As 10 regras da ética judicial resultantes da natureza cognitiva da jurisdição

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Qualquer discurso sobre a deontologia dos magistrados deve partir, a meu ver, de um pressuposto elementar: a consciência, que deveria sempre auxiliar qualquer juiz e qualquer promotor, de que o Poder Judiciário é um "poder terrível", como escreveu Montesquieu[1], ou pior, "odioso", como o chamou Condorcet[2]. Aliás, todos os poderes são odiosos. Mas mais do que qualquer outro é o poder judicial, especialmente o Direito Penal, pois, mais diretamente do que qualquer outro poder público, é um poder do homem sobre o homem, cujo exercício afeta a liberdade, a reputação e, portanto, a vida das pessoas.

Mas o Judiciário é um poder terrível também por outro motivo: pelo caráter sempre imperfeito da sua fonte de legitimação. Esta fonte consiste na chamada "verdade processual". Diferentemente de todas as outras atividades jurídicas precetivas — leis, medidas administrativas, transações privadas, cuja validade nada tem a ver com a verdade — a jurisdição é uma atividade teórica, mas também prática ou prescritiva. Digamos que uma sentença ou medida restritiva de algum modo da liberdade pessoal é justa, bem como válida, se e somente se consideramos que suas razões são "verdadeiras", de fato e de direito. Ao mesmo tempo, podemos falar de "verdade" dessas razões, visto que o Direito aplicado foi absolutamente positivado pelo Direito, que por sua vez está vinculado às normas constitucionais e aos direitos fundamentais nelas consagrados.

Mas sobre a "verdade", como bem sabemos, pode-se falar, em nível epistemológico, somente em sentido relativo, uma vez que a verdade absoluta não pode ser predicável a partir de nenhuma tese empírica. A legitimação das decisões judiciais é, portanto, sempre imperfeita e incerta. Apenas as teses da lógica e da matemática são absolutamente verdadeiras, simplesmente porque são tautológicas. As teses judiciais, como todas as teses empíricas, inclusive as científicas, só são aceitas como verdadeiras com base em sua motivação mais ou menos plausível. Precisamente, sua verdade factual, argumentada por evidências e não refutada por contra evidências, é apenas uma verdade probabilística, enquanto sua verdade jurídica, argumentada pela interpretação das regras aplicadas aos fatos estabelecidos, é apenas uma verdade questionável.

Bem, todas as regras da deontologia judiciária são, na minha opinião, deriváveis, direta ou indiretamente, dessa natureza cognitiva da jurisdição. O julgamento — seja penal, civil, administrativo ou constitucional — é sempre fruto do saber-poder: é tão mais legítimo quanto mais prevalece o conhecimento, é tão mais ilegítimo quanto maior o espaço, chegando à discrição, que tem nele o poder. A tal ponto que — bem podemos dizer — as regras da deontologia dos magistrados visam todas reduzir o poder e alargar o conhecimento.

1. O respeito pelas garantias — Obviamente, é o que se pode dizer da primeira das nossas regras deontológicas: o estrito cumprimento das garantias do juízo correto pelo seu valor epistemológico, ético e político, bem como jurídico. Todas essas garantias são de fato garantias de verdade, bem como de liberdade. Precisamente, no Direito Penal são garantias de verificabilidade e falseabilidade em abstrato, as garantias substanciais, ou seja, o princípio da legalidade estrita ou da obrigatoriedade das figuras do crime, o princípio da materialidade da ação, o da ofensividade do evento e o da responsabilidade do autor; enquanto são garantias de verificação e falsificação na prática as garantias processuais, ou seja, a publicidade da sentença, o ônus da prova e o direito de defesa. E, no entanto, embora sejam capazes de limitar e vincular o poder punitivo, essas garantias não são suficientes para anulá-lo. De todo modo, há sempre uma margem de arbítrio, ligada à irreprimível discricionariedade judicial na avaliação das provas e na interpretação da lei.

2. A ética da dúvida — Daí a segunda regra deontológica: a consciência epistemológica do caráter somente relativo da verdade processual e, portanto, a ética da dúvida como elemento essencial da deontologia judiciária. Essa ética da dúvida envolve a rejeição de qualquer arrogância cognitiva, a prudência do julgamento — daí o belo nome “juris-prudência” — como um estilo moral e intelectual da prática judiciária e, em geral, das disciplinas jurídicas. Segue-se uma outra consciência que deveria auxiliar sempre o exercício da jurisdição: a de uma margem irredutível de ilegitimidade do Judiciário devido à permanente possibilidade de erro; uma possibilidade que o estrito cumprimento das garantias pode reduzir, mas certamente não eliminar. Além disso, todos os poderes têm uma margem irredutível de ilegitimidade ligada ao caráter sempre imperfeito da sua fonte de legitimação, seja a representatividade política das funções de governo ou a busca do interesse público por parte das funções administrativas.

