Existe espaço para literatura no Tribunal do Júri?

bit.ly/2JNxHlJ | Diz-se que o Direito e a Literatura são ficções. Que Direito é uma espécie de ficção essencial, enquanto que a literatura se trata de algo que está mais para o campo reflexivo, capaz de problematizar a realidade.

Se de um lado o Direito pretende aprisionar o presente a fim de projetar o futuro, a literatura propõe uma reflexão a partir da linguagem, transportando a realidade e possibilitando uma visão de mundo ampliada.

Alberto Manguel, na obra “No bosque do espelho: ensaios sobre as palavras e o mundo”, relata que: “De uma forma misteriosa, a aplicação das leis de uma sociedade é parecida com um ato literário: ela fixa a ação criminosa numa página, define-a com palavras, dá-lhe um contexto, que não é o do puro horror do momento, e sim o de sua recordação.”

Certa vez um grande advogado falou que os melhores livros sobre o Tribunal do Júri não falam sobre o Tribunal do Júri, eles falam sobre a alma humana. E por isso a necessidade de ler os clássicos.

Até porque, o tribuno nada mais é do que um contador de histórias. E só há um único jeito de ser um bom contador de histórias: lendo as melhores histórias.

Além de somar na qualidade da narrativa, a literatura nos traz conceitos dos mais belos, justamente em virtude do mencionado no segundo parágrafo deste texto: o conhecimento literário nos permite uma ampliação da visão de mundo.

Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez, através da corrente que ficou mundialmente conhecida como realismo mágico, possui uma das mais brilhantes narrativas que conhecemos. Capaz de prender o leitor do início ao fim, Cem Anos de Solidão agrega muito na bagagem intelectual do tribuno. Um dos fatos que faz-se necessário ressaltar da obra de Gabo é a importância de a história ter um bom começo, já que sua primeira frase ficou mundialmente conhecida: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento(…)”. Gabo conseguiu fazer uma metáfora da condição latino-americana ganhar um Nobel de Literatura.

O personagem Dom Quixote, criado por Miguel de Cervantes, conceitua a liberdade de uma forma linda e simples, ao afirmar, para seu fidalgo Sancho, ser a liberdade um dos bens mais preciosos e que por ela, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida. O mesmo personagem é também dono da célebre frase: “A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão.”

Eduardo Galeano, numa linha mais poética, ao ser questionado sobre o que é a utopia, responde com a sensibilidade que lhe é peculiar:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Ainda sobre Galeano, este utiliza uma metáfora forte para explicar como funciona a justiça, ao dizer que:

A justiça é como uma serpente, só morde os pés descalços.

Qualquer semelhança com o que acontece no Brasil não é coincidência.

E o que dizer do erro de Otelo, personagem de William Shakespeare? Otelo conta para Desdêmona, sua esposa, que assassinou Cássio por saber que ele era seu amante. Ao ver Desdêmona chorar, Otelo possui certeza absoluta que ela o traiu. Contudo, Desdêmona chorou porque com Cássio morto, seria impossível provar que nunca houve traição.  Shakespeare nos ensina que, para evitar o erro de Otelo, é preciso resistir à tentação de saltar para as conclusões, sendo necessário considerarmos motivos alternativos, diferentes daqueles que suspeitamos quando estamos contaminados pelas emoções.

Em Dom Casmurro, Machado de Assis foi capaz de plantar um questionamento que perdura até hoje na mente dos leitores: Capitu traiu ou não Bentinho? Propositalmente, tal pergunta não é respondida em seu livro, tendo ambos os lados teorias plausíveis para justificar se houve ou não traição. A dúvida acerca do que, de fato, aconteceu é uma característica desta história magnífica. Seria Machado de Assis um crítico ferrenho da busca incansável pela “verdade real dos fatos”?

Jorge Amado, no brilhante livro Capitães de Areia, demonstra, com uma narrativa capaz de prender o autor do início ao fim, que por trás de um “criminoso” existe toda uma história de vida que, por vezes, é capaz de justificar determinados atos. Jorge nos mostra que, para que um julgamento seja realizado de forma justa, faz-se necessário uma análise ampla acerca da vida do transgressor, sobretudo do contexto em que ele está inserido.

A obra de Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo, traz um olhar diferenciado e aprofundado na mente de um jovem que comete um assassinato e se vê perseguido por sua consciência. Nesta novela, o leitor é envolvido em inúmeras questões e detalhes que passam pela cabeça do assassino, identificando-se com traços psicológicos e morais do mesmo.

Dostoiévski expõe de maneira visceral as mazelas do indivíduo e da sociedade que o cerca: a polícia que prende um inocente que se intitulou o culpado pelo homicídio devido à pressão que sofria; a morte de uma senhora usurária, que emprestava dinheiro a juros altíssimos e maltratava a irmã mais nova, como justificativa para atingir seu potencial, o que não seria um ato moralmente condenável, mesmo que fosse contra a lei; a perturbação que essa ação causa ao personagem, fazendo com que o mesmo busque o “castigo” através de sua confissão como meio de aliviar sua consciência.

Tem-se, portanto, que a literatura complementa o direito, sobretudo porque uma boa narrativa é imprescindível ao mundo jurídico. Mas mais do que isso: a literatura é capaz de humanizar o Direito mostrando que este não precisa sempre desempenhar o papel de vilão da história.

Para o doutrinador Lenio Streck,

Há vários modos de dizer as coisas. Uma ilha é um pedaço de terra cercado por água, mas também pode ser um pedaço de terra que resiste bravamente ao assédio dos mares. É comum dizer que o galo canta para saudar a manhã que chega; mas, quem sabe, ele canta melancolicamente a tristeza pela noite que se esvai. (STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. Ed. Atlas S.A, São Paulo, 2013, pg. 227)

Segundo o autor, olhando-se a operacionalidade, a realidade não nos toca; já as ficções sim. Neste contexto, alguns livros tocam mais sensivelmente o mundo jurídico: como falar em Processo Penal sem mencionar o famoso livro de Franz Kafka, O Processo, onde o personagem Josef K. remete ao paradigma da pessoa que é perseguida judicialmente sem conhecer as reais causas de tal persecução? Kafka, desta forma, denuncia o autoritarismo da Justiça que se vê com o poder nas mãos para condenar alguém, sem lhe ofertar meios – Constitucionais, pois não – de defesa à altura do aparato estatal.

Por fim, Os Miseráveis, de Victor Hugo, é uma verdadeira aula de criminologia. Destaca-se a homenagem feita por Cosette, que manda gravar no túmulo de seu pai adotivo, Valjean, um dos versos mais lindos que conhecemos:

Dorme. 

Viveu na terra em luta contra a sorte 

Mal seu anjo voou, pediu refúgio à morte 

O caso aconteceu por essa lei sombria

Que faz que a noite chegue, apenas foge o dia!

Portanto, caros Leitores, seja pela importância de uma boa narrativa, pelos conceitos sensíveis que alguns autores são capazes de trazer, ou então pelas metáforas que podem –  e devem – ser utilizadas, a resposta é: sim! Existe espaço para literatura no Tribunal do Júri.
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Por Matheus Menna e Ana Carolina Soares Warde
Fonte: Canal Ciências Criminais

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