supressão total do chassi do veículo, sem colocação de novo sinal sobreposto, o que em tese não se enquadraria na situação de adulteração ou remarcação, por se tratar de analogia in malam partem, sendo agora perfeitamente típica.
Cabe aqui também rediscutir a conduta daquele que cobre a placa do veículo para evitar multas, por exemplo. O entendimento adotado pelo STF, antes da alteração legislativa, era no sentido de que a conduta apresentava-se como penalmente atípica.
Com a nova redação legal, parece-nos que a conduta de ocultar placa, colocando algum adereço sobre a mesma, passa a ser abarcada pelo verbo suprimir, considerando que a supressão pode se materializar de maneira temporária. Ao contrário das condutas originalmente previstas no tipo penal, adulterar e remarcar, que parcela da doutrina pressupunha a definitividade, a supressão admite a feição temporária, motivo pelo qual, com a entrada em vigor da nova redação legal, entendemos como típica a cobertura da placa veicular, quando inexistente outra identificação.
Também apresenta-se como típica a conduta de retirar ambas as placas, dianteira e traseira, em observância ao art. 115, §1º do CTB, salvo se veículos de duas ou três rodas, nos quais há dispensa da placa dianteira (§6º). Isso porque a retirada de todos os sinais identificadores, retira por completo, a possibilidade de identificação regular veicular, enquadrando-se no artigo 311 do Código Penal.
Cabe ressaltar que não podemos entender como penalmente típica, contudo, a conduta do agente que retira uma das placas do veículo, restando, entretanto, a infração administrativa, no caso de condução, prevista no art. 230, IV, CTB, considerando que o comportamento, não se adequa em sua integralidade à conduta nuclear suprimir, que pressupõe a impossibilidade de identificação veicular, afastada, in casu, pela existência de uma das placas.
2) Utilização de fita adesiva nas placas veiculares
A doutrina divergia no tocante à colocação de fitas adesivas nas placas dos veículos para alteração do(s) seu(s) números. O primeiro entendimento, adotado pelo Supremo Tribunal Federal, sustentava pela tipicidade penal da conduta, pois teríamos configurada a violação dos sinais externos dos veículos destinados à identificação.
Já o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, entendia que a adulteração ou remarcação do sinal identificador deveria ser permanente, não configurando o delito a alteração temporária e perceptível por qualquer pessoa. Entretanto, prevalecia também perante o STJ o entendimento pela tipicidade do referido comportamento ao artigo 311 do CP.
Com a nova redação, não houve o devido esclarecimento, podendo, entretanto, ser entendido que, com a inclusão do verbo suprimir, a colocação de fita isolante suprime ao menos um dos sinais identificadores, sendo a conduta, portanto, passível de adequação ao artigo 311 do CP, na modalidade supressão.
3) Inclusão do elemento normativo “sem autorização legal” na nova redação do artigo 311 do CP
A nova redação trazida ao artigo 311 do Código Penal inovou ao incluir o elemento normativo “sem autorização do órgão competente”, não previsto na redação anterior do referido dispositivo legal.
Assim, agora, existindo autorização do órgão competente, haverá a exclusão da tipicidade penal. Podemos citar como exemplo, a situação do indivíduo que está conduzindo uma moto sem placa, mas dentro do prazo para emplacamento, ou, ainda que fora do prazo, comprovando que está com agendamento feito junto ao órgão competente para colocação da placa.
4) Figuras equiparadas – artigo 311, §2º CP
Entre as figuras equiparadas do parágrafo segundo, temos os incisos I, II e III:
No que se refere ao inciso III, os verbos nucleares são adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, manter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado.
Fazendo uma simples comparação com o crime de receptação qualificada, previsto no 180, §1º do CP, resta evidenciado que, na realidade, por utilizar os mesmos verbos nucleares, a figura prevista no inciso III do §2º do art. 311 do CP em muito se assemelha a uma forma especial de receptação, apesar de não fazer expressa menção à “coisa que sabe ser produto de crime”, elementar do crime de receptação.
Dos verbos previstos no referido inciso III, o que merece maior atenção refere-se ao “conduzir”. Conduzir representa o ato de dirigir um veículo, seja ele automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado”.
Importante esclarecer que deve prevalecer a orientação de que a expressão “sabe” (dolo direto)está contido em “deve saber”, pois, se o legislador pretende punir mais severamente o agente que deveria ter conhecimento da origem criminosa do bem, resta claro que deseja também punir aquele que possui plena conhecimento sobre a proveniência criminosa do bem.
Cabe destacar que a figura equiparada não previu a hipótese de sinal identificador suprimido, contemplada pelo caput, restringindo-se somente à adulteração e remarcação. Assim, conduzir um veículo sem placas, sem autorização do órgão competente, não caracteriza infração penal, mas sim, tão somente pós factum impunível, consequência natural da supressão do sinal identificador revisto no caput do artigo 311 do CP. Isso ocorre, pois a condução de veículo com as placas suprimidas, apesar da previsão do verbo conduzir no inciso III, não se amolda à elementar “que devesse saber estar adulterado ou remarcado”, haja vista a não previsão do “suprimido” no referido inciso, inviabilizando, assim, a lavratura de auto de prisão em flagrante. Entretanto, a depender do caso concreto, após devida investigação, não se provando a supressão por parte do condutor, o comportamento pode se amoldar ao crime de receptação (art. 180, CP), caso fique evidenciado que o veículo seja produto de crime.
Por fim, merece destaque, a necessidade de exame pericial para constatação do tipo penal, considerando tratar-se de delito com vestígios materiais, aplicando-se a regra prevista no artigo 158 do Código de Processo Penal, seja ele direto ou indireto.
1) RHC 116371/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 13.08.2013.
2) REsp 503.960/SP, rel. Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJSP), 6ª Turma, j. 16.03.2010.
3) Agravo Regimental no HC. AGRg no HC 496325 SP 2019/006232404
Por Sandro Caldeira (@sandrocaldeira), Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro; especialista em Direito Penal e Processo Penal, com mestrado em Criminologia pela UFP/Porto/Portugal; ampla experiência em cursos de graduação e pós-graduação e preparatórios para concursos públicos e Exames da OAB e alta performance nos estudos.
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