3. Ouvir as razões opostas — Desta consciência segue-se uma terceira regra deontológica: a disponibilidade dos juízes, mas também dos promotores, para ouvir todas as razões diferentes e opostas e a exposição de suas hipóteses à refutação e à falsificação, legal e factual. É nesta disponibilidade tanto do julgamento como do Ministério Público de se exporem e se submeterem à refutação dos réus em juízo — de acordo com o princípio clássico formulado por Karl Popper da falseabilidade como banco de prova da consistência e plausibilidade de qualquer tese empírica — que reside o valor ético, assim como epistemológico, do público contraditório na formação da prova.

Essa disponibilidade exprime uma atitude de honestidade intelectual e responsabilidade moral, baseada na consciência da natureza não mais do que probabilística da verdade factual. Ela exprime o próprio espírito do processo acusatório, em oposição à abordagem inquisitorial, cujo traço inconfundível e falacioso é antes a resistência do preconceito acusatório a qualquer negação ou contraprova: isto é, a petição de princípio, em virtude da qual a hipótese acusatória, que deveria ser sustentada por evidências e não minada por contraprovas, é de fato irrefutável porque é assumida indiscutivelmente como verdadeira e, portanto, funciona como um critério para orientar as investigações e como um filtro seletivo de provas: críveis se a confirmam, não críveis se a contradizem.

4. A imparcialidade de julgamento — Esta disponibilidade para ouvir todas as razões opostas é o elemento constitutivo de uma quarta regra deontológica: a imparcialidade de julgamento e também de investigações preliminares. O processo, como Cesare Beccaria e ainda antes Ludovico Muratori escreveram, deve consistir na "indiferente busca da verdade". É nessa indiferença, que é típica de toda atividade cognitiva e envolve a constante disponibilidade para renunciar às próprias hipóteses diante de suas negações, que se baseia o tipo de processo que Beccaria chamou de "informativo", por oposição ao que ele chamou de "processo ofensivo", no qual, escreveu ele, "o juiz torna-se inimigo do réu" e "não busca a verdade do fato, mas busca o crime no prisioneiro, e o cerca, e acredita que perderá se ele não consegue, e por fazer mal àquela infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas"[3]. É claro que esta quarta regra deontológica exclui a ideia do acusado como um inimigo, mas também, de forma mais geral, qualquer espírito partidário ou sectário. Mas também exclui a ideia, frequente nos promotores, de que o julgamento é uma arena em que se ganha ou se perde. O Ministério Público não é advogado. E o julgamento não é um jogo em que, para retomar as palavras de Beccaria, o investigador perde se não consegue fazer prevalecer seus argumentos.

Segue-se o valor da confidencialidade do magistrado quanto aos processos que possui. O que os juízes devem ter cuidado para evitar, na sociedade do espetáculo de hoje, é qualquer forma de protagonismo judicial e exibicionismo que inevitavelmente comprometa a imparcialidade. Compreendemos a tentação, para aqueles que são detentores de um poder tão terrível, de ceder à tentação do aplauso e da auto comemoração como um bom poder, guardião do verdadeiro e do justo. Mas essa tentação arrogante deve ser firmemente rejeitada. A figura do "juiz estrela" ou "Juiz Estella", como é chamada na Espanha, é a negação do modelo garantista de jurisdição. Não apenas contradiz o costume da dúvida que mencionei antes, mas corre o risco de submeter o trabalho do juiz à busca demagógica por notoriedade e popularidade. Sabemos bem, tendo experimentado isso nos últimos anos, o quanto o populismo político é uma ameaça à democracia representativa. Mas ainda mais intolerável é o populismo judicial. Ao menos o populismo político visa fortalecer, ainda que demagogicamente, o consenso, ou seja, a fonte de legitimidade que pertence aos poderes políticos. O populismo judicial é muito mais sério, especialmente quando serve como um trampolim para carreiras políticas.

