Introduzida pela reforma trabalhista de 2017, nesta modalidade a carteira de trabalho é assinada, por isso o empregado conta com todas as garantias da CLT, mas a jornada dele é irregular e atende à demanda da empresa.
Atualmente, o TST tem entendimentos divergentes sobre a relação de trabalho e plataformas, em casos envolvendo a Uber: a 3ª Turma decidiu que há vínculo de emprego entre o aplicativo e motoristas, por isso todos os direitos da CLT deveriam ser garantidos pelas plataformas; enquanto a 5ª Turma definiu que se tratam de profissionais autônomos.
No início de outubro, os dois recursos passaram a ser julgados pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do TST, mas o ministro Aloysio Corrêa da Veiga defendeu que eles sejam enviados para o Pleno, que reúne todos os ministros, para que seja fixada uma tese vinculante sobre o tema.
A ministra Maria Cristina Peduzzi foi favorável à medida – ela também havia sido a única a votar, no processo em que é relatora, sob o entendimento de que não há vínculo de emprego. O julgamento está suspenso por um pedido de vista do ministro Cláudio Brandão. Quando ele devolver o processo, os ministros poderão opinar se concordam em votar um paradigma a partir desses casos.
Caso o TST fixe um entendimento geral, independentemente do teor, a decisão é capaz de ter efeitos extensos, já que as plataformas da chamada economia compartilhada somam mais de 1,5 milhões de trabalhadores no Brasil.
O número é de um estudo da Clínica de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR), divulgado em julho. “Embora esse grupo não seja homogêneo, a maioria das pessoas que fazem parte dessa economia no Brasil só tem esse trabalho. Precisamos discutir como proteger esses trabalhadores”, afirma Sidnei Machado, professor de Direito do Trabalho que liderou a iniciativa.
Segundo o TST, desde 2019, chegaram à corte cerca de 500 processos envolvendo aplicativos de mobilidade, como 99, Cabify, iFood, Loggi, Rappi, além da Uber. Desse total, quase 350 defendem a caracterização de vínculo de emprego.
O estudo da UFPR observou na jurisprudência que, de modo geral, o vínculo de trabalho é negado na maior parte dos casos. O principal argumento, presente em cerca de um quarto das negativas, é que não há jornada fixa e o trabalhador pode escolher quando estar disponível. “A liberdade para trabalhar também não afasta o vínculo, já que existe o emprego por produção ou sob demanda”, afirma Machado.
Para o coordenador nacional de Combate às Fraudes na Relações de Emprego do Ministério Público do Trabalho (MPT), Tadeu Henrique Lopes da Cunha, uma decisão do TST com base em algum caso específico poderia dar uma palavra final insuficiente para uniformizar o entendimento.
“Descartar o vínculo de forma absoluta e irrestrita poderia ignorar a situação mais ampla dos trabalhadores de plataformas e dar às empresas um salvo conduto para que o controle se torne ainda mais rígido, sob a garantia de que não são empregadoras”, afirma.
Além disso, ele entende que fixar tese seria um movimento arriscado, diante das particularidades dos termos de uso de cada uma das plataformas, que não são discutidos extensamente nesses processos. O MPT tem ações civis públicas ajuizadas contra as principais plataformas para que seja estabelecido o vínculo de emprego ordinário.
A questão do trabalho intermitente surge como uma ramificação desse debate mais amplo. A legislação trabalhista estabelece que, para caracterizar um emprego, são necessários elementos que indiquem haver subordinação, onerosidade, pessoalidade e habitualidade. No trabalho intermitente, o último item é flexibilizado.
Na prática, significa que a pessoa deve receber ordens e pagamentos, ser a única a executar o serviço e o trabalho não deve ser eventual. Ao mesmo tempo, a CLT define como intermitente o contrato de trabalho em que a prestação de serviços ocorre com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade – conforme o parágrafo 3º do artigo 443º.
A CLT dita uma série de regras sobre como os contratos de intermitência devem ser regidos. O empregado deve ser convocado por qualquer meio de comunicação – o artigo 452-A da CLT fala que isso deve acontecer com, no mínimo, três dias de antecedência.
Então, o empregado tem até um dia para responder à solicitação; se não o fizer, é como se tivesse recusado, automaticamente. É permitido ao trabalhador recusar a oferta, o que não descaracteriza a subordinação. Caso ele aceite, mas não cumpra o serviço, deve pagar 50% do valor da remuneração.
