A polícia pode acessar dados de celular apreendido sem autorização judicial?

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Essa é uma pergunta que tem gerado dúvidas para quem trabalha com o processo penal. Isso por um motivo relevante, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já a responderam de duas formas distintas.

No âmbito do HC nº 91.867/PA, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, policiais acessaram, sem prévia autorização judicial, o telefone celular de um suposto executor de um crime de homicídio, preso em flagrante. Por meio das últimas chamadas realizadas, teriam chegado ao número do telefone do pretenso mandante do delito. Na ocasião, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que não haveria nenhuma violação à Constituição da República no acesso direto aos dados do aparelho telefônico sem a prévia autorização judicial.

Na ementa, o STF fez duas ponderações interessantes, a primeira a de que "[n]ão se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados". A segunda de que o artigo 6º do Código de Processo Penal (CPP) imporia o "dever da autoridade policial de proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração penal". Nesse contexto, "ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seu mister, buscou, unicamente, colher elementos de informação hábeis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito".

Como não poderia deixar de ser, o mencionado julgamento provocou um intenso debate no Poder Judiciário brasileiro. E foi o Superior Tribunal de Justiça quem, inicialmente, divergiu do entendimento do STF.

No RHC nº 51.351/RO, a 6ª Turma do STJ travou interessantíssimo debate sobre a matéria. Há de se destacar o voto do ministro Rogério Schietti, que, expressamente, analisou o acórdão do STF, no HC nº 91.867/PA. Na ocasião, ele decidiu que os fatos do Habeas Corpus julgado pelo Supremo Tribunal Federal seriam antigos, de uma data em que os telefones celulares não possuiriam acesso à internet. Daí porque, quando do julgamento do RHC nº 51.351/RO, teria ocorrido uma modificação fática relevante para a análise da questão.

A partir do precedente supracitado, as duas turmas do STJ com competência criminal encaminharam a sua jurisprudência em sentido divergente ao HC nº 91.867/PA, julgado pelo STF. No âmbito da 5ª Turma do STJ, o acórdão do RHC nº 67.379/RN, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas, foi um dos primeiros a adotar o entendimento no sentido de que a colheita de dados no telefone celular de uma pessoa apenas pode ocorrer com a prévia autorização judicial. Se assim não fosse, haveria flagrante violação a normas constitucionais e infraconstitucionais.

O debate no Superior Tribunal de Justiça sobre a questão talvez tenha sido fundamental para que o próprio Supremo Tribunal Federal revisitasse a sua jurisprudência. E foi de fato o que ocorreu, no HC nº 168.052/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. Na ocasião, identificou a ocorrência do fenômeno da mutação constitucional e afirmou, expressamente, a superação do entendimento consolidado no HC nº 91.867/PA, em face de "relevante modificação das circunstâncias fáticas e jurídicas". Observe-se os seguintes trechos do voto-condutor:

"Creio, contudo, que a modificação das circunstâncias fáticas e jurídicas, a promulgação de leis posteriores e o significativo desenvolvimento das tecnologias da comunicação, do tráfego de dados e dos aparelhos smartphones leva, nos dias atuais, à solução distinta.

Ou seja, penso que se está diante de típico caso de mutação constitucional".

No voto do ministro Gilmar Mendes, parece ter existido um profícuo debate com as decisões do STJ, notadamente com o voto pioneiro do ministro Rogério Schietti, no RHC nº 67.379/RN.

Além das circunstâncias fáticas, como a conexão com a internet, entre outras, há substancial edição de leis e atos normativos que regulamentam a questão. Mais do que isso, o Direito comparado há muito sinalizava para a ilegalidade do acesso de dados de telefone celular sem a prévia autorização judicial.

No âmbito infraconstitucional, por exemplo, as normas do artigo 3º, II, III; 7º, I, II, III, VII; 10 e 11 da Lei 12.965/2014 estabelecem diversas proteções à privacidade, aos dados pessoais, à vida privada, ao fluxo de comunicações e às comunicações privadas dos usuários da internet. A norma do artigo 7º, III, da referida lei é elucidativa ao prever a inviolabilidade e sigilo das comunicações privadas armazenadas (dados armazenados), "salvo por ordem judicial".

Mas, mesmo antes do Marco Civil da Internet, visando a dar corpo à garantia constitucional, o legislador infraconstitucional afirmou essa proteção no artigo 3°, inciso V, da Lei nº 9.472/1997. Na mesma linha, há a Resolução nº 73/1998 da Anatel. Disposições similares estão presentes nos regulamentos dos serviços de telecomunicação [1].

Já no Direito Comparado, o artigo 8.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, ao proteger a vida privada do indivíduo, assegura que "toda pessoa tem direito ao respeito de sua vida familiar, do seu domicílio e da sua correspondência". Embora tal dispositivo seja de 1950 e tivesse em mira a "correspondência epistolar", a Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Klass [2], entendeu que o termo "correspondência" não deve ser interpretado em um sentido restrito, não se restringindo o ente à forma epistolar, mas se estendendo a toda outra forma de comunicação privada.

Também a doutrina tem entendido que tal dispositivo "protege a correspondência, no sentido mais amplo do termo, incluindo os mais sofisticados meios de comunicação de mensagens" [3]. Ainda quanto ao assunto, é importante relembrar o entendimento do Tribunal Constitucional Espanhol no sentido de que há violação ao direito à inviolabilidade das comunicações toda vez que "existe o acesso policial aos números telefónicos das chamadas recebidas e realizadas, ou seja, quando os agentes policiais acessam, sem prévia autorização judicial, a dados derivados de um processo de comunicação" [4]. Segundo aquela corte:

"O direito ao segredo das comunicações protege não apenas o conteúdo delas, mas também outros aspectos, como a identidade dos interlocutores, razão pela qual fica afetado esse direito tanto pela entrega da lista de chamadas telefônicas pelas companhias telefônicas como o acesso ao registro de chamadas realizadas e recebidas gravadas no telefone móvel" [5].