5. A rejeição do criacionismo judicial — Da natureza cognitiva do julgamento segue então uma quinta regra deontológica: a rejeição do criacionismo judicial. Como bem sabemos, os espaços de discricionariedade interpretativa no exercício da jurisdição são enormes e crescentes, devido à inflação regulatória, à ruptura da linguagem jurídica e à estrutura multinível da legalidade. A última coisa que se precisa é, portanto, que a cultura jurídica, através da teorização e endosso de um papel abertamente criativo do novo direito confiado à jurisdição, contribua para aumentar esses desequilíbrios, apoiando e legitimando uma nova expansão dos espaços já amplíssimos de discricionariedade e argumentação judicial, até a anulação da separação de poderes, o declínio do princípio da legalidade e a transformação da subordinação dos juízes à lei em supra ordenação.

É justamente essa legitimação que hoje se presta à expansão extrajudicial do Poder Judiciário por meio de abordagens doutrinárias múltiplas e heterogêneas: das orientações kelseniana e pós-kelseniana do tipo positivista paleolegal às orientações principialistas de caráter neo-naturalista; das linhas da hermenêutica jurídica àquelas dos neopandetistas, passando pelas várias correntes do realismo jurídico, tudo em prol do desenvolvimento de um direito jurisprudencial desvinculado do direito legislativo. Na base de todas essas diferentes orientações, há um equívoco epistemológico, que consiste em uma concepção estreita e insustentável do conhecimento jurídico como conhecimento objetivo e da verdade jurídica como verdade absoluta. É necessário opor duas teses a esse equívoco. A primeira é a já ilustrada do caráter somente relativo, probabilístico de fato e questionável de direito, da verdade processual, cuja aceitação exige sempre uma decisão. A segunda é a identificação de uma outra dimensão cognitiva do julgamento, além da dimensão probatória da verdade factual e interpretativa da verdade jurídica, que dá conta de seus chamados espaços “criativos”: a dimensão equitativa do julgamento, totalmente compatível, como veremos agora, com o princípio da legalidade e com a sujeição dos juízes à lei.

6. A compreensão e avaliação equitativa da singularidade de cada caso — Chego, assim, à sexta regra da deontologia judiciária: a tarefa dos juízes de avaliar e compreender, caso a caso, as características específicas e singulares dos fatos submetidos à sentença, além de suas evidências factuais e sua qualificação jurídica. Há um equívoco epistemológico que sempre pesou na concepção de equidade, concebida, desde Aristóteles até os dias atuais, como exceção à lei, ou seja, como exceção, ou correção, ou mitigação de sua dureza ou semelhantes. Pelo contrário, a dimensão equitativa pertence inevitável e fisiologicamente a cada juízo penal, correspondendo também a uma atividade cognitiva: à compreensão das conotações específicas e irrepetíveis que, para além do juízo de verdade ou falsidade factual e jurídica sobre as teses que apurem a responsabilidade, tornam todo fato diferente de qualquer outro, mesmo que todos subsumíveis dentro do mesmo caso jurídico. O furto de maçãs é diferente do furto de um bilhão; o roubo em estado de necessidade é diferente daquele do puro opressor.

Esta sexta regra deontológica é, portanto, a da equidade, que é uma dimensão cognitiva do julgamento, geralmente ignorada, que nada tem a ver com as outras duas dimensões cognitivas tradicionais do raciocínio judicial, ou seja, com a correta interpretação da lei na apuração a verdade jurídica e com a avaliação fundamentada das evidências na apuração da verdade factual. Ela diz respeito à compreensão e avaliação das circunstâncias singulares e irrepetíveis que tornam cada fato, de cada caso submetido a julgamento, um fato e um caso irredutivelmente diferentes de qualquer outro, ainda que subsumível — por exemplo, o furto de uma maçã em comparação com o furto de um diamante — à mesma particularidade legal. É assim porque todo fato é diferente de qualquer outro, e o juiz, mas antes dele o Ministério Público, não julga e não apura os fatos do crime em abstrato, mas os fatos em concreto, com as suas conotações específicas e irrepetíveis que devem, portanto, ser submetidos ao seu entendimento. Fica então evidente que compreender o contexto, as circunstâncias concretas, as razões singulares do fato envolve sempre uma atitude de indulgência, sobretudo a favor dos sujeitos mais frágeis[4].

