O mecanismo, que deveria ter caráter restrito, hoje é tratado de forma quase "ordinária" e já supera, em volume, o habeas corpus.
A 1ª turma do Supremo, em sessão realizada na última semana, discutiu se a reclamação ainda cumpre a função original ou se passou a servir como via rápida para questionar decisões de instâncias inferiores.
Os ministros também debateram a necessidade de impor critérios mais rigorosos para sua admissibilidade.
Instituto banalizado?
O pano de fundo foi a Rcl 73.811, ajuizada por empresa de logística, contra decisão da Justiça do Trabalho que reconheceu vínculo de emprego entre ela e um motoboy.
O relator, ministro Flávio Dino, votou por negar seguimento à reclamação por ausência de "aderência estrita" entre o ato questionado e os precedentes do STF.
Para S. Exa., a decisão trabalhista não invalidou a terceirização em si, mas apenas reconheceu que, no caso concreto, estavam presentes os requisitos de uma relação de emprego, o que impediria o Supremo de reexaminar fatos e provas em sede de reclamação.
Ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator. Já Cristiano Zanin abriu divergência, defendendo a procedência da ação para cassar a decisão trabalhista.
Foi nesse contexto que ministro Luiz Fux criticou o uso da reclamação como "atalho per saltum" para trazer ao Supremo discussões que deveriam passar antes pelas instâncias ordinárias:
"Estamos ficando abarrotados de reclamação. A reclamação virou uma via per saltum para instar o Supremo a contraditar a Justiça do Trabalho", afirmou.
Dino reforçou a crítica, alertando para a "ordinarização" do Supremo pela via da reclamação:
"[...] há esta "ordinalização" e transformação do Supremo em instância ordinária para olhar a carteira de trabalho, contrato, e olhar a receita médica não sei de onde, num drama humano que nós não temos nem condições materiais de aferir."
Já Moraes advertiu que restringir demasiadamente o cabimento pode gerar prejuízos graves.
Citou a súmula vinculante 14 (acesso do advogado aos autos de inquérito), a súmula vinculante 10 (cláusula de reserva de plenário) e o debate em repercussão geral sobre o acesso a dados do Coaf. Em todos esses casos, segundo o ministro, a reclamação garante o cumprimento imediato das decisões do Supremo.
"Se nós formos esperar, em alguns casos, esgotar todas as instâncias, [...] isso vai atrasar muito o julgamento final", advertiu.
Dino ainda apontou que há um problema sistêmico: mesmo após o julgamento do RE 566.471 (Tema 6), que fixou critérios para a concessão de medicamentos fora da lista do SUS, o Supremo continuou recebendo centenas de reclamações sobre o tema.
"E isto realmente não tem congruência sistêmica, porque se nós fixamos a tese longa, exaustiva, um trabalho de anos, e nós dissemos que cabe reclamação, para que fixamos a tese?", questionou.
Após o debate, ministro Fux pediu vista e suspendeu o julgamento.
Veja o momento:
Entre o atalho e a preservação da autoridade
O debate evidenciou a ambivalência da reclamação constitucional.
De um lado, ministros como Fux e Dino criticaram seu uso distorcido como via per saltum, acionada por advogados antes mesmo do esgotamento das instâncias.
De outro, Dino ressaltou que a multiplicação de casos também se deve ao descumprimento, por cortes inferiores, de súmulas vinculantes e teses de repercussão geral, situações em que a reclamação é indispensável para garantir a autoridade do STF.
Essa tensão ajuda a explicar por que uma medida concebida como excepcional acabou se tornando um dos instrumentos mais presentes na rotina do Tribunal.
Reclamação constitucional: história e definição
Antes de entender os dilemas atuais, é preciso lembrar como surgiu e foi moldado ao longo das décadas esse instituto que hoje provoca tanta controvérsia.
A reclamação constitucional é considerada um instituto genuinamente brasileiro, sem paralelo no direito comparado.
Sua origem remonta à teoria dos poderes implícitos, consagrada no julgamento norte-americano McCulloch vs. Maryland (1819).
Segundo essa doutrina, ao atribuir determinada competência a um órgão, a Constituição também lhe confere, de forma implícita, os meios necessários para exercê-la. Inspirado por esse raciocínio, o STF passou, já sob a Constituição de 1934, a admitir medidas destinadas a proteger sua competência.
O marco inaugural desse processo foi a Rcl 141, julgada em 1952, quando a Corte reconheceu sua legitimidade para criar instrumentos de proteção institucional, mesmo sem previsão legal expressa.
Anos mais tarde, decisões como a proferida na ADIn 2.480, de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence, reafirmaram essa lógica ao admitir que também tribunais estaduais poderiam instituir reclamações para garantir suas competências constitucionais.
Com isso, a reclamação consolidou-se como um remédio processual excepcional, concebido como ação autônoma, aplicável quando inexistem outros meios adequados para resguardar a autoridade jurisdicional.
