A mentira do réu pode ser valorada negativamente pelo juiz na sentença?

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A conduta do réu que descadaramente inventa um ardil a fim de se esquivar do resultado justo de um processo judicial — contrapondo sua versão a todos os elementos probatórios que cabalmente levam a um resultado diverso — demonstra desprezo à boa-fé e à lealdade processual, comportamento que se contrapõe diametralmente à conduta perpetrada pelo acusado que permanece calado ou mesmo confessa a participação no crime.

Esse comportamento, avesso ao que se espera do homem médio, é tratado no Direito norte-americano como perjúrio e está tipificado como ilícito penal. No Direito pátrio, alguns doutrinadores defendem a impossibilidade de sua tipificação, malgrado o projeto de Lei nº 4.192/15, com essa finalidade, tenha sido rejeitado pela Câmara dos Deputados. Entrementes, demonstrar-se-á que essa conclusão é inteiramente equivocada.

Como é cediço, o texto constitucional encampa outras garantias que afiançam um processo justo e democrático, circunstâncias que espancam o "direito à mentira" propalado por muitos, sobretudo porque não há nenhum direito absoluto ou que se sobreponha os demais.

Com efeito, malgrado as garantias processuais devam ser observadas e com elas não se possa transigir, é inaceitável que o processo penal se constitua como instrumento para salvaguardar condutas desleais e incompatíveis com o ordenamento jurídico pátrio, até mesmo com a própria Constituição da República.

O direito ao silêncio é expressão da garantia à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere) e corolário do princípio da não culpabilidade, constituindo-se como máxima garantia do preso ou acusado não produzir provas contra si mesmo, não se obrigando a assumir postura ativa quando perguntado sobre eventual infração penal supostamente por ele praticada.

É escorreito conceber o seu desenvolvimento ao Direito norte-americano, sobretudo no "caso Miranda v. Arizona" (1966). No escólio de Gilmar Mendes:

"Tal como anotado pelo Min. Pertence em magnífico voto proferido no HC 78.808, de que foi o relator (DJ de 16-4-1999), o direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional – a partir de sua mais eloquente afirmação contemporânea em Miranda vs. Arizona (384 US 436, 1966), transparente fonte histórica de sua consagração na Constituição brasileira – porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a autoincriminação — nemo tenetur prodere se ipsum, quia nemo tenere detegere turpitudinem suam —, que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa de perder na atualidade".

Em síntese apertada, o caso em apreço tratou da situação em que um acusado foi interrogado por policiais sem que estes o informassem previamente acerca de seus direitos, entre eles o de permanecer calado. Em decisão histórica, a Suprema Corte norte-americana anulou o julgamento, admitindo a invalidade da confissão obtida nessas circunstâncias.

No Direito norte-americano o direito ao silêncio, conforme sobredito, também possui feição constitucional. Contudo, naquele ordenamento, o perjúrio, que nada mais é do que a mentira propalada em juízo, constitui-se como infração penal.

Houve tentativa de criminalização do perjúrio no Direito Penal brasileiro por intermédio do Projeto de Lei nº 4192/2015, que incluía no Código Penal o artigo 343-A, com a seguinte redação: "Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo". No entanto, o aludido projeto foi arquivado pela Câmara dos Deputados.

Sobre o projeto em apreço, a sua rejeição certamente não contribuiu para o aperfeiçoamento do Direito Processual Penal brasileiro, haja vista que a ausência de consequências jurídicas para a declaração mentirosa externada dolosamente pelo réu incentiva-o a tomar atitudes contrárias à boa-fé e a lealdade processual.

Contudo, a reprovação do projeto, embora impeça a tipificação legal do perjúrio, não obsta o magistrado de considerar a mentira descabida como circunstância judicial negativa (artigo 59, do Código Penal), em nosso sentir.

O direito de permanecer calado constitui-se como direito de defesa, impondo-se ao Estado um dever de abstenção, de modo que não se permita qualquer tipo de incursão estatal na esfera individual do preso ou acusado com o escopo de impor-lhe a obrigação de produzir prova contra si mesmo.