7. "Nolite iudicare": julgamentos sobre fatos e não sobre pessoas — Essa dimensão equitativa da jurisdição sugere uma sétima regra deontológica, também ligada à legitimação da jurisdição, especialmente penal, como atividade cognitiva. Justamente por basear o julgamento na apuração dos fatos empíricos concebidos por lei como crimes verdadeiros ou falsos, o modelo garantista penaliza atos e não autores, fatos e não sujeitos, comportamentos e não identidades. O juiz não deve, portanto, investigar a alma do acusado, mas apenas decidir sobre a verdade dos fatos contra ele. Em virtude do princípio da legalidade, em suma, pode-se julgar e punir pelo que se fez e não pelo que se é. Até porque apenas os fatos, e não também a moralidade ou o caráter ou outros aspectos da personalidade do réu estão sujeitos à prova e à refutação empírica e, consequentemente, a julgamento.

Nesse sentido, o modelo garantista partilha a máxima "nolite iudicare"  com a ética cristã, pelo menos se por "julgar" entendermos o juízo sobre a identidade imoral ou má do sujeito e não a avaliação probatória e a qualificação jurídica do fato cometido por ele e previsto pela lei como um crime. Além disso, com uma conotação ética específica de tipo secular e liberal, que a inquestionabilidade jurídica e moral das consciências deriva precisamente do princípio da legalidade estrita: a igual dignidade das pessoas reconhecida aos réus assim como aos não réus e, portanto, o respeito devido à sua identidade embora má, bem como o direito de cada um ser como é.

8. O respeito por todas as partes do processo — É este respeito por todas as partes do processo — começando pelo acusado, seja ele quem for, sujeito fraco ou forte, mesmo que seja um mafioso ou um terrorista ou um político corrupto — a oitava regra do decálogo aqui proposto sobre a deontologia judiciária. O Direito Penal, no seu modelo de garantista, equivale ao direito do mais fraco, que se na hora do crime é o ofendido, no momento do julgamento é sempre o acusado, cujos direitos e garantias são na mesma medida as leis dos mais fracos.

Esta regra de respeito pelas partes envolvidas, e em particular pelos acusados, é um corolário do princípio da igualdade, pois equivale ao postulado da "igual dignidade social" de todas as pessoas, incluindo, portanto, os réus, enunciado em nossa Constituição. Mas é também corolário do princípio da legalidade, em virtude do qual, repito, somos punidos pelo que se faz, e não pelo que se é, e julga-se o fato e não a pessoa, o crime e não o seu autor, cuja identidade e interioridade sejam afastadas do juízo penal. Acrescentaria que no processo penal este respeito pelo acusado equivale a fundar aquela assimetria que deve sempre existir entre a civilização do direito e a incivilidade do crime e que é a principal que sempre deve subsistir entre a civilidade do direito e a incivilidade do delito e que é força principal da primeira como fator de deslegitimação moral e isolamento social da segunda.

Esta é uma regra deontológica vinda da consideração do ponto de vista do cidadão. Em sua longa carreira, cada juiz conhece milhares de pessoas: como réus, como partes ofendidas, como testemunhas, como demandantes e como partes. Tenho aconselhado repetidamente os juízes a fazerem um exercício mental: o de sempre se colocarem do ponto de vista de seus réus, dos demandantes e das partes envolvidas no julgamento. É a partir desses pontos de vista que os juízes sempre serão, por sua vez, severamente julgados. Eles mal se lembram de algum deles. Mas cada um deles se lembrará de seus juízes e lembrará de seu julgamento como uma experiência inesquecível: ele lembrará de sua imparcialidade ou partidarismo, seu equilíbrio ou arrogância, sua sensibilidade ou limitação burocrática, sua humanidade ou desumanidade, sua capacidade de ouvir ou sua prepotência. Acima de tudo, ele se lembrará se aqueles juízes o assustaram.