Atualmente, a reclamação encontra-se prevista no art. 102, I, l, da Constituição de 1988, havendo previsão semelhante para o STJ no art. 105, I, f.
Diferentemente de um recurso, trata-se de processo de competência originária do tribunal, regulado pelo RISTF - regimento interno do STF (arts. 156 a 162), pela lei 8.038/90 (art. 13) e pelo CPC de 2015 (arts. 988 a 993).
O instituto ganhou nova dimensão com a reforma do Judiciário promovida pela EC 45/04, que introduziu dois mecanismos centrais para o sistema de precedentes:
- Súmula vinculante: enunciado aprovado pelo plenário do STF, de observância obrigatória por todos os órgãos do Judiciário e da Administração Pública.
- Repercussão geral: filtro que permite ao STF selecionar os recursos extraordinários a serem julgados, fixando teses obrigatórias sobre matérias constitucionais relevantes.
A partir de então, a reclamação passou a ser instrumento decisivo para a efetividade desse sistema.
Um exemplo emblemático foi sua utilização para assegurar a aplicação da súmula 14, que garante ao advogado o direito de acesso aos autos de inquérito.
O CPC de 2015 consolidou essa evolução ao prever, em seu art. 988, que a reclamação também pode ser ajuizada para garantir a observância de acórdãos proferidos em IRDR - incidente de resolução de demandas repetitivas e em IAC - incidente de assunção de competência.
Rcl em números
Nos últimos anos, o STF passou a debater os limites da reclamação diante do seu uso crescente contra decisões de tribunais regionais e estaduais (TRTs, TJs e TRFs).
A multiplicação de reclamações levou a números recordes de processos, superando inclusive os HCs, tradicionalmente o remédio mais representativo da jurisdição do Supremo.
Segundo dados da "Corte Aberta" do STF, tramitam no Supremo 4.456 reclamações, contra 1.503 habeas corpus. Ou seja, o número de RCL é quase o triplo dos HCs.
Número de reclamações em 2025 é quase o triplo do número de HCs.(Imagem: Arte Migalhas)
O crescimento das reclamações é ainda mais evidente quando se analisa a evolução anual.
Antes do CPC/15, os números eram relativamente modestos: em 2000, houve 528 reclamações; em 2005, 976; em 2010, 1.301 e em 2015, 3.273.
Após o CPC/15, os números dispararam: 6.576 em 2020; 6.576 em 2020; 10.131 em 2024 e 8.391 em 2025.
Esse marco não é casual: o "novo" Código de Processo Civil conferiu disciplina normativa própria ao instituto, ampliando expressamente suas hipóteses de cabimento e vinculando-o ao sistema de precedentes obrigatórios (recursos repetitivos, IRDR e IAC).
Número de reclamações no STF aumentaram ao longo dos anos, principalmente após o CPC de 2015.(Imagem: Arte Migalhas)
As reclamações concentram-se principalmente em matérias trabalhistas e processuais. Esse perfil mostra que a reclamação tem sido usada especialmente para questionar decisões da Justiça do Trabalho, tema que esteve no centro da discussão da 1ª turma.
Reclamações no STF em temas trabalhistas são a maioria.(Imagem: Arte Migalhas)
No acumulado, de 2000 a 2025, o STF recebeu 81.479 reclamações, dessas:
- 49,8% tiveram o seguimento negado;
- 28,6% foram julgados procedentes;
- 5,1% improcedentes.
O dado reforça que metade das reclamações não supera a fase de admissibilidade, enquanto apenas pouco mais de um quarto é efetivamente acolhido.
Quase metade das reclamações no STF entre 2000 a 2025 foram inadmitidas.(Imagem: Arte Migalhas)
O dilema do instituto
Os números reforçam o diagnóstico feito pelos ministros.
A reclamação constitucional, pensada como exceção, já supera o habeas corpus e cresce de forma exponencial, em especial nas áreas trabalhista e processual.
Parte desse aumento decorre de atalhos processuais usados para levar matérias diretamente ao Supremo, antes de percorridas as instâncias ordinárias.
Outra parte, no entanto, está ligada ao descumprimento reiterado de súmulas e precedentes da Corte por tribunais regionais e estaduais, o que exige uma via rápida de correção.
Esse duplo movimento revela o dilema central: ao mesmo tempo em que é preciso estabelecer critérios mais rigorosos de admissibilidade para evitar abusos, também é necessário preservar a eficácia do instituto como mecanismo de garantia da autoridade do STF.
Encontrar esse ponto de equilíbrio será o desafio para que a reclamação volte a cumprir seu papel original, sem se transformar em mais um recurso ordinário nem perder sua função de resguardar a supremacia das decisões da Corte.
Referência
DOURADO, Aline Carlos. A Reclamação Constitucional no STF: natureza jurídica e função. 2012. 60 f. Monografia (Especialização em Direito - Ordem Jurídica e Ministério Público) - Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, 2012.
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