Juíza pede que você monitore seu filho: 'Notei algo muito errado na escola'

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Via @uolnoticias | "Percebi que tinha algo de muito errado na escola. Havia um sofrimento invisível", conta a juíza Vanessa Cavalieri. Depois de passar dez anos analisando casos na Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, ela enxergou uma negligência generalizada e percebeu que precisava fazer mais do que só condenar adolescentes infratores.

"Era inaceitável ver aquilo acontecer, precisava sair da vara para dialogar com a sociedade sobre tudo o que estava vendo na sala de audiência", disse em entrevista ao UOL.

Muito antes do sucesso da série "Adolescência", da Netflix, ela virou uma das principais vozes pela regulação das redes sociais como forma de proteger a nova geração, pelo rígido monitoramento das crianças e adolescentes na internet e pela ação das escolas contra o bullying.

Recentemente, o UOL revelou mais uma morte de criança em desafios que trendaram nas redes e as táticas da chamada machosfera para manipular um exército de 600 adolescentes e como grupos virtuais estimulam estupro virtual, com incentivo à automutilação, pedofilia e "violência por diversão".

No Brasil, há hoje 137 canais no YouTube com conteúdo explicitamente misógino, somando mais de 105 mil vídeos e cerca de 152 mil inscritos, segundo o NetLab da UFRJ para o Ministério das Mulheres.

Apesar das diretrizes internas das redes sociais, as plataformas não estão dando conta de remover vídeos ou agir para evitar acesso a conteúdos, diz Débora Salles, coordenadora da pesquisa.

Mas, para Mariana Valente, professora da Universidade de St.Gallen e diretora do InternetLab, centro independente de pesquisa em internet e direitos humanos, "não há interesse em controlar e eliminar esses conteúdos", porque "as redes sociais são baseadas em uma economia da atenção que premia conteúdos sensacionalistas e divisivos", como os dos incels.

"A internet é uma rua virtual em que o jovem sai sozinho e sem dizer para onde vai", alerta Cavalieri aos pais.

Veja abaixo a entrevista na íntegra:

UOL: O que te motivou a se engajar nesse tema?

Vanessa Cavalieri: Sou mãe de duas adolescentes, então, além dos casos que já acompanhava na vara, também lido com elas e com os amigos delas.

Eu comecei a perceber que havia alguma coisa de muito errado na escola. 

Havia sofrimento de muitos alunos, e esse sofrimento era invisível. As crianças e adolescentes passavam por violência, eram negligenciados e ninguém via, nada acontecia. Ele só era visto quando cometia um ato infracional, quando ele deixava de ser vítima e se tornava agressor.

Era inaceitável ver aquilo acontecer. Eu precisava sair da vara para dialogar com a sociedade sobre tudo aquilo que eu estava vendo dentro da sala de audiência.

UOL: Há um perfil do adolescente que comete infrações?

Cavalieri: Normalmente, são meninos que passaram por dificuldade de socialização na escola desde cedo. Que não tiveram amigos, sofreram bullying durante muitos anos e com uma família disfuncional. Ou seja, famílias que não fizeram seu papel de cuidar, dar limite e monitorar. São meninos negligenciados também dentro de casa.

Acho que a 'cereja do bolo', o elemento mais importante, é o abandono digital.

Eles passam a usar a internet sem nenhuma supervisão de um adulto e, nesse ambiente virtual, encontram grupos extremistas que os enxergam, escutam, fazem amizade. Encontram acolhimento e pertencimento em um lugar organizado em que eles não se sentem inadequados.

Juíza Vanessa Cavalieri
Imagem: Arquivo pessoal

UOL: Houve um aumento nos casos de crimes virtuais ao longo dos anos?

Cavalieri: Não chamamos de crimes, porque são menores, mas, sim, esses casos têm aparecido com mais frequência pelo menos desde 2019. Não temos um levantamento, mas sabemos que aumentou significativamente na pandemia.

A maioria dos casos que lido são de furto de celular, roubo e tráfico de drogas, mas infrações virtuais têm chegado com mais frequência. Muitos casos de racismo, ameaça, divulgação de imagens explícitas, pornografia infantil... Também tem chegado discurso de ódio, incentivo à automutilação, estupro virtual e situações em que os meninos repassaram 'nudes' de uma colega. Há casos de neonazismo.

UOL: Como esses casos são encaminhados?

Cavalieri: A gente não fala em punição, mas em responsabilização e práticas restaurativas. O adolescente fica sujeito a medidas socioeducativas, que podem ser mais brandas ou graves, dependendo do que aconteceu.

Quando não tem violência ou grave ameaça, a medida socioeducativa costuma ser prestação de serviço à comunidade ou liberdade assistida. Quando é mais grave, como indução ao suicídio ou à automutilação ou estupro virtual, o adolescente pode perder a liberdade.

Em casos de racismo e de conflito escolar, convidamos a vítima para um processo restaurativo —e muitas gostam, têm interesse e querem participar. Então, fazemos o círculo de construção da paz, que, muitas vezes, termina até sem medida socioeducativa.

Organizamos grupos reflexivos de gênero para os adolescentes que praticam violência misógina, por exemplo. Determinamos o monitoramento das redes sociais do jovem pelos pais. Às vezes, recomendamos tratamento psicológico e psiquiátrico.

E defendemos que as escolas combatam o bullying, identificando e ajudando alunos com dificuldade de inclusão. O Protocolo Eu Te Vejo reúne estratégias para escolas e famílias, porque acreditamos que uma rede de proteção ajuda muito a reduzir a violência.

As escolas que se interessam recebem um treinamento —fizemos a capacitação da rede pública de ensino do Rio, por exemplo. Também promovemos palestras para os pais sobre parentalidade funcional e supervisão dos filhos.

UOL: E como os pais podem equilibrar a privacidade dos filhos com o monitoramento nas redes sociais?

Cavalieri: Os pais não serão invasivos se monitorarem os filhos porque eles precisam lembrar que não existe privacidade na internet. Grupos de Whatsapp não são ambientes privados. O que a gente faz no ambiente virtual já é monitorado pelas big techs e pela polícia.

"Se os adolescentes não têm idade para estarem sozinhos na rua, então também não podem estar na internet sem supervisão de adulto. A internet é uma rua virtual em que ele sai sozinho e sem dizer para onde vai."

É preciso instalar aplicativos nos celulares dos filhos para controle de tempo em rede social, proibir o acesso a conteúdos de violência extrema e adultos, como pornografia e apostas online, além de determinar um horário para dormirem. O que a gente tem visto são adolescentes privados de sono.

UOL: A regulação das redes sociais ajudaria?

Cavalieri: É uma das questões mais urgentes que a sociedade precisa debater, e o Congresso implementar.

A gente é a favor do PL 2628, que já foi aprovado no Senado e enviado para a Câmara, porque protege crianças e adolescentes no ambiente virtual e não dá mais para rede social ser o único ramo empresarial no país acima da lei.

"Não é possível que o TikTok mantenha no ar há anos esse desafio do desodorante. Uma criança morreu em 2022 por causa disso, e o conteúdo continua aparecendo e sendo impulsionado pelo algoritmo."

[Outra menina, Sarah Raissa Pereira de Castro, morreu no último dia 10 após inalar o aerossol do desodorante e sofrer parada cardiorrespiratória]

E também sou a favor da verificação etária para evitar que crianças usem redes sociais.

"Falamos da violência como se ela fosse o problema, mas ela é sintoma de necessidades não atendidas. Precisamos olhar para essas necessidades se quisermos evitar novas agressões."

Pedro Vilas Boas
Fonte: @uolnoticias

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