9. Os juízes não devem buscar o consentimento da opinião pública, mas apenas a confiança das partes do processo — Como regra deontológica adicional, segue-se uma relação específica dos juízes com a opinião pública e com as partes envolvidas. O magistrado não deve pedir o consentimento da opinião pública: pelo contrário, um juiz deve poder, com base no correto conhecimento dos atos do julgamento, absolver quando todos pedirem condenação e condenar quando todos pedirem a absolvição. Justamente porque a fonte de legitimação da jurisdição consiste na apuração dos fatos submetidos à sentença, o poder judiciário é um poder contramajoritário, tanto quanto os direitos por eles garantidos que, como escreveu Ronald Dworkin, são direitos dos pessoa como indivíduo e sempre, portanto, virtualmente contra a maioria[5]. "Quando sinto a mão do poder pressionando meu pescoço", escreveu Tocqueville, "não me importa quem está me oprimindo; e não estou mais disposto a curvar minha cabeça sob o jugo pelo simples fato de que isto me é apresentado por milhões de braços"[6]. Veritas, non auctoritas facit judicium, podemos dizer sobre a jurisdição, graças ao princípio hobbesiano oposto auctoritas, non veritas facit legem que, em vez disso, é válido para a legislação. Um cidadão não pode ser punido apenas porque sua punição responde à vontade ou ao interesse da maioria. Nenhuma maioria, por mais esmagadora que seja, pode legitimar a condenação de uma pessoa inocente. E nenhum consenso político — do governo, ou da imprensa, ou dos partidos ou da opinião pública — pode substituir a prova faltante ou desacreditar a prova adquirida de uma hipótese acusatória. Num sistema penal garantista, o consentimento da maioria ou a investidura representativa do juiz nada acrescentam à legitimidade da jurisdição, uma vez que não podem tornar verdadeiro o que é falso ou falso o que é verdadeiro. Esta ligação entre a verdade e a validade dos atos judiciais é o principal fundamento teórico da separação de poderes e da independência do Judiciário no Estado de Direito. Uma atividade cognitiva não pode, por princípio, estar sujeita a outros imperativos além daqueles inerentes à busca da verdade. E qualquer condicionamento de poder não apenas não contribui para a obtenção da verdade, mas, ao contrário, é enganoso para esse fim.

As únicas pessoas das quais os magistrados devem poder ter, não o consentimento, mas a confiança, são as partes envolvidas e principalmente os acusados: confiança na sua imparcialidade, na sua honestidade intelectual, no seu rigor moral, na sua competência técnica na sua capacidade de julgamento. Na verdade, o que deslegitima a jurisdição não é tanto a discordância e a crítica, que não só são legítimas, mas atuam como fatores de responsabilização, mas a desconfiança dos juízes e, pior ainda, o medo, gerado pelas violações das garantias estabelecidas por lei por ele: quem é chamado a aplicar a lei e quem tira a sua legitimidade somente da sujeição à lei. Por isso, a confiança das partes envolvidas em seus juízes é o principal parâmetro e o melhor teste do índice de legitimidade da jurisdição. Se é verdade que a independência dos juízes é uma condição para o seu papel garantista, o contrário também é verdadeiro: somente se os juízes realmente exercerem o seu papel de garantista, os cidadãos irão defender a independência da jurisdição como sua garantia.

10. A rejeição do carreirismo como regra de estilo — É claro que esta independência, necessária para que a jurisdição cumpra o seu papel de garantia de direitos, deve, por sua vez, ser garantida não só por poderes externos, mas também por poderes internos do Judiciário, que são aqueles que atualmente governam as carreiras dos magistrados. Daí a décima regra da deontologia judiciária: a rejeição do carreirismo e de todas as normas e práticas que o alimentaram nos últimos anos, a começar pelas avaliações do profissionalismo no momento das promoções dos magistrados; as quais, além de geralmente pouco credíveis e por vezes arbitrárias, acabam por influenciar a função judiciária, deformando a mentalidade dos juízes e prejudicando a sua independência interna.

Devemos estar cientes de que qualquer forma de carreira dos juízes se contrapõe ao princípio de sua igualdade estabelecido pelo artigo 107, parágrafo 3º de nossa Constituição segundo o qual "os magistrados se distinguem apenas pela diversidade de funções". Trata-se de um princípio básico, cujo prejuízo decorrente da carreira e do carreirismo mina, por um lado, a independência interna dos juízes, que o artigo 101.º, parágrafo 2º, da Constituição exige que estejam "sujeitos apenas a lei", e, por outro, a credibilidade de toda a instituição judiciária.

Em primeiro lugar, essas avaliações de profissionalismo, além de incentivarem o carreirismo dos juízes, correm sempre o risco de produzir a homologação de diretrizes jurisprudenciais e, portanto, de fato, a conformidade e sujeição dos magistrados às suas chefias, habilitadas a avaliar o seu trabalho. Elas contradizem uma regra básica da ética dos juízes: o princípio de que devem exercer as suas funções sine spe et sine metu: sem esperança de vantagens ou promoções e sem medo de desvantagens ou preconceitos pelo mérito do exercício das suas funções.