Essa orientação jurisprudencial é reverberada em diversos casos da corte espanhola nas SSTC 123/2002, FJ 6; 56/2003, FJ 3; 230/2007, FJ 2; .142/2012, FJ 3, y 241/2012, FJ 4, inclusive em precedentes do Tribunal Europeu de Direitos Humanos de 2 de agosto de 1984, caso Malone vs Reino Unido, §84, e de 3 de abril de 2007, caso Copland c. Reino Unido, §43.

A verdade é que a matéria ainda não foi decidida de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal. Possivelmente a pergunta que ensejou o presente artigo apenas poderá ser respondida, com a necessária segurança jurídica, no ARE nº 1042075/RJ, de relatoria do ministro Dias Toffoli, com repercussão geral reconhecida [6]. Nesse recurso, o ministro Gilmar Mendes e o ministro Edson Fachin encaminharam voto no sentido de que

O acesso a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime atribuído ao acusado depende de prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos, a necessidade e a adequação da medida e delimite a sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e ao sigilo das comunicações e dados dos indivíduos (CF, artigo 5º, X e XX).

Ainda que a pergunta aguarde resposta, o fato é que há farta regulamentação da matéria no âmbito infraconstitucional e o Direito Comparado tem sinalizado no sentido de ser ilegal a obtenção de dados no telefone celular de cidadãos sem a prévia autorização judicial, há algum tempo.

Especialmente em um momento como o atual, quando boa parte dos dados da vida privada dos cidadãos está armazenada em aparelhos telefônicos, é imprescindível que se assegure uma cláusula de reserva jurisdição, para acessar o conteúdo de um celular. Isso porque, apenas o Poder Judiciário possui a competência constitucional necessária para ponderar entre os direitos constitucionais à vida privada e ao sigilo das comunicações e os interesses de uma investigação de natureza penal.
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[1] Resolução 426/2005 (Regulamento do Serviço Telefônico Comutado - STFC); Resolução 477/2007 (Regulamento do Serviço Móvel Pessoal - SMP); Resolução 614/2013 (Regulamento do Serviço de Comunicação Multimídia - SCM); Resolução 632/2014 (Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de" Telecomunicações - RGC).

[2] Case of Klass v. Germany, (1978), 2 EHRR 214 áA <Corte vem reiterando seu posicionamento: ECHR, Case of Malone v. United Kingdom (1984), 7 EHRR 14; ECHR, Case of Huvig v. France (1990), Series A, No. 176 B; ECHR, Case of Lambert v. France (1998), 1998-V, no. 86.

[3] ECHR, Case of Kruslin France nº 1-1801185). Judgment of 24 April 1990. (Application nº 11801/85. Transcrição literal da fita: "Tapping and other forms of interception of telefone conversations represent a serious interference with private life and correspondence and must accordingly be based on a "law" that is particularly precise. It is essential to have clear, detailed rules on the subject, especially as the technology available for use is continually becoming more sophisticated".

[4] Nesse sentido, a pacífica jurisprudência do Tribunal Constitucional da Espanha: "En este sentido, debemos recordar que este Tribunal ha reiterado (entre otras, SSTC 281/2006, de 9 de octubre, FJ 4; 230/2007, de 5 de noviembre, FJ 2; 142/2012, de 2 de julio, FJ 3, y 241/2012, de 17 de diciembre, FJ 4) que el derecho al secreto de las comunicaciones (artigo 18.3 CE) consagra tanto la interdicción de la interceptación como el conocimiento antijurídico de las comunicaciones ajenas, por lo que dicho derecho puede resultar vulnerado no sólo por la interceptación en sentido estricto - aprehensión física del soporte del mensaje, con conocimiento o no del mismo, o captación, de otra forma, del proceso de comunicación - sino también por el conocimiento antijurídico de lo comunicado, como puede suceder, sin ánimo de exhaustividad, en los casos de apertura de la correspondencia ajena guardada por su destinatário o de um mensaje emitido por correo electrónico o a través de telefonia móvil. Igualmente se ha destacado que el derecho al secreto de las comunicaciones protege no sólo el contenido de la comunicación, sino también otros aspectos de la misma, como la identidad subjetiva de los interlocutores, por lo que queda afectado por este derecho tanto la entrega de los listados de llamadas telefónicas por las companías telefónicas como el acceso al registro de llamadas entrantes y salientes grabadas em un teléfono móvil" (por todas, SSTC 123/2002, FJ 6; 56/2003, FJ 3; 230/2007).

[5] Sentencia 115/2013, de 9 de mayo de 2013. Recurso de amparo 1246- 2011

[6] Tema 977: "Aferição da licitude da prova produzida durante o inquérito policial relativa ao acesso, sem autorização judicial, a registros e informações contidos em aparelho de telefone celular, relacionados à conduta delitiva e hábeis a identificar o agente do crime".
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Willer Tomaz é advogado e sócio do escritório Willer Tomaz Advogados Associados e do escritório Aragão e Tomaz, em Vitória.

João Marcos Braga é advogado criminalista, sócio do escritório Braga de Melo Advocacia Criminal e pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal.

Fonte: Conjur

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