Adequação de Registros de Dupla Parentalidade – ADPF 899; E se o Patinho Feio fosse ao STF?

adequacao registros dupla parentalidade adpf 899 patinho feio fosse stf
QUAL SUA OPINIÃO? 😳Por @manoelverissimont | A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 899 (Adequação de Registros de Dupla Parentalidade), cuja relatoria está a cargo do ministro Gilmar Mendes.

A ADPF visa que formulários e bancos de dados públicos “respeitem a identidade de gênero dos genitores, contemplando a possibilidade de dupla parentalidade por pessoas do mesmo gênero”, e que seja declarado inconstitucional qualquer tipo de registro que não contemple essa demanda. A organização quer que os órgãos públicos deixem de exigir as expressões “pai” e “mãe” nos campos destinados à informação sobre filiação.

A advocacia geral da União (AGU) manifestou-se pela improcedência da ação. Em resumo entende a AGU que não há violação aos preceitos fundamentais, faltando ainda legitimidade da ABGLT para propor ação e que “A atual regulamentação acerca do tema em debate já obedece a igualdade quanto à identidade de gênero, de modo a resguardar aos filhos o conhecimento da respectiva origem biológica, através da indicação na Declaração de Nascido Vivo da parturiente, bem como da filiação, apontada no Registro Civil conforme ode acordo com o adequado nome dos ascendentes”.

A Procuradoria Geral da República (PGR), na pessoa do procurador-geral, Augusto Aras, emitiu parecer (i) determinado que formulários e documentos oficiais respeitem a autoidentificação de gênero parental, preservadas as informações sobre origem biológica tanto por reprodução assistida quanto por inseminação caseira; (ii) contemplada a possibilidade de parentalidade por duas pessoas do mesmo gênero em todos os formulários e documentos públicos, resguardados dados sobre a matriz genética; (iii) conferida interpretação conforme à Constituição ao art. 4º, V e VI, da Lei 12.662/2012, para que, na DNV, constem expressões que respeitem a pluralidade de configurações parentais, substituindo-se a referência à mãe por “parturiente”, sem prejuízo da preservação das informações relacionadas a eventual reprodução heteróloga. 

Entre as mudanças propostas pela ADPF está a possibilidade de trocar os títulos de “mãe” e “pai” por "filiação 1” e “filiação 2”.

Chama a atenção nas razões da ABGLT, quanto argumentação do tópico IV - PROTEÇÃO DA FAMÍLIA E PARENTALIDADE HOMOAFETIVA E TRANSAFETIVA, o seguinte trecho:

“Como se vê, as relações familiares se espraiam para uma ampla gama de aspectos da vida em sociedade, de modo que a família cumpre diversas funções fundamentais. Em boa medida, é ela quem contribui para a definição do primeiro sistema de valores, crenças e atitudes de um indivíduo. Ela desempenha, na lição de Lacan, o papel primordial de transmissão da cultura – isto é, o repasse de tradições espirituais, a preservação de ritos e costumes, conservação das técnicas e do patrimônio. Apesar da influência de outros grupos sociais, é o núcleo familiar o responsável pela primeira educação, a repressão dos instintos e aquisição da língua materna. Na síntese do psicanalista, “ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência”.(página 027).

Hans Christian Andersen, autor e poeta dinamarques, não foi contemporâneo de Lacan, muito menos enveredou pela psiquiatria como o médico francês. Não consegui encontrar nada que afirme que o primeiro influenciou os pensamentos do segundo, mas há entre eles, uma conexão quanto a alguns pensamentos que ficam evidentes na obra de H.C. Andersen: O Patinho Feio, um clássico da literatura infantil.

Para os estudiosos, “Patinho Feio” é o conto de Hans Christian Andersen que mais se aproxima de sua biografia. Assim como o personagem principal do conto, Andersen sofreu opressão diante da sociedade e humilhações por causa de suas origens sociais.

A clássica fábula conta a história sobre um estranho patinho que, por ser diferente de seus irmãos, foi ridicularizado e incompreendido pelos outros animais. A partir do nascimento do patinho feio, a história aborda problemas sociais profundos e relacionados ao tema do abandono, da inferioridade, das humilhações e dos preconceitos de sua época. A narrativa possui uma crítica à sociedade de seu tempo, que sempre aparecem na voz de um personagem que, por vezes, representa as hierarquias e as classes sociais daquele tempo.

