O sistema brasileiro de júri admite a absolvição por clemência?

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bit.ly/3hmiTdf | A soberania dos vereditos do Tribunal do Júri está na agenda dos próximos debates do Plenário do Supremo Tribunal Federal. De um lado, discute-se se o princípio deve ser interpretado de modo a autorizar o cumprimento imediato da pena imposta por condenação pelo júri. Em outra via, analisa-se se a referida soberania impede que a absolvição fundada na resposta afirmativa dos jurados ao quesito genérico pode ser atacada em sede de apelação com base em alegada contrariedade à prova dos autos. Trata-se de verificar, em última análise, se é admitida no sistema brasileiro, com fundamento no princípio da soberania dos veredictos, a absolvição por clemência. É esta segunda perspectiva que será objeto da presente discussão.

A questão não é simples e eventuais conclusões não podem ser alcançadas sem a consideração séria de alguns fatores relevantes. Em primeiro lugar, é preciso determinar a função que o júri historicamente exerce nos Estados de Direito, e é sob essa perspectiva que deve ser analisada a ideia de absolvição por clemência. Em segundo lugar, importa examinar a configuração adotada pelo sistema brasileiro para a decisão dos jurados a partir da tormentosa separação entre questões de fato e questões de direito, ponderando-se em que medida a mesma influencia na recorribilidade da decisão e, em última análise, como essas variáveis se veem afetadas pelo princípio da soberania dos veredictos.

O direito ao julgamento pelos pares, proclamado originalmente em 1215 pela Magna Carta e solidificado no contexto norte-americano, é considerado um elemento simbólico e uma das grandes virtudes do juízo por jurados. Tal preceito tem como escopo assegurar que o réu seja julgado pelos membros de sua comunidade, os quais teriam a capacidade de compreender suas ações dentro de um dado contexto. Esta é uma funcionalidade especialmente importante para a participação cidadã no julgamento dos crimes mais graves: a necessidade de assegurar a integração do tribunal com aqueles que pertencem ao mesmo entorno cultural de quem será julgado.[1]

No contexto anglo-americano os jurados não somente carregam essas normas e valores comunitários em sua forma de avaliar os fatos, mas também desfrutam de uma independência constitucional em relação ao Estado que os permite negar aplicabilidade a determinados preceitos legais[2] em face da potencial produção de uma injustiça concreta – o que é conhecido como jury nullification. As razões implícitas ao exercício dessa prerrogativa vão desde a ideia de que a lei seja injusta ou a sanção prevista seja muito dura — a exemplo da pena capital — , até a convicção de que a promotoria possa ter se exacerbado na acusação, o que os leva a absolver o réu ainda que convencidos de sua culpa.[3]

O poder de nulificar a lei — que tem contornos próximos à ideia de absolvição por clemência — foi algo historicamente conquistado pelo júri ao longo da experiência inglesa e posteriormente transferido para as colônias, simbolizando o seu papel de resistência a um poder arbitrário e materializando o simbólico poder de impor a justiça concreta mesmo diante de uma lei injusta[4]. Não se trata de uma prerrogativa expressa, mas uma consequência da liberdade de decisão dos jurados associada à cláusula que proíbe que o cidadão seja julgado novamente pela mesma ofensa (double jeopardy clause).

Como é sabido, o transplante do júri para a civil law foi promovido em meio à conjuntura da Revolução Francesa, motivado pelo intenso descrédito em seu próprio sistema de tarifação legal. Durante as discussões levadas a cabo em meio à Assembleia Constitucional de 1789, o modelo inglês era considerado um marco do fortalecimento da liberdade, representação que se conformava aos ideais almejados. Todavia, essa importação se concretizou a partir de uma malsucedida releitura da experiência inglesa, conjuntura que revelou uma nova ideia de liberdade de apreciação probatória que em muito se distanciou da versão original.

Um dos aspectos que marcaram esse distanciamento é a dinâmica adotada para a decisão dos jurados, ou o modelo de veredicto a ser proferido. De modo mais amplo, trata-se da forma na qual o sistema prevê a distribuição da função jurisdicional entre juiz e jurados. Entre as três funções essenciais a serem desenvolvidas (decidir sobre os fatos, aplicar a lei aos fatos e estabelecer a sentença) não restam dúvidas de que a primeira incumbe aos jurados e a terceira ao juiz. Quanto à segunda, tanto poderia ser atribuída aos jurados, formando juntamente com a análise fática o que pode ser definido como “questões de culpa”, ou ao juiz, no contexto das questões de pena.[5]

A ideia de separar a análise das questões de fato das questões de direito, de modo que o júri ficasse responsável apenas por apreciar as provas e determinar os fatos poderia parecer, à primeira vista, como a mais aceitável. Isso porque a capacidade prática, a experiência e o bom senso dos leigos seriam qualidades que os tornariam mais habilitados para a tarefa de descobrir a verdade sobre fatos controversos do que a mente mais abstrata e teórica do juiz profissional.[6] Estes últimos seriam, por outro lado, os mais capacitados para aplicar o direito justamente em face de tais atributos, considerando que deixar as questões relacionadas à culpa aos jurados seria problemático pelo seu desconhecimento das complexas matérias jurídicas pertinentes.

