A Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, corte à qual a vara pertence, fez logo circular um comunicado em que “orienta a todos os magistrados a utilizarem com prudência e parcimônia expressões informais, referências culturais e recursos de visual law nos atos jurisdicionais”. Não obstante o empenho e as recomendações recentes do Conselho Nacional de Justiça, sob a presidência do ministro Luis Roberto Barroso, por uma linguagem mais simples e acessível nas decisões judiciais, segundo o ofício da corregedoria do TRF-2 “devem ser evitados elementos que possam suscitar dúvidas quanto à seriedade e o decoro dos magistrados e dos serventuários da justiça” – um movimento que, em alguma medida, parece demarcar uma posição de oposição à defesa da assim chamada “linguagem simples” e ao emprego processual do humor judicial.
Enquanto desperte controvérsia, visto que uma parte notável dos juristas brasileiros se opõe a considerar atualizações linguageiras para a prática jurídica, cabe ainda assim ressaltar o fato de que a geração de magistrados que assume hoje cargos no Judiciário convive com as plataformas digitais há quase duas décadas, com aplicativos de mensageria como o WhatsApp há mais de dez anos, e, como consequência, com gêneros comunicacionais que incorporaram, ao longo desse tempo, emojis, figurinhas, gifs e imagens como artefatos retóricos e expressivos dos mais diferentes estados emocionais, e capazes de manifestar opiniões, elucidar argumentos, conferir contexto e proporcionar experiências de reconhecimento e pertencimento porque inseridos em uma cultura encharcada de elementos pop, autorreferentes e que se tornaram uma espécie de vernáculo ou língua franca [2].
Em resumo, a comunicação judicial não é alheia à comunicação social, e era só uma questão de tempo até esse modo de se comunicar chegar ao Judiciário brasileiro (que, aliás, se encontra quase todo com processos em formato eletrônico), e com decisões que usam cada vez mais recursos de copiar e colar elementos de dentro ou de fora dos autos. Além disso, cumpre lembrar que incontáveis processos incorporam referências a produtos culturais, com menções e muitas vezes citações diretas a músicas, diálogos cinematográficos ou literários. Referências a imagens e fotografias são, pelas limitações materiais da linguagem, menos comuns. Mas, aqui, cabe o questionamento: fosse a imagem do Homem-Aranha descrita textualmente no processo, ao invés de simplesmente incorporada visualmente a ele, haveria de causar o mesmo estranhamento?
Há, talvez, uma certa hipocrisia na crítica ao meme, quando proferida por quem se exime de questionar outras manifestações culturais igualmente populares. Frequentemente são notícia sentenças redigidas ou proferidas em forma de poesia ou que referenciam versos famosos da MPB, não raro com apelo estético bastante duvidoso, mas que não agridem o bom gosto dos juristas porque são externadas no que é considerado uma forma de arte superior. O Judiciário opera com a língua e a cultura como elemento de distinção, mas isso não o impede de escapar do kitsch ou do lugar-comum. Em contrapartida, o humorístico, o cômico, são há séculos relegados a um patamar artístico menor, menos valorizado de modo geral [3] — e isso se alastra inclusive na percepção de que uma sentença em forma de poesia é aceitável, mas uma decisão que usa um meme não é.
Elemento de persuasão
A segunda perspectiva sobre este episódio se constrói a partir da tentativa de compreender por que, afinal, o despacho causou tamanho alvoroço entre os profissionais do Direito. A resposta vem do formalismo associado à Justiça, desde os tempos em que mal se distinguiam as figuras do sacerdote e do juiz, passando pela adesão estrita a fórmulas e rituais no direito praticado pelos romanos e chegando à cultura bacharelesca que criou raízes e floriu neste Brasil tão apegado a frases difíceis e petições caudalosas.
Ou, de uma maneira mais direta: o Direito sempre foi formalista, rígido, e no nosso país isso parece ser agravado pela percepção distorcida de que para ser jurídico algo precisa ter palavras difíceis e estar eivado de um tom grave [4]. E, embora se trate muito mais de um costume ou de um comportamento histórica e culturalmente situado do que de um dispositivo legal específico [5], o efeito concreto desta recusa à adoção de um expediente mais descontraído reside precisamente na reação escandalizada que um uso despretensioso e bem-humorado de um meme em um despacho suscita. Apesar disso, práticas de humor judicial estão manifestas no Judiciário aos borbotões.
A respeito, por exemplo, da performance de advogados em tribunais norte-americanos, Pamela Hobbs observa que o humor é muitas vezes empregado como elemento de persuasão, de forma a ridicularizar uma das partes ou quebrar um ambiente de tensão em uma audiência [6]. Trata-se de um uso que, se comporta críticas sob o âmbito da ética profissional, não costuma ser moralmente diminuído, ao contrário. A advocacia é rotineiramente associada a uma profissão performática, e o humor é um elemento integrante da atmosfera oral dos tribunais. Afinal, como diz o provérbio, a escrita fica, mas as palavras voam.
É bem verdade que a adequação do uso do humor no ambiente processual deve inspirar cautela. Marshall Rudolph sugere que o humor judicial pode incomodar, pois é basicamente “a coisa certa no lugar errado”. Segundo ele, embora rir seja habitualmente um excelente remédio, os contextos traumáticos e onerosos da litigância podem nem sempre resultar no melhor momento [7], pois as partes não costumam achar seu processo nada engraçado – já que frequentemente ele diz respeito a aspectos importantes de suas vidas, do ponto de vista patrimonial, existencial ou ambos, de modo que rir a respeito dele poderia indicar que ele não está sendo levado a sério como deveria [8].
