Em entrevista ao Migalhas, o magistrado detalhou os bastidores da decisão, a simbologia da audiência e a necessidade de formação humanizada para os profissionais do sistema de Justiça.
Confira:
A história de Amarildo
Segundo o juiz, a audiência foi realizada no local onde Amarildo costuma permanecer, próximo à Praça Deodoro, no centro da cidade.
A iniciativa surgiu de um encontro fortuito: um assessor do gabinete, Douglas, foi abordado por Amarildo, que pediu dinheiro.
Ao invés de apenas recusar ou oferecer ajuda material, Douglas parou para ouvi-lo - gesto que, segundo o magistrado, foi determinante para conquistar a confiança do homem em situação de rua.
"Muitas pessoas ou passam direto, ou dizem que não têm dinheiro, ou até param e doam dinheiro, ajudam. Mas o Douglas fez algo que é central nesse relacionamento com nossos semelhantes, com nossos irmãos, parar para ouvir", relatou Araújo.
Durante a conversa, Amarildo revelou ter um processo tramitando na Justiça Federal em que pleiteava o BPC.
Por uma coincidência que o juiz considera mais espiritual do que casual, o processo estava justamente sob sua responsabilidade.
"Nós temos 24 juízes Federais aqui em Alagoas que estão em Maceió. São três varas, então são seis juízes. E esse processo podia estar distribuído para qualquer dos juízes, que é uma distribuição, um sorteio. [...] E estava exatamente comigo."
Diante do estado de saúde de Amarildo, que apresentava feridas graves e dificuldades de locomoção, o juiz decidiu realizar uma inspeção in loco.
O juiz apurou que Amarildo trabalhou por cerca de 20 anos como vigilante, mas perdeu a qualidade de segurado da Previdência após anos sem conseguir contribuir.
"Se ele não trabalhou mais, é porque ele foi demitido, porque em algum momento ficou desempregado. Mas esse homem tem um perfil de trabalhador. Esse é o perfil da população em situação de rua que a gente muitas vezes, por estereótipos, estigmas, preconceitos, considera que é uma pessoa que não tem habilidades."
Na audiência improvisada, estiveram presentes o advogado Carlos Marcel e a procuradora-chefe do INSS em Alagoas, Tatiana Cabral Xavier, que apresentou proposta de acordo para concessão do benefício.
Veja a entrevista completa:
Efeitos simbólico e concreto
A iniciativa de realizar a audiência fora do fórum encontra respaldo na resolução 425/21 do CNJ, que estabelece diretrizes para o atendimento prioritário de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Com ações como essa, o juiz acredita ser possível construir um Judiciário mais acessível, empático e comprometido com a transformação social.
O magistrado destacou que a audiência teve dois efeitos centrais: o concreto, com a concessão de um salário mínimo mensal a Amarildo, e o simbólico, ao aproximar o Judiciário de quem mais precisa.
"Eu acredito que um norte dessa questão toda é o valor simbólico do Judiciário nas ruas. [...] O que esperamos dos juízes? Nós temos uma Constituição com um leque de direitos sociais que precisam de orçamento, de políticas públicas. Se não, vira só letra na lei. Uma folha de papel não serve de nada", defendeu.
Para o juiz, o episódio evidencia a importância de políticas públicas interinstitucionais.
Mutirões
O magistrado afirmou que, no âmbito da Justiça Federal, existem mutirões (Pop Rua Jud) e rodas de diálogo com a população em situação de rua.
Os eventos promovem emissão de documentos, acesso a benefícios, serviços de saúde e até festivais culturais.
Para ele, essas ações não substituem a política pública permanente, mas funcionam como luzes no caminho.
"O mutirão, de certa forma, acaba sendo também uma crítica ao serviço público. Se a gente precisa fazer um mutirão para reunir o serviço, é sinal de que os serviços precisam ser adequados no seu dia a dia, independentemente do mutirão. Até porque o mutirão é realizado cerca de duas vezes por ano. Então não tem como esperar só o mutirão. Mas o mutirão é uma luz, é uma luz para muitos deles", disse.
Formação humanizada
O magistrado também refletiu sobre o distanciamento histórico entre Judiciário e sociedade. Para ele, a formação jurídica ainda é marcada pelo desconhecimento da realidade social.
"Existe uma questão de formação das pessoas que vão atuar no sistema de Justiça. Pessoas que passam cinco anos na faculdade e muitas vezes sequer conhecem a realidade da pobreza, da miséria", afirmou.
Nesse sentido, destacou o projeto "Vozes: narrativas sociais e diálogos com o Sistema de Justiça", da Justiça Federal em Alagoas, que promove rodas de diálogo em que grupos vulnerabilizados são protagonistas, compartilhando narrativas diretamente com juízes e servidores.
"Os juízes vão para aprender, compreender essas realidades que são desconhecidas. E quando a gente fala desconhecido, desconhecimento da realidade, não é um mero linguajar retórico, não. É uma questão central na interpretação quando você conhece a realidade. Ao interpretar uma lei, nós vamos chegar, a depender dos pontos de vista, da visão histórica, da visão política, da visão ideológica, a interpretações distintas."
Semente de mudança
Ao avaliar o alcance da iniciativa, o magistrado ressaltou que ações como a audiência de Amarildo são fruto de um "trabalho de formiguinha", que se espalha pouco a pouco pelo país. Para ele, cada gesto aproxima a Justiça de quem mais precisa e planta uma semente de transformação.
Mais do que garantir um direito individual, a audiência simboliza um chamado a outros magistrados para repensarem formas de atuação.
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