"Sou a louca do litigioso", diz advogada portadora de paralisia cerebral congênita

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A advogada Marcella Santaniello Buccelli, 35 anos, não fazia ideia de que 11 de outubro era o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Física. "Bom saber, assim vou começar a pedir para me darem parabéns", brinca ela, que é portadora de paralisia cerebral congênita. Quando estava grávida, sua mãe cursava o último ano de engenharia e contraiu toxoplasmose ao comer carne mal passada no refeitório da empresa onde fazia um estágio.

Apesar da brincadeira, Marcela reconhece a importância de se criar uma data para conscientizar a sociedade sobre os desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência física: "Por temperamento, sempre fui de brigar pelo que eu acho justo e vou às últimas consequências. Sou a louca do contencioso, do litigioso", diz ela, rindo muito, durante a entrevista que deu ao blog em uma das amplas salas de reuniões do banco de investimentos onde trabalha no setor jurídico.

Há cinco anos trabalhando no setor jurídico do banco BTG Pactual, Marcella diz que vai às últimas consequências no contencioso: "É a história da minha vida" (Foto: Paulo Sampaio/UOL) 

Ao dizer que discute quando uma situação a deixa indignada, e que acredita na sua tese até o último recurso ("Essa é a história da minha vida"), Marcella explica que seu enfrentamento não deve ser confundido com ativismo: "Acho legal que haja movimentos de defesa da pessoa com deficiência física, dos homossexuais, dos negros, me solidarizo inclusive, mas não levanto bandeira. Eu tenho a minha própria batalha, venço no dia a dia."

10% da população 

De acordo com dados na Organização das Nações Unidas (ONU), essa parcela da população significa 10% do total do planeta, e apresenta as mais variadas manifestações — física, auditiva, visual, mental ou múltipla, quando duas ou mais delas estão associadas.

O decreto lei nº 3298, de 1999, define a deficiência como "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano".

Minimizando sequelas

Extremamente afirmativa, Marcela em momento nenhum fraqueja ao contar sua história. Não existe autocomiseração. Ela concorda que a deficiência física (ou de qualquer outra espécie) fica maior, ou menor, dependendo de como o portador a encara, ou no que ele a transforma. No seu caso, ela minimiza o quanto pode as sequelas. Quando diz que nunca foi discriminada nem sofreu bullying, eu a instigo: "Nunca sofreu, ou não teve ouvidos para isso?"

Resposta: "Não tenho lembrança de criança tirando sarro de mim." Por sinal, ela conta que passou por dificuldades na primeira escola em que estudou, para crianças especiais, justamente porque "quase ninguém conseguia falar, então eu não tinha com quem conversar, me sentia sozinha, um peixe fora d'água".

Livre demais 

Ainda à procura da melhor forma de adaptação para ela, seus pais a matricularam em uma escola que seguia a linha montessoriana, cujo método dá relativa autonomia ao aluno para que ele possa se desenvolver de acordo com sua própria natureza. Ela tinha 6 anos.

Aos 8, pediu para sair. "Eu me senti livre demais, não fazia nada (risos)". Só quando a colocaram em uma escola "normal" (nas palavras dela), Marcella de fato se encontrou. No Colégio Agostiniano Mendel, considerado um dos mais puxados do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, ela diz ter feito seus "melhores amigos". A advogada lembra que "amava muito a escola", a ponto de sua mãe, quando ficava brava, determinar como castigo não deixá-la ir à aula.

Na base do bom senso 

Mas não, nem tudo foi tão tranquilo quanto pode parecer. Em determinado momento, ela precisou fazer-se ouvir naquilo que considerava injusto em relação ao aluno com deficiência física, já que não havia lei que regulasse esses casos no currículo escolar: "Eu dizia às professoras que não dava para terminar uma prova no mesmo tempo que todos os alunos da sala. Se eles gastavam uma hora, eu levava duas", lembra ela, que é cadeirante e tem comprometimento motor. Não houve sequela intelectual.

Como teve o privilégio de estudar em uma escola particular, essas questões foram resolvidas informalmente, na base do bom senso. "Em um primeiro momento, tinha uma professora que não entendia. Mas aí o orientador educacional interviu e me ajudou sem contar com lei nenhuma." Ela reconhece que, de lá pra cá, "as coisas começaram a melhorar".

Curiosa e disponível 

Aparentemente, o segredo da superação em Marcella está em seu espírito curioso, disponível, desbravador. Ela seria uma bem disposta aventureira, sem tempo para conversa fiada. Vida afetiva? "Se eu não encontrar algo que possa ser legal para mim, prefiro ficar só. Dá para ser feliz de tantas maneiras na vida, não vou morrer se não tiver namorado."

Apesar de seus pais, ambos, serem engenheiros, ela diz que sempre teve dificuldade em matemática ("em física era pior ainda"), e que o curso de Direito, feito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no centro de São Paulo, teve como qualidade precípua libertá-la dos números. "Sempre gostei de escrever, me comunicar, nada a ver com 'exatas"', diz.

Chega de concurso 

Quando se formou, ela pensou em prestar concursos públicos, queria a promotoria, mas então percebeu que era "muito ansiosa e imediatista" para investir tempo em cursinhos e ainda esperar, depois de aprovada, para ser chamada. "A ideia de concurso me cansou. Hoje eu vejo que, de fato, aquilo não tinha nada a ver comigo."

Ao mesmo tempo, a avó que ela considerava uma "segunda mãe" sofreu um AVC e teve sequelas graves: permaneceu incomunicável durante cinco anos. "Quando eu percebi que podia ficar muito deprimida, resolvi dar uma guinada na minha vida. Fazer tudo diferente, recomeçar do zero."

Amor pelo teatro

Para receio de seus pais, que a viam bem colocada em um cargo público, Marcela decidiu se aventurar no setor privado. Distribuiu seu currículo por muitas empresas, até que o banco em que trabalha há cinco anos a chamou. Apesar de ser uma das instituições financeiras mais conhecidas do país, ela confessa que não sabia do que se tratava: "Quando me chamaram para conversar, estudei tudo sobre o banco. Cheguei aqui para a seleção afiadíssima."

Sua mais nova realização é um curso de teatro. Apaixonada por palco, há seis meses ela entrou para a Oficina dos Menestreis, que o cantor Oswaldo Montenegro fundou há quase 30 anos. "É teatro amador", diz ela, meio exibida.

Pose para fotos: "Adoro essa parte. Nunca saio bem, mas adoro", diz. Depois dos cliques, ela olha o resultado no visor e diz: "Ah, até que eu saí bem dessa vez."

Por fim, sempre com o raciocínio muito ágil, Marcella conta que a melhor coisa que ouviu em suas batalhas de superação veio de um dos médicos que a trataram. "Ele me disse que o termo 'paralisia cerebral' é um palavrão. Não faz sentido. O cérebro não anda, então não pode parar." No caso dela, faz todo sentido.

Erramos: Diferentemente do publicado, 11 de outubro é o Dia Nacional, e não Internacional, da Pessoa com Deficiência Física.

Paulo Sampaio
Fonte: paulosampaio.blogosfera.uol.com.br

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