O pagamento não pode ser menor do que o salário mínimo por hora – embora, ao longo de um mês, o valor possa ser inferior à remuneração mínima mensal, se ele trabalhar menos do que oito horas diárias. Por outro lado, o trabalhador poderia ter múltiplos empregos para preencher o tempo em que está inativo.
Diferentemente do vínculo tradicional, os benefícios são pagos após cada período, então, além da remuneração, são incluídas as parcelas proporcionais de férias, 13º salário e folgas remuneradas. Não existe o pagamento anual desse tipo de direito, então, se deseja tirar férias, o trabalhador precisa se planejar para não ser remunerado no período.
As características do trabalho intermitente, para alguns magistrados, são aplicáveis aos trabalhadores de aplicativos. Em Vitória, a juíza Anna Beatriz Matias Diniz de Castilhos Costa, da 7ª Vara do Trabalho (TRT17), tem feito essa interpretação, por exemplo.
Segundo ela, são “inexistentes a subordinação e a habitualidade, no grau e na medida necessária para configurar vínculo tradicional de emprego por contrato escrito, verbal ou tácito de trabalho por prazo indeterminado”, conforme disse em uma das primeiras decisões nesse sentido, contra a Uber, em setembro. Contudo, para ela, há os elementos necessários para caracterizar o modelo de trabalho intermitente.
Antes disso, em julho, o juiz Vladimir Paes de Castro, da 13ª Vara do Trabalho de Fortaleza (TRT7), decidiu no mesmo sentido. Ele entendeu que há subordinação entre a Uber e um motorista, mas, como a prestação de serviços não acontecia em jornada contínua, seria uma forma de trabalho intermitente.
Eles não são os únicos. Há decisões semelhantes partindo de outros tribunais, com volume mais relevante em São Paulo (TRT2) e Minas Gerais (TRT3), por exemplo. Desde agosto, cada tribunal soma pelo menos dez decisões com esse aspecto. A maior parte delas ainda é de primeira instância.
Em São Paulo, um entregador cadastrado no aplicativo Lalamove, que realizava serviços em média 17 dias por mês e recebia cerca de R$ 300 semanais, teve o vínculo de trabalhador intermitente reconhecido pela juíza Katia Bizzetto, da 11ª Vara do Trabalho da capital paulista.
“A criação de novos modelos econômicos e o desenvolvimento tecnológico não podem servir de meio de precarização, sobretudo quando, valendo-se da exploração do trabalho humano, buscam operar à margem da regulamentação e da proteção aos direitos sociais e trabalhistas”, afirmou a magistrada. O caso ainda aguarda julgamento pela 17ª Turma.
Também obteve decisão pelo vínculo de emprego intermitente um entregador do iFood em São Paulo, conforme decisão de Leonardo Grizagoridis da Silva, da 55ª Vara do Trabalho. A média de pagamentos para a fixação dos salários, que impactam os cálculos de benefícios, foi de R$ 4 mil mensais por cerca de dois anos.
De modo geral, os principais argumentos que balizam o entendimento dos magistrados foi o fato de que a CLT prevê que a recusa em prestar serviço não caracteriza insubordinação nesse tipo de contrato e os trabalhadores eram convocados pelo aplicativo.
Além disso, as características de como as entregas ou corridas são alocadas, partindo das plataformas, indicaria a subordinação jurídica. É o caso da decisão pelo preço, que não é do trabalhador nem do cliente, além da possibilidade de punições por atrasos ou qualidade do atendimento.
Também é levado em conta que, para ser trabalho intermitente, não é necessário que o contrato assinado tenha previsto isso. A lógica seria a mesma à aplicada à interpretação de que houve fraude trabalhista em um caso de vínculo tradicional sem assinatura da carteira.
No entanto, esse é um dos pontos que divide magistrados entre os que enxergam uma relação intermitente e os que a descartam – além dos argumentos centrais para reconhecer ou não vínculo, como a definição de controle.
“O simples fato de haver discussão sobre a existência do vínculo empregatício já é o suficiente para afastar o possível enquadramento como contrato de trabalho intermitente”, afirma Juliana Santoni von Held, da 13ª Vara do Trabalho de São Paulo, em decisão que negou o vínculo e entendeu se tratar de trabalho autônomo.
Nessa linha, sem contrato escrito ou se trataria de contrato ordinário da CLT ou não haveria vínculo. A juíza também destaca as exigências formais da legislação para a convocação ao trabalho intermitente, como a necessidade de antecedência de 72 horas para o início do serviço e a punição de 50% do valor caso o trabalho não seja cumprido após ter sido aceito.