Evidentemente, isso não significa que não haja de maneira alguma espaço para ironia, sarcasmo, exagero, figuras de linguagem. Pelo contrário: Quintiliano, por exemplo, escrevendo no século I, dedica uma boa porção de sua obra sobre oratória à provocação do riso no âmbito dos tribunais [9]. Mas mesmo assim, se trata de usar palavras, de maneira mais ou menos espirituosa, como instrumento retórico para auxiliar na argumentação – e não uma imagem com super-heróis que circula pelas plataformas digitais. Nesse sentido, a utilização do meme parece ter causado polêmica não tanto pela busca pelo humor, mas sim pelo meio utilizado para isso, que foi considerado inadequado e inapropriado para as específicas circunstâncias de um processo.
Antropofagia dos memes
O meme, é claro, é uma linguagem permeada de referências da cultura pop global e de um trato deliberadamente amador, o que, sem dúvida, contribui para a sua deslegitimação artística e cultural. Mas nunca é demais ressaltar que, no Brasil especialmente, os memes proporcionaram uma espécie de porta de entrada para a discussão de temas sensíveis que muitas vezes operavam como uma barreira inacessível a algumas camadas da população.
Tome-se o exemplo do debate político. Normalmente tido como um ambiente sério e inconspurcável, tanto quanto o Direito, o cenário político brasileiro, nos últimos anos, se viu inundado de memes, piadinhas de todo tipo, e frases de efeito estampadas inclusive em bonés. Este movimento, é claro, não é uma exclusividade nossa. Em muitos países, como na França ou nos Estados Unidos, os memes definitivamente entraram em cena na política. Mas, por aqui, esse movimento representa, mais do que tudo, a incorporação de parcelas da população que antes estavam ou se sentiam alijadas do debate nacional.
É uma espécie de choque de civilizações, como se a barbárie popular finalmente pudesse acessar e discutir em pé de igualdade com as elites. E, isso, naturalmente, produz um forte ressentimento na experiência de reconhecimento entre esses polos. Em grande medida, os memes são catalizadores de um processo de revitalização democrática, porque materializam em uma linguagem simples, permeada por referências da cultura pop e do humor, ideias e argumentos bastante sofisticados. Pode-se dizer que o humor dos memes revolucionou a cena cultural e política do país nos últimos anos, e com o Judiciário não haveria de ser diferente.
Nunca é demais destacar que, embora o meme no despacho possa levantar críticas e suspeitas, o Judiciário, ele próprio, há muito já se converteu em meme à sua própria revelia. E, como uma ironia do destino, dessas que o provérbio memético afere a partir da constatação de que o mundo não gira, ele capota, enquanto o Judiciário rejeita o humor dos memes, os memes se apropriam do Judiciário em um movimento diretamente oposto e antropofágico.
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[1] De acordo com o site Know Your Meme (Conheça o seu meme), que rastreia até onde é possível a origem deles, o meme surgiu em 2011 mas popularizou-se só por volta de 2015. Utiliza imagem de quadrinho publicado em 1967, no qual um vilão se passa pelo herói, e é utilizado sobretudo para ilustrar confusão a partir de aparentes semelhanças. Confira-se, em inglês: https://knowyourmeme.com/memes/spider-man-pointing-at-spider-man (acesso em 30 jan.2025).
[2] Confira-se, a respeito, o capítulo 4 (“The new language of humor”) de ATTARDO, Salvatore. Humor 2.0: how the internet changed humor. London/New York: Anthem Press, 2023. p. 79 e seguintes. Ver também o livro de MILNER, Ryan. The World Made Mame. Cambridge: MIT Press, 2015.
[3] Permita-se a remissão a: CAPELOTTI, João Paulo. O humor e os limites da liberdade de expressão: teoria e jurisprudência. São Paulo: Dialética, 2022. p. 14 e seguintes.
[4] O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994) prevê em seu art. 31 que “O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia”.
[5] O Código de Processo Civil vigente, por exemplo, prescreve apenas que os atos processuais deverão utilizar a língua portuguesa (art. 192) e que eles, como regra, não têm forma determinada, e devem ser considerados válidos quando atingirem a finalidade a que se destinam (art. 188). Há uma vedação expressa apenas à utilização de expressões ofensivas no art. 78. A Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35) impõe aos juízes deveres de cumprir “com independência, serenidade e exatidão” as disposições legais e os atos de ofício, tratar as partes com respeito e manter conduta irrepreensível na vida pública e particular (art. 35, I, IV e VIII) – mas, a não ser em caso de interpretação muito elástica desses dispositivos, não se vê infração a eles neste caso concreto. Ou seja, a rigor, o despacho não contraria nenhuma dessas regras e é a princípio válido.
[6] HOBBS, Pamela. Lawyers’ use of humor as persuasion. Humor, v. 20, n. 2, p. 123-156, 2007.
[7] RUDOLPH, Marshall. Judicial humor: a laughing matter? Hastings Law Journal, v. 41, n. 1, p. 175-200, 1989.
[8] ROACH ANLEU, Sharyn; MACK, Kathy; TUTTON, Jordan. Judicial humour in Australian Courtroom. Melbourne University Law Review, v. 38, p. 621-665, 2014.
[9] QUINTILIAN. Instituto oratoria: books IV-VI. Trad. H. E. Butler. Cambridge-London: Harvard University Press, 1995. v. 2. p. 453 (Coleção Loeb Classical Library).
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*João Paulo Capelotti
é doutor em direito das relações sociais pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) e advogado.
*Viktor Chagas
é professor do Departamento de Estudos Culturais e de Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Fonte: @consultor_juridico
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