É em razão desses aspectos que a doutrina majoritária e a própria jurisprudência dos tribunais superiores têm considerado o interrogatório como meio de defesa, e não de provas, muito embora possa se prestar à última hipótese, como no caso de uma confissão corroborada por outros elementos de prova existentes no processo.

Essa ilação permite duas principais consequências para o réu: a primeira, analisar a conveniência e/ou oportunidade de prestar suas declarações, a fim de escolher o que lhe for mais favorável no seio do processo; a segunda, de caráter sancionatório, significa que a ausência de oportunidade de ser interrogado significa nulidade absoluta do processo.

Todavia, o direito de permanecer em silêncio outorga ao investigado apenas a oportunidade de relatar sua versão sobre os fatos ou de abster-se de falar em juízo, pois a ele não é dado menoscabar o dever de lealdade e boa-fé processual que permeiam o ordenamento jurídico como um todo.

O dever de lealdade consiste no respeito à honra e à honestidade, e aplica-se a todo o ordenamento jurídico, devendo se imiscuir também nos preceitos do Direito Processual Penal, haja vista que o último não se constitui como um jogo despido de regras, as quais se aplicam também ao acusado, e não apenas ao acusador.

Seguindo este espírito, o artigo 5º do Código de Processo Civil dispõe: "Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé". Não se pode chegar a outra ilação senão pela obrigação das partes de se comportarem em conformidade com a boa-fé objetiva.

Nesse contexto, é importante explicitar o conceito de boa-fé objetiva no âmbito do Direito Civil:

"Sucintamente, o que vem a ser a boa-fé objetiva? É o princípio que impõe às partes, numa relação negocial, agir com lealdade e cooperação, abstendo-se de condutas que possam frustrar as legítimas expectativas da outra parte. Trata-se de princípio que não depende, obviamente, de previsão no contrato para ser aplicável a ele"

É possível inferir do conceito alhures que a boa-fé objetiva possui íntima correlação com a lealdade e a cooperação. Aliás, o dever de cooperação também foi incluído no artigo 6º do Código de Processo Civil, cujo escopo é alcançar uma decisão de mérito justa e efetiva.

Embora o dever de boa-fé processual não esteja registrado de forma expressa no Código de Processo Penal, não se pode olvidar que o próprio estatuto, em seu artigo 3º, admite a interpretação extensiva e analógica, o que, a nosso ver, permite a sua aplicação no âmbito do ordenamento jurídico sub examine.

Em relação à boa-fé objetiva, é possível concluir que todo o ordenamento jurídico pátrio — não apenas o processual civil — está permeado pela obrigatoriedade de aplicação do preceito, já que uma das funções da jurisdição é a aplicação do direito objetivo no caso concreto, escopo que não será atingido sem a cooperação das partes no processo penal.

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a necessidade de aplicação da boa-fé objetiva ao processo penal, no caso, para rejeitar a denominada "nulidade de algibeira", conforme excerto do aresto abaixo transcrito:

"(...) A jurisprudência dos Tribunais Superiores não tolera a chamada 'nulidade de algibeira' — aquela que, podendo ser sanada pela insurgência imediata da defesa após ciência do vício, não é alegada, como estratégia, numa perspectiva de melhor conveniência futura. Observe-se que tal atitude não encontra ressonância no sistema jurídico vigente, pautado no princípio da boa-fé processual, que exige lealdade de todos os agentes processuais".

O trecho sub examine realça a obrigação das partes na manutenção da lealdade processual durante o curso do processo, afastando-se comportamentos contraditórios à expectativa dos atores envolvidos, sobretudo quando a "estratégia" defensiva se constitui como cilada para obtenção de um resultado benéfico ao réu.

Rodrigo de Carvalho Assumpção é juiz de Direito em Minas Gerais, professor de cursos jurídicos e mestrando em Direito pela Universidade de Salamanca, na Espanha.
Fonte: Conjur

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