Esses pontos costumam ser descartados quando é reconhecido o trabalho intermitente diante das características das plataformas – de modo geral, na maior parte delas, o chamado precisa ser atendido de forma imediata. Assim, é como se houvesse uma aplicação por analogia.
“Sem uma decisão final que sirva de parâmetro para a Justiça como um todo, há muita insegurança nesses contratos, ainda mais quando as interpretações vão além dos requisitos da lei. Se o TST não der clareza também à questão do trabalho intermitente, as disputas podem continuar”, afirma Matheus Quintiliano, advogado trabalhista do Velloza Advogados Associados, em São Paulo
Ao analisar um pedido de vínculo de um motorista da 99, o relator Moisés dos Santos Heitor, da 1ª Turma do TRT2, entendeu haver vínculo de emprego na modalidade de trabalho intermitente. Entretanto, foi voto vencido. A maioria dos desembargadores entendeu que não haveria subordinação jurídica, portanto não deveria se analisar a hipótese de trabalho intermitente, que não seria apartada do vínculo comum.
“As decisões que caracterizam o trabalho intermitente parecem tentar um meio termo. Há plataformas que poderiam ter compatibilidade com as exigências do trabalho intermitente, mas isso não acontece no caso de transporte. Além disso, se for assim, os aplicativos não poderiam punir pela recusa”, afirma o procurador do MPT.
Para Sidnei Machado, da UFPR, a discussão ainda não atinge qual seria o modelo ideal para abarcar os trabalhadores e as empresas dessa nova economia. Isso não seria encerrado com a adoção da figura de trabalho intermitente como alternativa.
“Essa tese é frágil, porque há um estatuto próprio para esses casos que não condiz com o que acontece nas plataformas. Ao mesmo tempo, não faz sentido que o controle de jornada ainda seja o foco para dizer se é emprego”, aponta.
As plataformas também contestam esse enquadramento – pelo lado de que, na visão delas, assim como não haveria características de vínculo ordinário, não há que se discutir também o caso de trabalho intermitente.
“Além de não existir subordinação jurídica de motoristas parceiros com a Uber, também não se aplicam outros requisitos legais da modalidade de trabalho intermitente, como a definição prévia de jornada e a multa por desistência”, afirma a Uber em nota. Os requisitos de antecedência e multa também seriam incompatíveis com o esquema da empresa, em que os motoristas ligam o aplicativo quando estão disponíveis.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que reúne empresas de tecnologia e mobilidade, incluindo a Uber, 99, iFood e Lalamove, afirma que motoristas e entregadores são profissionais independentes que podem definir seus horários livremente e atuar em mais de uma plataforma.
“Essas características de flexibilidade e autonomia, que formam os pilares
fundamentais do modelo de intermediação dos aplicativos, afastam qualquer possibilidade de enquadrar a relação dos parceiros com as plataformas como um vínculo de emprego, em qualquer modalidade”, afirma em nota à reportagem.
Nesse sentido, entende não haver a subordinação jurídica prevista na CLT para que haja uma relação de emprego. “A tese que tenta emoldurar artificialmente a relação de parceiros com as plataformas como vínculo de emprego intermitente não pode ser encarada como ‘meio termo’, pois contraria a jurisprudência já formada sobre o tema”, continua.
A forma de proteger esses trabalhadores defendida pelas plataformas é fomentar a inclusão desses profissionais na Previdência, que daria acesso a proteções sociais, como aposentadoria e licenças remuneradas.
Procuradas sobre as condenações citadas na reportagem, a Lalamove e o iFood disseram que não comentariam decisões judiciais.
Os processos no TRT2, na ordem em que aparecem no texto, têm os números 1000419-56.2022.5.02.0711, 1000642-37.2022.5.02.0055, 1001623-75.2021.5.02.0613 e 1000431-80.2022.5.02.0061. No TRT7, se trata do 0000527-58.2021.5.07.0013. E no TRT17, 0001089-09.2021.5.17.0007.
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Letícia Paiva – Repórter em São Paulo, cobre Justiça e política. Formada em Jornalismo pela Universidade de São Paulo. Antes do JOTA, era editora assistente na revista Claudia, escrevendo sobre direitos humanos e gênero. Email: leticia.paiva@jota.info
Fonte: www.jota.info
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