A atriz pornô Mia Khalifa e sua nova história: o direito ao esquecimento – Por Marcio Ruzon

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bit.ly/2OP4cCm | Desde os primórdios, o ser humano, como ente gregário, registrava seus feitos em tábuas, cavernas e utensílios, como forma de comunicar suas ações para os componentes do seu grupo.

Grobel (2012), apresenta como primeiros registros pré-históricos conhecidos as cavernas de Altamira, na Espanha, descoberta em 1868 por Modesto Cubillas e a de Lascaux, na França, encontrada em 1940, por quatro rapazes aventureiros: Marcel Ravidat, Jacques Marsal, Georges Agniel e Simon Coencas.

Nessas cavernas foram encontradas pinturas rupestres de um realismo extraordinário, como a gravura de um homem lutando contra um búfalo. Posteriormente, fragmentos da caverna foram enviados a Chicago para análise da idade da caverna francesa, e constatou-se tratar de um período de 15.500 anos antes de Cristo. (GROBEL, 2012).

Conforme o ser humano foi aprimorando sua linguagem, novos métodos de preservar a memória foram criados.

A escrita foi um marco histórico que simplificou a disseminou a informação de forma mais rápida e mais global (considerando, é claro, seus momentos históricos, vez que somente poucos tinham acesso aos símbolos linguísticos (MARCELO DA SILVA, 2011).

Não é pretensão do presente artigo perscrutar a fundo a trajetória da linguagem ao longo dos tempos, aqui só é lançado um pano de fundo para a compreensão de que o ser humano, único dotado de razão, convencionou adotar símbolos para traduzir anseios, normas e perpetuar seus feitos.

Dos desenhos em cavernas, passando pela invenção da prensa por Gutemberg, no século XV, culminando com os emojis utilizado na internet nos dias atuais, o ser humano conseguiu sintetizar um arcabouço de vivências e saberes em letras, essas em palavras, formando frases, períodos e por fim, a comunicação (NAGAMINI, 2016).

Até para a linguagem não verbal há a necessidade de um prévio conhecimento verbal, ainda que rudimentar. O grito da criança que pede algo às lágrimas, recebe o código “choro”, que só é decodificado com esse conhecimento pretérito.

Nos anos 1990, com a globalização (comércio entre países e continentes cada vez mais estreito, fluidez na informação, culturas sem barreirais regionais), a comunicação atingiu um patamar inimaginável nas sociedades. Hoje, enquanto digito um artigo para Portugal, envio uma mensagem instantânea para uma amiga advogada na Colômbia.

E é nessa fluidez de informação, nessa rapidez de dados que residem dois perigos:

  • Sabemos (ou pensamos que sabemos) muito, mas não se sabe a fundo. Contentamo-nos com a superficialidade. Não há a busca por outras fontes que confrontem nossas convicções.
  • Queremos saber de tudo, não importam as consequências das informações. Somos ávidos por esse protagonismo, essa “primeira mão”, ou, como se diz no jargão jornalístico: “o furo de reportagem”.

E como as tintas nas cavernas rupestres, os bytes do computador também eternizam memórias. Boas e ruins. Queira o alvo da notícia ou não.

Aí que entra o direito ao esquecimento.

Cavalcante (2014) apud Almeida (2017), assim conceitua o instituto:

[…] o Direito ao Esquecimento (the right to be let alone no direito norte-americano) é aquele que uma pessoa tem de não permitir que um fato – mesmo que verdadeiro – acontecido em determinado momento da sua vida, seja exposto ao público, causando-lhe transtornos e sofrimento. Frase atribuída ao escritor Machado de Assis diz que o maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado. O Direito ao Esquecimento é aquele que assiste aos indivíduos não serem lembrados por fatos havidos no passado, aos quais não desejam mais serem vinculados, pois provavelmente sequer seriam recordados se não existisse a internet e os potentes sites de busca. As pessoas têm o direito de serem esquecidas pela opinião pública e pela imprensa.

Assim, é (ou deveria ser) direito de qualquer pessoa ser esquecida pelos meios de comunicação, sobretudo a rede mundial de computadores, onde tudo fica armazenado e, mesmo apagadas, qualquer pessoa consegue fazer o upload (enviar novamente aquela informação).

O caso Mia Khalifa

Nascida no Líbano em 1993 e radicada nos Estados Unidos desde os anos 2000, Sarah Joe O’Brien, ou como é conhecida no cinema pornográfico: Mia Khalifa – foi uma atriz que teve um sucesso fantástico, porém breve (2014 a 2015) dentro do cinema erótico.

Usando o jihab (vestimenta própria entre as mulheres muçulmanas) e óculos, ela atingiu, segundo apurou a Revista Veja (2019), até maio do presente ano, a incrível marca de 715 milhões de visualizações em 2761 vídeos, sendo a terceira atriz pornô mais vista no site PornHub.

Todavia, nem tudo são flores (se é que há), no universo pornô. Em recente entrevista à rede BBC, Mia confessou que, apesar de saber com o que estaria trabalhando, não esperava a repercussão que seu desempenho teve no ramo.

Foram apenas seis vídeos e US$ 12.000,00 (doze mil dólares) por todos eles. Dois mil dólares por vídeo. A Bang Bros, contudo, empresa para quem trabalhou, faturou milhões de dólares.

Khalifa – As coisas são assim mesmo. Não sou a única. Não é que eu tivesse um contrato terrível ou um agente terrível – disse a atriz a BBC.

