“Advogar”: verbo transitivo direto e indireto – Por Marçal Carvalho

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bit.ly/2keE48C | O que é advogar?! O que é ser advogado Criminalista!? O que a figura do advogado criminalista representa para a sociedade?

Era agosto de 2019, na cidade de Ijuí, na minha querida e amada terra missioneira. Fui convocado para estar ao lado do meu irmão, o grande tribuno Guilherme Kuhn em julgamento do Tribunal do Júri, naquela ocasião.

Iniciada a réplica, fazendo o uso da palavra o promotor, representante do Ministério Público, carregando na alma a tranquilidade do pedido de condenação cuja acusação que recaía sob as costas do réu estava impregnada de apelo social: o réu, ali acusado de tentativa de homicídio qualificado por motivo torpe e feminicídio, pois teria tentado matar a própria mãe  (a acusação era essa) porque esta não tinha lhe dado dinheiro para comprar drogas (motivação desarrazoada que fora combatida pela defesa). Um prato cheio para os punitivistas de plantão.

Dizia o promotor aos jurados:

A acusação vem aqui de peito aberto e alma tranquila pedir a condenação do réu. Nós só trabalhamos com a verdade, diferente da defesa. Tomem muito cuidado eles senhores jurados, pois eles estão tentando “advogar os senhores”, eles são apenas porta-vozes do acusado e não possuem nenhum compromisso com a verdade.

Afinal o que significou a colocação do termo “advogar” para os jurados!? O que há de tão espúrio em ser porta-voz do réu? A defesa possui compromisso com o que afinal?

O fato de o representante do Ministério Público ter utilizado o verbo advogar de modo totalmente inusitado, diverso de todas as colocações antes já ouvidas por mim, ao mesmo tempo que me causou certo incômodo, colocou-me em alerta.

Em breve entraria em plenário para a tréplica e precisava pensar rápido, utilizar aquela fala um tanto quanto pejorativa com relação à advocacia criminal e remontar o estrago que tal pensamento faz ao senso comum no seio de uma sociedade doente de valores e sedenta por vingança e dor, onde a descoberta do delito, de dolorosa necessidade social, se tornou uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes, jornalistas improvisados não tanto colaboram quanto fazem concorrência aos oficiais de polícia e aos juízes instrutores; e, o que é pior, aí fazem o trabalho deles .

Advogar é um verbo! Mas qual o sentido literal do verbo advogar? Fui procurar no dicionário e lá estava a saída para aquela armadilha montada pela acusação.

Advogar: verbo transitivo direto e indireto, do termo jurídico, defender (alguém ou alguma causa) em juízo ou fora dele.

Naquele momento me dei conta de que a estrada, a rotina, ou qualquer outro que seja motivo, acabamos nos afastando, do real significado que representa ser Advogado Criminalista.

O que nos move na advocacia criminal?  O que faz nos faz pegar um ônibus numa segunda-feira à  noite, viajar mais de 400 quilômetros, passar noites inteiras em claro no mais puro estado de Júri, estudando os autos, lendo e relendo seus incidentes como quem lê um romance? O que o faz empreender a mesma energia em todos os seus processos, independente de receber ou não honorários? Advogado pode pedir a condenação do seu cliente, ou está acorrentado ao pedido cego de absolvição, mesmo quando tudo aponta o contrário?

Lembrei da passagem da célebre obra de Francesco Carnelutti, As Misérias do Processo Penal,  que diz que o acusado é antes de qualquer coisa um necessitado, mas sua necessidade não é  de alimento, nem de roupas, nem de casa, nem de medicamentos; “o único remédio, para ele, é a amizade”. É a necessidade quase que fisiológica especialmente do acusado de ter alguém, talvez a única pessoa que se “sente ao lado dele, sobre o último degrau da escada”.

A sociedade elege seus inimigos. Absorvida pelo espetáculo alienante patrocinado pelos veículos midiáticos, envolta numa verdadeira cortina de fumaça (o medo) e embriagada pela falsa sensação de impunidade, impulsionada pelo mais puro sentimento de vingança contra tais inimigos, se alimenta cada vez mais e de maneira mais incisiva das misérias advindas deste processo de produção, tornando o processo penal em palco de horrores, onde a violência estatal assume suas facetas mais violentas e cruéis, na busca de uma utópica verdade real.

E lá estávamos nós, os advogados, sentados no último degrau da escada, de mãos dadas com aquele que, desgraçadamente, pendia sobre ele o excesso de uma acusação absurda e sem qualquer embasamento fático-probatório.

Voltamos à tréplica, mas já não éramos mais os mesmos que haviam iniciado os trabalhos naquele plenário pela manhã. Graças ao verbo transitivo direto e indireto “advogar”, pudemos mostrar aos jurados porque estávamos lá e por que acreditávamos tanto naquilo que nos move todos os dias.

Advogado é porta-voz do réu sim e não há nada de errado nisso. Ao acusado o inexorável direito de defesa e máximo respeito ao devido processo legal. Mas isso não o faz prisioneiros da mentira em nome da pretensão absolutória custe o que custar.

E assim foi. Pedimos a condenação do réu, e o fizemos com a mesma tranquilidade na alma que teríamos ao pedir a absolvição quando impositivo que se fizesse. Cabe lembrar que, independentemente dos pedidos da acusação e defesa, o Conselho de Sentença, soberano em sua decisão, tem liberdade para absolver o acusado, acaso entenda ser o desfecho justo a partir da apresentação da processo e respectivas provas pelas partes. O réu foi condenado ao justo, dentro do estrito limite da legalidade, transmitindo aos jurados e à sociedade que o dever da advocacia criminal é antes de mais nada defender a democracia, as liberdades e a dignidade da pessoa humana. É isso que, ao fim, ao cabo, faz tudo valer a pena.

Vitória? Nunca, no processo penal nunca há ganhadores. Somos todos perdedores.

É nesta angustia interminável que a advocacia criminal se faz não só presente, mas mais do que isso, a advocacia se faz necessária, pois esta não é profissão para covardes. Deste lado só fica quem tem coragem de enfrentar toda sorte de miséria em nome das dignidades e do Estado Democrático de Direito.
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Por Marçal Carvalho
Fonte: Canal Ciências Criminais

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