Advogado criminalista que não conhece o processo é um candelabro sem vela!

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bit.ly/2ICHiLZ | Da frase cunhada pelo meu irmão de luta, amigo e professor Ezequiel Vetoretti me veio o mote para escrever o texto desta semana.

Advogado criminalista que não conhece o processo é um candelabro sem vela! Não serve para nada!

Minha história no Tribunal do Júri se inicia pelos idos de 2008, em Santa Cruz do Sul (RS) e passa obrigatoriamente pela generosidade deste grande tribuno em me convidar a atuar pela primeira vez em plenário e por ter literalmente me conduzido, desde a preparação daquele processo até a realização dos trabalhos perante o conselho de sentença.

Como se saúda? A quem me dirijo primeiro? Como me refiro aos jurados? Como controlar o tempo, o nervosismo e articulação da prova, tudo ao mesmo tempo? De que modo vou conseguir convencer sete pessoas ou pelo menos a sua maioria de que a tese da defesa faz mais sentido do que a tese trazida pela acusação?

Eu já havia estado em plenário outras vezes, mas desta vez era diferente. Eu não era mais o estagiário, o estudante de direito que carregava os livros do meu mestre; eu era o Advogado de alguém cujo destino havia sido confiado a mim. E isso muda tudo.

Eu estava ali para defender a liberdade de alguém acusado de um homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e por recurso que dificultou a defesa da vítima, pois teria em razão de uma briga de bar, matado a vítima sem chance defesa.

Na ocasião, um desentendimento num jogo de sinuca acaba por colocar em lados opostos, réu e vítima, dois vizinhos até então amigos, que, em razão disso, passaram a se agredir, se tornando inimigos mortais que se odiavam. O réu, temendo pela sua vida, já ameaçada pelas reiteradas agressões sofridas, perpetradas pela vitima, então, consegue um revólver calibre 38 e começa a ir armado ao trabalho. Temia o pior e o pior acontece.

Chegando em casa, após um dia de trabalho ao descer do ônibus e em frente ao bar local de onde se originaram todas as brigas, este é surpreendido pela vitima que portava um facão e partia para cima dele desferindo vários golpes, o fazendo cair. Momento em que saca a arma e com um tiro certeiro no peito o mata. Era ele ou a vítima. Foi a vítima.



No processo, uma testemunha afirma “sem sombra de dúvidas” ter o réu desferido dois tiros para matar a vítima sem que essa pudesse nem sequer exprimir qualquer reação.

Dias sem dormir, estudando o processo, lendo e relendo os autos como se um romance fosse e mesmo com toda a minha abnegação depositada nesse momento inédito da minha carreira, as teses defensivas se perdiam ante a turbidez da minha inexperiência.

Em meio ao turbilhão sentimentos ante ao desafio que se avizinhava, recebi a ligação do meu querido Ezequiel perguntando: “Eaí já leu o processo? Legitima defesa a nossa tese, isso?

E antes que eu pudesse falar qualquer coisa sobre o processo, ele termina dizendo: “Dá uma olhada no laudo de necropsia, que lá está a absolvição do nosso cliente. E desligou.

Incrível! A descrição do ferimento era perfeitamente compatível com o que de fato ocorreu e principalmente com a tese apresentada aos jurados pela defesa. O réu matou, em legitima defesa, e o fez já caído ao chão, sob golpes de facão.

Mais incrível ainda. As informações contidas no exame de corpo de delito, não só afastavam a ilicitude daquela conduta, mas também rechaçavam com muita força aquilo que já se sabia: a única testemunha presencial do crime mentiu. Mentiu porque não viu o que de fato ocorreu. E mentiu porque a versão que contou dava conta de dois tiros desferidos pelo réu de pé.

A testemunha mentiu, mas o laudo não. A lesão que causara a morte da vítima estava lá descrita: 1 tiro! ”1 ferimento compatível com projétil de arma de fogo, orifício de entrada de baixo pra cima e outro orifício de saída”.

Fomos a plenário, eu ali, em completo estado de Júri, boca seca, mãos e joelhos trêmulos, em alerta total, fazendo jus às palavras de Evandro Lins e Silva:

Esse é o instante angustiosamente esperado durante dias, meses, anos, é o momento da concentração completa, absoluta, é a partida para o derradeiro esforço, é a hora de trazer à luz o fruto de um trabalho, que vai brotar e ter vida, após longa, afanosa, cansativa preparação. O advogado levanta-se tenso, em ‘estado de júri’, um turbilhão de ideias e argumentos na cabeça. Dele depende a liberdade de um ser humano sentado à sua frente, é sua, somente sua, a responsabilidade de convencer os sete jurados que vão decidir a causa, de alma e consciência. Cabe-lhe esclarecer, persuadir, conquistar essa alma e consciência. Todos os olhares estão voltados para ele, tudo está parado esperando a sua palavra.

Com a palavra, a Defesa! Todos os olhares voltados para a elegância, habilidade e eloquência de um profissional que transitava com maestria pela prova dos autos, pelas lições de processo e medicina legal. Sabia as regras do jogo como ninguém. Na sua fala, tudo começou a fazer sentido, desde a saudação até os mínimos detalhes trabalhados sob a sua batuta na instrução daquele júri.

O réu foi absolvido e foi pra casa e daquele júri, muito mais pelo trabalho do Dr. Ezequiel, do que pela minha errante contribuição. Mas, mais do que guardar as lembranças da minha primeira atuação em plenário, eu pude levar comigo a mais preciosa das lições acerca da advocacia criminal.

Advogado que não conhece o processo, não serve ao réu, não serve ao Estado Democrático de Direito. Serve apenas a legitimar a violência estatal revestindo de legalidade a pretensão acusatória emanada do monopólio da justiça do Estado.

Advogar é dar voz ao réu, é fazê-lo traduzindo todo sofrimento e angustia do processo em força motriz para resistir à maior das tentações. A punição! Advogar é dizer não ao gozo nefasto pelo sofrimento alheio. Mas cuidado, só se faz advocacia criminal de verdade conhecendo o processo.

Candelabro sem vela

Advogado criminalista que não conhece o processo é um candelabro sem vela! Não serve para nada!
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Por Marçal Carvalho
Fonte: Canal Ciências Criminais

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