40 g de m4conh4: STF confunde despenalização com descriminalização

40 g maconha stf confunde despenalizacao com descriminalizacao
Via @consultor_juridico | Portar droga para uso próprio não é mais crime e o porte de até 40 gramas de maconha já não configura infração penal, pois até essa quantidade, presume-se que se destina ao consumo pessoal. A conduta continua proibida, passando a ser considerada infração administrativa, com as sanções previstas no artigo 28, I e III, da Lei de Drogas, a saber: advertência sobre os efeitos das drogas e obrigação de frequentar cursos educativos.

Foi cancelada, no entanto, a sanção do inciso II do referido artigo 28, que era a prestação de serviços à comunidade. As penalidades serão aplicadas pelo Juizado Especial Criminal e não possuem mais natureza penal. Assim decidiu o plenário do STF, por escassa maioria (6 a 5), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, com repercussão geral (Tema 506), relator com voto vencedor, ministro Gilmar Mendes.

Divergiram desse entendimento os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Luiz Fux. A decisão teve como fundamentos a liberdade individual e o direito à privacidade (CF, artigo 5º, X). Ficou decidido que, como a Lei de Drogas não havia determinado a quantidade necessária para caracterizar tráfico de drogas, tal aferição, na prática, acabava sendo feita de acordo com as peculiaridades de cada caso concreto, potencializando, no dia a dia, uma seletividade discriminatória contra jovens pobres, pardos e negros.

Concluiu-se então que seria recomendável fixar um parâmetro quantitativo para presumir consumo pessoal, admitindo-se, no entanto, prova em contrário. Síntese da decisão: (a) não comete mais infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, trouxer consigo ou transportar qualquer droga para consumo pessoal; (b) as sanções perdem sua natureza penal e se tornam meramente administrativas; (c) são mantidas as penalidades de advertência sobre os efeitos da droga (art. 28, I) e comparecimento a programas educativos; (d) fica cancelada a pena de prestação de serviços à comunidade; (d) as sanções que foram mantidas, embora não penais, serão aplicadas por juiz criminal; (d) a quantidade de até 40 (quarenta) gramas de maconha presume-se destinar-se ao consumo pessoal, admitindo-se prova em contrário.

Cabe agora, analisar as possíveis repercussões dessa decisão. A atual Lei de Drogas, Lei nº 11.343/2006, pôs fim à confusão criada pela anterior Lei nº 10.409/2002, que todo o capítulo relativo aos crimes e às penas declarado inconstitucional. Com isso, a parte penal da antiga Lei n. 6.368/76 continuou em vigor. Criou-se, portanto, um Frankenstein jurídico, regido na parte processual pela Lei nº 10.409/2002 e a na penal, pela legislação de 1976. Esta, em seu artigo 16, assim definia o crime de posse de droga para uso próprio:

“Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determina dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e o pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.”

Como se percebe, em vez de utilizar a expressão droga, essa lei empregava equivocadamente o termo substância entorpecente, que é apenas uma dentre as seguintes espécies de drogas: (a) psicolépticas ou entorpecentes: provocam dormência ou torpor, caso dos anestésicos, barbitúricos e calmantes; (b) psicoanalépticas ou estimulantes: causam excitação, como a cocaína e as anfetaminas; (c) psicodislépticas ou alucinógenas: provocam alucinações, como a heroína, o ácido lisérgico (LSD) e a maconha, a qual pode  levar a alterações cognitivas que vão desde estados depressivos até psicose e esquizofrenia, dependendo da quantidade consumida, estágio de dependência ou grau de vulnerabilidade do usuário.

Toda essa ultrapassada legislação foi revogada pela moderna e bem elaborada Lei nº 11.343/2006, a qual, no seu artigo 28 passou a dispor: “Artigo 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I) advertência sobre os efeitos das drogas; II) prestação de serviços à comunidade; III) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

À época, houve o mesmo debate que agora divide o STF. Uma primeira corrente dizia que houve descriminalização, passando a detenção para consumo pessoal a constituir uma infração sui generis, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador. [1]

Baseava-se no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei nº 3.914/41): “Art. 1º. Considera-se crime a infração penal à qual a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com pena de multa.” De acordo com esse entendimento, não há crime se não for cominada no tipo legal, ao menos alternativamente, pena privativa de liberdade.

Nosso entendimento [2]

Não houve descriminalização porque: (a) o artigo 28 encontra-se no Capítulo III da Lei de Drogas, que trata “Dos Crimes e das Penas”, em clara sinalização legislativa de que não é infração administrativa; (b) a Lei de Introdução ao Código Penal é um entulho legislativo do Estado Novo, em descompasso com a  atual ordem jurídica [3]; (c) a CF previu, em seu artigo 5º, XLVI, que as infrações penais podem ser apenadas com prestação social alternativa e suspensão de direitos; (d) não se pode confundir despenalização, que é a eliminação da pena privativa de liberdade, com descriminalização, que é a revogação do crime; (e) as penas previstas no artigo 28, I, II e III, da  Lei n. 11.343/2006 são aplicadas pelo Juizado Especial Criminal, cuja competência legal se limita ao julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo; (f) se fossem penalidades administrativas, não poderiam ser aplicadas pelo Jecrim, por falta de competência legal [4]; (g) a criminalização do porte para consumo pessoal não viola o princípio da alteridade, na medida em que não se pune o uso, mas o perigo social representado pela potencial circulação da droga; (h) a lei não pune o usuário por fazer mal à própria saúde, mas seu comportamento gerador de risco à sociedade, logo, não há que se falar em violação de privacidade ou liberdade individual, mas tutela do interesse coletivo; (i) estratégias de combate ao tráfico de drogas refogem ao âmbito da competência constitucional do STF, sendo atribuição típica dos Poderes Executivo e Legislativo, pois comportam decisões discricionárias de natureza administrativa e política. Era exatamente esse o anterior entendimento do próprio STF:

“O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que a lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da Lei n. 11.343/ 2006 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). Questão de Ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/2006 não implicou abolitio criminis [5].”