O personagem vive todos os tipos de aflições contemporâneas ao século XIV, sempre resignado, o Patinho Feio supera todos os preconceitos por não ser um pato como seus irmãos, mesmo não tendo entendimento sobre si. Somente no final do conto, quando ele vê seu reflexo na água, entende quem é de verdade. Nesse ponto trago a seguinte reflexão: 

Imaginemos por um segundo, que o personagem resolve, ao invés de seguir o curso natural e descobrir que era um lindo Cisne, ajuizar uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Semelhante a ADPF 899? 

Ora, o personagem andava como um pato, agia como um pato, mais do que lógico que o STF o reconhecesse como um pato! Essa constatação parte do pressuposto de que nenhum direito é eterno e absoluto diante das mudanças da sociedade, mais que velozes, transversais, submetendo a lei ao escrutínio e vaticínio da sociedade bem antes dos legisladores chegarem a um acordo. Aliás, Heráclito de Éfeso, em sua célebre citação dialética diz que "Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tampouco o homem". 

Segundo se absorve da tese proposta pela ABGLT, não contempladas na petição mas rememoradas da Na ADI nº 4.277, o gênero não definiria o sexo, define atributos sociais relacionados ao sexo, condicionados a masculino e feminino. A identidade de gênero também não definiria o sexo e, independente das características biológicas, é a identificação de uma pessoa com o gênero. 

A sexualidade idem, e diz respeito exclusivamente à orientação sexual da pessoa, e por qual ou quais gêneros ela sente atração sexual, que também pode ser emocional.

Dito isto, o contexto trazido pelos defensores da ADPF, apontam claramente para as assimetrias entre os atores sociais diretamente envolvidos:

As pessoas com suas identidades de gênero próprias
As pessoas com suas orientações sexuais próprias
As pessoas com o híbrido das identidades e orientações
As famílias, amigos e laços sociais íntimos dessas pessoas
A sociedade
A legislação
Os legisladores e os operadores do Direito

Este conjunto da arquitetura social e legal da identidade de gênero e sexualidade, enfrenta dissonâncias crescentes, num momento em que a sociedade demanda, de um lado, acolhimento, compreensão, apaziguamento, e de outro, apartações, condenações e execrações.

Na visão em perspectiva da nossa ancestralidade, todos viemos de um mesmo momento físico da relação entre dois sexos distintos, que durante milhões de anos de cruzamentos infinitos forjaram a nossa espécie. 

Entretanto, a evolução da espécie também atingiu aspectos emocionais, psicológicos, psicossociais e que, de forma difusa mas intensa, transcende para aspectos de gênero, identidade de gênero e sexualidade.

De outro lado, e aqueles que defendem o conceito clássico de família, com bases inclusive religiosas, além é claro dos costumes e tradições bem lançadas por Lacan e os defensores da ideologia de gênero? Seria correto discordar da discordância? Imagino que o diálogo deva ser numa quadra plural.

A advogada e professora Marilda Silveira deu um depoimento no programa de entrevistas TEDx no youtube sobre uma grave doença que mudou completamente a sua visão de mundo. Disse ela:

“Às vezes eu tô no grupo dos que pode, às vezes eu tô no grupo dos que não pode, mas sobretudo, para não perder a capacidade de compreender as razões do grupo em que eu não estou. Tomar contato com outro lado, com a divergência, não é só uma oportunidade, é um direito, direito de aprender a divergir.

De saber aquilo que a gente não sabe. Não tomar contato com a divergência não faz ela acabar, ela não vai acabar nunca, só faz com que eu não saiba. É muito importante que a gente saiba dialogar com a divergência. Isso é uma prerrogativa que a gente usa no direito mas que a gente deve trazer para a vida… todo esse percurso me ensinou que é o contraditório que salva. Que é mais importante saber fazer as perguntas do que dar as respostas, toda vitória é provisória”.

A ADPF não tem data para ir a julgamento e o texto não pretende dar solução ao caso da pergunta feita. Apenas uma afirmação é possível: o curso natural da vida do personagem mostrou através de um espelho d'água que ele não era um pato, mas sim um cisne.

Por Manoel Veríssimo Ferreira Neto (@manoelverissimont). Advogado, sócio do Loura Junior & Ferreira Neto (@lourajrferreiraneto), mestre pela Universidade Fluminense e Doutorando pela @puc_sp.

Imagem: Midjourney, Inteligência Artificial

0/Comentários

Agradecemos pelo seu comentário!

Anterior Próxima