O modelo inglês historicamente delega aos jurados a função de decidir sobre a culpa do acusado em sentido amplo, o que fazem por meio dos chamados general verdicts — que se limitam a indicar se o réu é culpado ou inocente em cada imputação formulada. Deste modo, terão de analisar não somente questões puramente fáticas, mas, também, as classificações jurídicas relacionadas à conduta e as questões de direito interligadas com a caracterização do fato previsto na lei como punível. Entretanto, sobre todos esses pontos os cidadãos estarão sujeitos às instruções do juiz presidente.

Na civil law, a idealização de uma absoluta liberdade valorativa materializada na ideia de intime conviction não concebeu qualquer possibilidade de interferência por parte do juiz nessa atividade. O legislador francês acabou por interpretar de forma extremamente literal a ideia de separação entre fato e direito, ignorando, com isso, a dinâmica do procedimento inglês no que se refere aos papeis dos jurados e do juiz profissional. Partindo-se da premissa de que os jurados deveriam se engajar unicamente na decisão das questões fáticas e com base no alerta de Montesquieu de que aos mesmos se deveria submeter apenas um fato por vez[7], adotou-se um modelo de votação seriado composto por indagações sobre as questões de fato. A partir das respostas dos jurados, o juiz era responsável por determinar as consequências jurídicas aplicáveis.

Essa inovação teria acabado por trair a própria ideologia de contenção de poder que motivou a incorporação do júri no território francês, já que limitava a autonomia do órgão de modo a implicar o enfraquecimento do sentido político da instituição. Como aponta Donovan, o entusiasmo com o recém implantado sistema de júri teria durado pouco tempo até que os governos revolucionários começassem a subvertê-lo.[8] Por outro lado, o poder de decisão do júri acabou por se revelar mais forte do que se pensava: diante da incerteza sobre a posição dos juízes, os jurados passavam a responder negativamente às questões de fato que lhes eram submetidas, mesmo que convictos da prática da conduta punível.[9] Os altos índices de absolvição, muitos deles por crimes políticos no período revolucionário, eram vistos como uma resposta dos cidadãos às duras e rígidas penas previstas no Code Penal de 1791.[10]

Veja-se que, de uma forma ou de outra, é intrínseca ao júri e à própria ideia de participação popular na administração da justiça a prerrogativa de se valer de certa dose de clemência em seus julgamentos, ainda que isso importe negar a aplicação da lei em determinados casos. De qualquer forma, o modelo de decisão por questionário juntamente com as demais inovações francesas relativas à valoração e à (falta de) disciplina probatória predominou na Europa na medida em que o juízo por jurados veio a ser adotado pelos demais sistemas jurídicos do continente.

Trazendo a discussão para a problemática brasileira, importa analisar a dinâmica de quesitação instituída pela reforma de 2008 sob o manifesto propósito de atender a um clamor de simplificação já há muito anunciado. O sistema previsto anteriormente era considerado excessivamente complexo, atentando-se para diversos aspectos jurídicos relacionados à imputação ou ao afastamento da responsabilidade penal, ao invés de focar-se, em maior medida, nas questões fáticas. Por tal motivo, era visto como uma das principais fontes de nulidade dos julgamentos perante o júri. A solução adotada, por conseguinte, foi a previsão de questionário tratando, sucessivamente, da materialidade do fato, da autoria ou participação e, em terceiro lugar, uma indagação genérica sobre se o acusado deve ser absolvido. Esse quesito genérico é de formulação obrigatória na medida em que os dois primeiros tenham sido respondidos afirmativamente, e pretende abranger todo e qualquer conteúdo defensivo em favor da absolvição do acusado de modo a afastar a necessidade de individualização das respectivas teses em proposições específicas.

Veja-se que a nova sistemática acabou por mesclar as duas fórmulas de veredicto anteriormente analisadas. De um lado, contempla-se nos dois primeiros quesitos uma análise das questões fáticas envolvidas na verificação da materialidade do fato e sua autoria. Para tais quesitos, pressupõe-se que os jurados devam avaliar racionalmente as provas produzidas a fim de chegarem a uma decisão, a qual poderá plenamente ser objeto de apelação com base em suposta contrariedade à prova dos autos.