A decisão do STF, ao confundir despenalização com descriminalização, vai gerar novamente insegurança jurídica. A Lei nº 11.343 está em vigor desde 8 de outubro de 2006, sem qualquer declaração anterior de inconstitucionalidade. A opção política do legislador em criminalizar o perigo de circulação da droga deve ser respeitada, pois, além de não conflitar com a CF, atende ao comando de seu artigo 5º, caput, que exige proteção eficiente ao bem jurídico. A lei obedeceu ao princípio da proporcionalidade, ao não cominar pena privativa de liberdade e atendeu às exigências do princípio da alteridade, não criminalizando o uso, apenas a posse para uso futuro. Estabeleceu ainda clara diferenciação em relação ao tráfico, punido em grau bem mais elevado de censurabilidade (reclusão de 05 a 15 anos e multa pesada). É uma lei equilibrada e criteriosa.

A excessiva incursão principiológica tem levado o Poder Judiciário a revogar leis, com base em princípios genéricos, fazendo prevalecer concepções pessoais dos julgadores sobre a vontade objetiva da lei. Os princípios devem atuar de modo excepcional porque são mandamentos vagos de otimização, desprovidos de conteúdo definitivo e com instabilidade conceitual em seus comandos [6].

Levado às últimas consequências, um princípio poderia até invalidar a vergonhosa goleada sofrida pela seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014, por violação, em tese, ao princípio da proporcionalidade. Embora seja evidente o tom jocoso da analogia, ela serve para demonstrar o alcance ilimitado dos princípios quando utilizados para a invalidação de regras objetivas.

Situações de impunidade

Além disso, a nova posição do STF deve propiciar situações de impunidade. Considerando que um cigarro de maconha pode pesar 0,3 gramas, imaginemos a situação de alguém parado na entrada de uma escola ou casa noturna com 120 cigarros de maconha. Sua condição será presumivelmente a de usuário e não poderá ser preso em flagrante por tráfico de drogas. Embora relativa, essa é a presunção que passa a valer no momento da abordagem policial. É certo que o art. 28, § 2º, da Lei de Drogas prevê outros critérios de avaliação, como já reconheceu o STJ [7], mas a quantidade de até 40 gramas de maconha passa a ser o critério preponderante, com possibilidade de a autoridade incidir na Lei de Abuso de Autoridade, se ousar divergir. [8]

Se o sujeito estiver com até 40 gramas de maconha, haverá agora uma presunção de natureza objetiva que reduz a quase nada os demais critérios de avaliação. A decisão do STF, embora pautada em justas preocupações quanto a abordagens preconceituosas contra segmentos socialmente mais vulneráveis, não considerou que tais erros são eventuais e podem ser corrigidos na audiência de custódia.

Por outro lado, o novo critério de presunção levará as organizações criminosas a modernizarem suas estratégias de distribuição, disseminando a maconha em pequenas porções por traficante e recrutando distribuidores ainda sem antecedentes criminais, que atuarão camuflados de falsos usuários. Abordados pelos policiais, se limitarão a dizer que estão dentro do patamar de presunção de atipicidade e que qualquer ato de constrição será fruto de suposição arbitrária e discriminatória, a configurar abuso de autoridade. É evidente que tal risco já existia anteriormente, mas agora há o respaldo judicial da descriminalização pelo patamar quantitativo, que é objetivo. Por essa razão, seria recomendável ao STF uma reavaliação dessa decisão.

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[1] GOMES, Luiz Flávio. BIANCHII, Alice. SANCHES DA CUNHA, Rogério. TERRA DE OLIVERIA. William. NOVA LEI DE DROGAS COMENTADA. SP: Revista dos Tribunais, 2006, p. 108-113.

[2] CAPEZ, Fernando. LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL. SP: Saraiva, 19ª ed, p. 615/616, 2024.

[3] CAPEZ, Fernando. LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL. SP: Saraiva, 19ª ed, p. 615/616, 2024.

[4] Lei n. 9.099/95, art. 60: “O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitas as regras de conexão e continência”. Art. 61: Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (destacamos).

[5] STF, RE-QO 430.105/RJ, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.fev.2007.

[6] CAPEZ, Rodrigo. PRISÃO E MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. SP: Quartier Latin, 2017, p. 50/51.

[7] STJ, 6ª Turma, AgRg, no AREsp 1740201/AM, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 17.nov.2020

[8] Lei n. 13.869/2019, art. 27: “Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.
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Fernando Capez
é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.
Fonte: @consultor_juridico

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