Em segundo lugar, o carreirismo é a verdadeira origem da degeneração das correntes internas da Associação Nacional dos Magistrados [italianos] e do descrédito do Judiciário e de seu órgão autônomo, que emergiu com o recente escândalo da divisão dos cargos de gestão suscitado pelo caso Palamara. Essas degenerações têm sido atribuídas, no debate público, ao associacionismo judiciário e ao pluralismo de correntes, mais do que ao carreirismo e aos seus pressupostos. Ao contrário, o associacionismo dos juízes foi um fator decisivo para a democratização do Judiciário[7]. E as correntes tornam-se indispensáveis pelo caráter eletivo do Conselho Superior da Magistratura. É também claro que em decisões tipicamente discricionárias, como a nomeação dos chefes de departamentos por um órgão colegiado e representativo como o CSM, algum tipo de compromisso é inevitável entre os diferentes grupos nele representados. O que é intolerável e escandaloso é a prática de recomendações, auto recomendações e trocas originadas justamente no carreirismo, por sua vez determinado pela violação indevida do princípio da igualdade dos juízes.

Contra essa prática, parece-me que quatro remédios podem ser sugeridos, um consistindo em uma regra deontológica, o outro em reformas institucionais adequadas para favorecer a eficácia dessa regra. A regra deontológica, por assim dizer de estilo, deve consistir, repito, na recusa de uma carreira: na aspiração, mais do que por funções de gestão, ao melhor exercício de funções jurisdicionais, de garantir os direitos fundamentais das pessoas. As reformas deveriam consistir na abolição dos pré-requisitos para as carreiras: em primeiro lugar, a limitação dos julgamentos de profissionalismo apenas à indicação da adequação, ou melhor, da inadequação dos juízes para o trabalho judicial, sem a indicação de hierarquias impróprias; em segundo lugar, a redução ao máximo das competências das funções executivas dos gabinetes — começando pelas competências de atribuição de processos, substituídas por mecanismos tão automáticos quanto possível — de forma a reduzir os motivos de ambição de os obter; em terceiro lugar, a reabilitação, como critério privilegiado de atribuição dessas funções, do antigo princípio objetivo da antiguidade.

*O artigo foi gentilmente traduzido para a ConJur por Gislaine Marins, tradutora e professora universitária em Roma, e Paola Ligasacchi, jornalista, advogada e mestre em Estudos Sociais e Políticos Latinoamericanos pela Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile.

Clique aqui para ler o artigo original em italiano
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[1] De l’esprit des lois (1748), in Oeuvres complètes, Gallimard, Paris 1951, II, XI, 6, p. 398.

[2] Idées sur le despotisme (1789), in Oeuvres de Condor­cet, Firmin Didot, Paris 1847, t. IX, p. 155.

[3] C. Beccaria, Dei delitti e delle pene (1766), a cura di F. Venturi, Einaudi, Torino 1981, § XVII, pp. 45 46; L.A. Muratori, Dei difetti della giurisprudenza (1742), Rizzoli, Milano 1953, cap. XII, pp. 130 141.

[4] Indico, para uma reformulação teórica da relação entre lega­lidade e equidade, o meu livro Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale (1989), 11^ ed., Laterza, Bari‑Roma 2018, § 11, pp. 135‑147; em particular, para uma crítica da noção aristotélica de equidade, retomada d filosofia jurídica até os nossos dias, consulte-se, no título citado, as páginas 137-138 e as notas 94-104 nas páginas 181-183. Sobre a questão, além da crítica do criacionismo judiciário, consulte-se também os meus livros La democrazia attraverso i diritti. Il costituzionalismo come modello teorico e come progetto politico, Laterza, Roma-Bari 2013, cap. III, páginas 95-137, Contro il creazionismo giudiziario, Mucchi, Modena 2017 e La costruzione della democrazia. Teoria del garantismo costituzionale, Laterza, Roma-Bari 2021, § 3.7, páginas 155-160.

[5] R. Dworkin, I diritti presi sul serio (1977), trad. it. org. por G. Rebuffa, Il Mulino, Bologna 1992, p. 274-278 e 318-323.

[6] A. de Tocqueville, La democrazia in America (1835), in Id., Scritti politici, a cura di N. Matteucci, Utet, Torino 1969, lib. II, parte I, cap. III, p. 500.

[7] Indico, nesse sentido, o meu artigo Associazionismo dei magistrati e democratizzazione dell’ordine giudiziario, em “Questione giustizia”, 2015, n. 4, p. 178-184.
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Luigi Ferrajoli é advogado e filósofo italiano.
Fonte: Conjur

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