Abaixo, trecho onde o entrevistador pergunta sobre sua visibilidade na rede, in verbis:

BBC – Se a gente buscar seu nome no Google, aparecem vários links para vídeos pornográficos. As palavras “porn star” (estrela pornô) aparecem imediatamente. Isso é algo que você nunca vai superar?
.
Khalifa – Estou tentando. Eu não me dou muito bem com o Google, e estamos tentando mudar isso.
(grifo do autor)

A primeira coisa que aparece é um site sobre o qual não tenho controle, mas que está escrito na primeira pessoa, como se fosse meu. E na Wikipédia esse site é descrito na minha página como se fosse o meu site oficial. Tentamos inúmeras vezes eliminá-lo, mesmo com ações legais, mas a empresa não nos atende. E fizemos inúmeras propostas (grifo do autor).

Direito ao esquecimento na Europa e nos Estados Unidos

Na lição de Acioli e Ehrhardt Júnior (2017), a origem do instituto do direito ao esquecimento:

[…] na Europa está no droit à l’oubli (traduzindo-se, literalmente, “direito ao esquecimento”), reconhecido pelas cortes francesas por volta do ano de 1965 — embora, à época, não com esse nome —, tratando-se da possibilidade de um ex-condenado não ser sujeito a publicações na imprensa sobre as razões de sua condenação, de forma a se facilitar a sua reinserção na sociedade11. Enquanto isso, as origens do right to be forgotten nos EUA são traçadas ao icônico caso Melvin v. Reid, de 193012.

Infere-se, portanto, do excerto acima, que apesar do direito ao esquecimento ser mais amplamente debatido na era cibernética, sua origem é mais remota tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.

Em 2015, de acordo com o site Conjur, o estado da Califórnia editou uma lei que previa que os sites de relacionamento deveriam inserir um botão em suas plataformas para que menores de idade pudessem apagar conteúdos que tivessem se arrependido de postar. A lei, conhecida como Eraser Law (Lei do Apagador), sofreu muitas críticas, por dois motivos:

  1. Inócua, já que os sites dispunham de botões de excluir, e que a lei teria pouco ou nada praticidade;
  2. Mesmo o menor de idade apagando o conteúdo, ele poderia ter sido salvo por outras pessoas e replicado na internet. Portanto, não garantiria a segurança e integridade das crianças e adolescentes.

Pode-se notar que leis sobre a integridade e privacidade das pessoas, no Direito Comparado, ainda carece de sedimentação, o que fica mais difícil de vislumbrar, vez que há culturas jurídicas diferentes em várias partes do mundo, que usam a common law ou a civil law, às vezes até a forma mista, como vem sendo o caso do Brasil, após 2015, com a edição do Novo Código de Processo Civil.

Considerações sobre o caso Mia Khalifa

O que pesa contra a Mia Khalifa também, na questão cultural, é seu berço islâmico, o que inclusive a levou a sofrer ataques e ameaças do Estado Islâmico, como a atriz confessou em entrevista à BBC. Esquecê-la seria também uma questão de proteger sua vida.

O escopo do presente artigo é questionar, à luz da dignidade da pessoa humana e de Tratados Internacionais de Direitos Humanos, alguns inclusive nos quais os Estados Unidos são signatários, o quanto a pessoa pode ter sua vida vilipendiada pela pretensa liberdade de expressão dos meios de comunicação. São duas garantias fundamentais, não resta dúvida. Como sopesar os dois institutos para permitir que uma pessoa tenha sua vida privada de volta, vez que não é vontade da atriz não permanecer com tal atividade?

Não se discute aqui moralidades nem legalidade da profissão de atriz pornô, pois cada país legisla diferentemente sobre o assinto.

Nossa sede pelo saber não pode penetrar em fontes fechadas pelo bom senso e consciência.

Mia Khalifa pretende uma nova vida, decisão sua como foi a primeira vez. Portanto, esse precedente abriria espaço para que outras pessoas também pudessem recomeçar suas histórias, quantas vezes fossem necessárias, sem as garras inescrupulosas da internet. Já saímos das cavernas faz tempo.
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REFERÊNCIAS

ACIOLI, B. L.; EHRHARDT JÚNIOR, M. A. A. Uma agenda para o direito ao esquecimento no Brasil. Brasília: Revista Brasileira de Políticas Públicas, UNICUB, v. 7., n. 3., 34 p., 2017.

GROBEL, M. C. B. Da comunicação visual pré-histórica ao desenvolvimento da linguagem escrita, e, a evolução da autenticidade documentoscópica. Centro de Pós-Graduação Oswaldo Cruz, 12 p., 2012.

MELO, J. O. CONSULTOR JURÍDICO, 2013. Lei cria direito de despublicar e coloca sites em xeque. Disponível aqui. Acesso em 19.out.2019.

NAGAMINI, E. Questões teóricas e formação profissional em comunicação e educação. Ilhéus: Editus, v. 1., 287 p. 2016.

REDAÇÃO REVISTA VEJA. As cinco maiores estrelas pornôs da atualidade. Disponível aqui. Acesso em 19.out.2019.

SACKUR, S. BBC Brasil, 2019. Mia Khalifa: ‘Achei que pudesse fazer do pornô o meu segredinho, mas o tiro saiu pela culatra’. Disponível aqui. Acesso em 19.out.2019.

SILVA, MARCELO. Da escrita ideográfica aos emoticons: um estudo à luz da historiografia linguística. [Dissertação]. São Paulo: PUC/SP, 127 p., 2011.
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Por Marcio Ruzon
Fonte: Canal Ciências Criminais

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