Cabe analogia in malam partem no processo penal? Por Victor Emídio Cardoso

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bit.ly/2llBH4k | Questão interessante, mas pouco debatida, é a que trata da (in) aplicabilidade da analogia in malam partem ao processo penal brasileiro.

Como sabido, a analogia é uma forma autointegrativa da lei que tem por fundamento o brocado romano ubi eadem ratio, ibi eadem jus (onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito (CAPEZ, 2017).

Significa dizer, em breves palavras, que sempre que determinado fato não se enquadrar em nenhuma hipótese legalmente prevista, o juiz está autorizado a aplicar norma relativa a um caso semelhante.

Mesmo os acadêmicos menos apaixonados pelas Ciências Criminais sabem que o Direito Penal brasileiro, ao menos em tese, não admite a aplicação da chamada analogia in malam partem, sob pena de grave afronta ao consagrado princípio da reserva legal (CR/88, art. 5º, XXXIX e CPB, art. 1°).

Portanto, é pacífico que, em matéria penal, o aplicador da lei, ainda que sob o pretexto de preenchimento de uma lacuna normativa, não pode criar nova hipótese incriminadora, sancionadora ou que, de qualquer modo, prejudique ou agrave (ainda mais) a situação do réu.

Contudo, em matéria processual penal, embora alvo de tímidos debates na doutrina, a temática não é tão pacífica assim.

O art. 3º do CPP dispõe que:

A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito (grifou-se). 

Assim, ante a expressa disposição legal, não restam dúvidas de que a analogia, enquanto forma de autointegração legislativa, é perfeitamente aplicável ao direito processual penal brasileiro.

Cuidaremos de analisar, agora, a possibilidade de seu uso em prejuízo do acusado.

Há certa doutrina brasileira que defende que, de forma oposta ao que ocorre no Direito Penal, no qual só é admitida a analogia se for em benefício do agente (in bonam partem), no processo penal inexiste tal vedação. Sustentam que a omissão legislativa não pode prejudicar a eficácia da persecução penal.

Com o devido respeito às posições contrárias, entendo que tal argumento não convence.

Atualmente, a discussão acerca das distinções entre o direito material (ou substantivo) e o direito processual (ou adjetivo) vem perdendo força.

Equivocados são os dizeres de que as normas penais de cunho material são aquelas unicamente inseridas no Código Penal e na legislação penal extravagante. De igual modo, equivoca-se quem diz que as normas processuais penais são aquelas insertas tão somente no Código de Processo Penal.

Não é bem assim. Não se pode ignorar, por exemplo, o fato de que ambos os diplomas legais apresentam normas penais de conteúdo misto, ou seja, que tratam, simultaneamente de questão penal e processual.

Assim, soa quase inadmissível estudar e refletir acerca do processo penal de maneira distante em relação ao Direito Penal. Isso porque, como bem ensina o professor Aury LOPES JR. (2019):

Não poderá haver punição sem lei anterior que preveja o fato punível e um processo que o apure. Tampouco pode haver um processo penal senão para apurar um fato aparentemente delituoso e aplicar a pena correspondente.   

E prossegue ilustre advogado criminalista dizendo:

Assim, essa íntima relação e interação dão o caráter de coesão do “sistema penal”, não permitindo que se pense o Direito Penal e o processo penal como compartimentos estanques (grifou-se). 

Por consequência, mesmo reconhecendo que o Direito Penal e o processo são ramos autônomos, se realizarmos uma análise sistêmica de ambos, não poderemos (jamais) admitir que contenham quaisquer disposições conflitantes entre si, o que, por óbvio, inclui a inadmissibilidade da analogia im malam partem no processo penal.

Nesse sentido, soa ilógico que o processo penal, numa verdadeira afronta à própria existência harmônica do “sistema penal”, possa admitir instituto não permitido pelo Direito Penal (e vice-versa).

Em caráter exemplificativo, impende mencionar a problemática da sucessão processual prevista no art. 31 do CPP, que dispõe:

No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. 

Ocorre, porém, que tal dispositivo legal não se encontra em total harmonia com o disposto no §3º do art. 226 da CF/88, uma vez que não faz nenhuma menção à união-estável e, consequentemente, à figura do (a) companheiro (a).

Nessa ótica, estaria o (a) companheiro (a) incluído (a) no rol de sucessores processuais trazido pelo art. 31 do CPP? Boa parte da doutrina parece sustentar em sentido afirmativo. Contudo, mais uma vez, não me parece ser esse o melhor caminho.

Cuida-se de norma dotada de conteúdo não só processual, mas também penal, já que, quanto menos sucessores existirem para fins de possibilidade de oferecimento de queixa ou prosseguimento na ação penal, maiores serão as chances de, nos termos do art. 107, inciso IV, do Código Penal, a punibilidade ser extinta em razão da decadência.

Haverá, portanto, evidente reflexo em relação ao poder punitivo estatal, o que não se coaduna com a possibilidade de incidência da analogia im malam partem, sob pena de grave afronta ao princípio da legalidade (LIMA, 2016).

Por fim, partilho da visão de que o processo penal é uma garantia do acusado, o que significa dizer que o poder punitivo do Estado não é ilimitado. Está condicionado a uma série de regras e princípios.

O que se pretende dizer é que, qualquer que seja a noção de “eficiência da persecução penal”, esta não pode ter o condão de suprimir direitos e garantias fundamentais. Os fins não justificam os meios.

Que seja eficiente, mas dentro da legalidade.
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REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: arts. 1º a 120. 21. ed. São Paulo : Saraiva, 2017.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
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Por Victor Emídio Cardoso
Fonte: Canal Ciências Criminais

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