Por outro lado, o terceiro quesito aproxima-se ao modelo anglo-americano de veredicto genérico, na medida em que endereça aos jurados não somente questão de fato, mas também questão de direito — ou de forma mais ampla, questão de culpa, nos termos já discutidos. Envolve, por assim dizer, todo um raciocínio axiológico para dizer se a conduta do acusado está justificada ou, por outro lado, se merece reprovação penal. Deste modo, não se esgotando a indagação em uma questão fática e não sendo a prova, por tal motivo, a única fonte da decisão, tampouco é possível que o veredicto seja atacado, neste ponto, por suposta contrariedade a ela. É justamente a abertura axiológica deste quesito que legitima a decisão a partir da subjetividade de uma íntima convicção. Para as questões puramente fáticas, como autoria e materialidade, a ausência de motivação não afasta a exigência de racionalidade e tampouco impede eventual controle por outras vias.

Ademais, a obrigatoriedade de sua formulação também para os casos em que a negativa de autoria venha a ser a única tese defensiva sustentada deixa clara a prerrogativa do jurado de absolver o acusado por simples ato de clemência, o que, se assim não for, implica uma contradição expressa na dinâmica da votação. Intencionalmente ou não, o legislador estabeleceu um quesito que necessariamente terá lugar após o reconhecimento da autoria e materialidade pelos jurados, ainda que não tenha sido arguida qualquer tese de defesa em plenário. Sua redação é prefixada: “O jurado absolve o acusado?” A pergunta é clara, é pessoal (“o jurado”) e é genérica. Não há como afastar a legitimidade de uma absolvição por clemência nesses termos, especialmente na medida em que os princípios constitucionais da soberania dos veredictos e da plenitude de defesa se mostram em perfeita sintonia com tal compreensão. Se é legítimo o emprego de uma argumentação metajurídica em plenário e se a emoção se faz sempre presente na retórica calorosa dos debates, não parece coerente exigir apego à prova justamente no ponto em que o legislador parece ter aberto espaço para a misericórdia popular.

A racionalidade segue sendo necessária para a apreciação da prova de autoria e materialidade, questões fáticas cujo raciocínio deve se orientar por parâmetros epistemológicos válidos. No entanto, a fim de que o juízo popular cumpra verdadeiramente seu papel histórico de garantia do cidadão contra eventuais arbítrios do Estado, deve ter a seu dispor a prerrogativa de atenuar a severidade e insensibilidade da administração profissional da justiça, proporcionando, se assim entender cabível, alguma clemência ao acusado cuja conduta se veja justificável na ótica da sociedade. Este papel garante que a comunidade possa sempre respirar seus próprios valores e visão sobre a aplicação da justiça.[11] [12]
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[1] HENDLER, Edmundo S. El juicio por jurados: Significados, genealogías, incógnitas. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006, p. 13.

[2] JACKSON, John D. Making Juries Accountable. In: The American Journal of Comparative Law. nº 50, 2002, p. 478-479.

[3] Por vezes, pode se justificar também por questões ideológicas. Diante da crise racial na justiça criminal, Paul Butler defende o uso da prerrogativa para enviar uma mensagem aos agentes da persecução penal no sentido de que a violência policial não será tolerada e de que as vidas pretas importam: https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2016/04/05/jurors-need-to-take-the-law-into-their-own-hands/

[4] Ver, sobre o tema, os emblemáticos Bushell’s Case (1670) e o Crown v. John Peter Zenger (1735).

[5] MANNHEIM, Hermann. Trial by Jury in Modern Continental Criminal Law. In: Law Quarterly Review. nº LIII, 1937, p. 104.

[6] MANNHEIM, Hermann. op. cit, p. 104.

[7] MONTESQUIEU. De L’Esprit des Lois. Paris: Garnier-Frères, 1871, p. 74.

[8] DONOVAN, James M. Juries and the transformation... cit., p. 35.

[9] MANNHEIM, Hermann. op. cit, p. 106.

[10] DONOVAN, James M. Juries and the Transformation of Criminal Justice in France in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Chapel Hill: North Carolina University Press, 2010, p. 38.

[11] BARBER, Jeremy W. The Jury is still out: The Role of Jury Science in the Modern American Courtroom. In: American Criminal Law Review. nº 31, 1994, p. 1230.

[12] Agradeço a leitura e comentários de Alexandre Morais da Rosa, Aury Lopes Jr., Caio Badaró e Rachel Herdy.
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Marcella Mascarenhas Nardelli é doutora em Direito Processual pela Uerj e professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Fonte: Conjur

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