Aos 60 anos, estudante vai se formar em Direito na faculdade onde começou como faxineira

bit.ly/2oDrIZV | Um trecho de uma aula sobre direito de família, escrito no quadro de uma das salas do 12º andar da Faculdade do Ministério Público (FMP), em Porto Alegre, foi o suficiente para inspirar a então auxiliar de serviços gerais Leana Chaves de Alcantara. Era abril de 2012 e ela, na época com 53 anos, vislumbrou a possibilidade de aprender mais sobre o tema ao ponto de poder discuti-lo numa roda de conversa entre advogados. O desejo, que parecia tão distante há sete anos, deve se concretizar no próximo semestre: Leana, hoje com 60 anos, se formará em Direito na mesma faculdade onde começou faxinando.

Acostumada a mudar a direção da própria vida sem dar chance para o medo, a atual universitária chegou ao setor de limpeza da FMP depois de se perceber sem espaço no mercado de trabalho. Nos 18 anos anteriores, ela havia atuado com terapias alternativas e artesanato. No começo da carreira, e ao longo dos 19 anos seguintes, ainda foi bancária e digitadora.

Essas experiências, porém, já não eram suficientes para uma vaga na área administrativa. Desatualizada e precisando de um emprego com carteira assinada, por conta de dificuldades financeiras na família, estava decidida a recomeçar onde surgisse a primeira oportunidade. Foi uma amiga quem lhe indicou a vaga no setor de limpeza da instituição.

— Na hora, pensei: "sempre limpei a minha casa, ficando famosa na família por prezar pela limpeza, logo, não terei dificuldades em limpar salas de aula" — recorda.

Não foi como Leana imaginava. Nas primeiras duas semanas, as dores nos braços e o choque de realidade quase lhe fizeram desistir do emprego. Varrer o chão de quatro salas do 12º andar e tirar o pó das classes, no período da tarde, e ainda revisar salas e banheiros de cinco andares do prédio, no período da noite, não eram tarefas fáceis. Mas foi numa dessas inspeções que teve o insight de voltar a estudar.

No mesmo dia, buscou informações sobre o curso no site da faculdade e descobriu que poderia ter incentivo educacional por ser funcionária. Para não surpreender os parentes, contou sobre a decisão apenas ao marido, Jorge Augusto Bandeira Lang, que se recuperava de um infarto.

Ela esperou passar o período de experiência no trabalho, de três meses, e inscreveu-se no vestibular de inverno faltando poucos dias para as provas.

Leana fez dos livros de Direito uma paixão durante a faculdadeMarco Favero / Agencia RBS

— Não pensei na minha idade, no pouco tempo que eu teria para estudar, nem no tempo que levaria para concluir o curso. Revisei testes anteriores da faculdade e tirei dúvidas assistindo a vídeos no YouTube. Não tive dificuldades com a redação sobre a importância de sorrir, porque sempre acompanhei noticiários e gosto de escrever — comenta.

Felicidade ao ver a lista dos aprovados

Leana embarga a voz ao rememorar o dia em que Jorge a chamou para ver seu nome na lista dos aprovados. A data é considerada aquela em que teve uma das emoções mais intensas já vivida. Uma explosão de felicidade lhe tomou conta: após 34 anos afastada dos estudos, ela faria uma graduação. Um churrasco em família marcou o ingresso da única entre seis irmãos a chegar à universidade.

Para facilitar a continuidade na faculdade, ela recebeu da instituição uma bolsa de 100%. O começo do curso foi extenuante para Leana, pois ela trabalhava nos períodos da manhã e da tarde, além de estudar à noite. A biblioteca acabou se tornando um refúgio nos intervalos.

— Sempre foi um lugar mágico. Lembro como se fosse hoje o primeiro livro que peguei. Fiquei muito feliz — confidencia.

Outra forma de estudar encontrada foi usar fones para ouvir as gravações das aulas enquanto varria as salas _ método usado até hoje. Nem assim, conseguiu ser aprovada em todas as disciplinas nos primeiros semestres. O curso, previsto para ser concluído em cinco anos, deverá ser finalizado em sete anos e meio.

— Várias vezes, eu ficava com cara de paisagem, sem entender nada sobre o que o professor falava. Usei muito o dicionário para aprender os termos técnicos. Hoje, entendo sobre o que estou falando e sou uma aluna atuante em aula, sem ser inconveniente — relata, aos risos.

Leana foi promovida à recepcionista na instituição depois de dois anos e meio como serviços gerais. No mesmo ciclo, quando estava no quarto semestre do curso de Direito e ganhando mais confiança nas disciplinas, a universitária ficou viúva. O luto quase a fez trancar um semestre. A ideia foi removida com a ajuda do Núcleo de Apoio Pedagógico da FMP, que a auxiliou na mudança para um novo apartamento na Capital. Nos livros, encontrou a força necessária para enfrentar o abalo emocional da perda do maior incentivador da sua volta aos estudos.

Nos semestres seguintes, focou na faculdade e no trabalho como recepcionista. Também fez estágio no Procon-RS. De tão querida pelos demais alunos e colegas de curso, foi duas vezes a funcionária homenageada nas formaturas. Na próxima, uma antes da própria, prevista para o final deste ano, receberá a terceira homenagem. Preocupada com a situação de crianças e adolescentes, abordará no trabalho de conclusão de curso (TCC), a ser concluído no último semestre do curso, a violência contra eles. Outro tema de interesse é a questão da migração no mundo.

A futura advogada acredita que o Direito lhe ampliou o leque de conhecimento e de possibilidades de trabalho. De olho no futuro, Leana planeja cursar uma especialização em mediação de conflitos logo após a conclusão da faculdade. A ideia é atuar nessa área depois de formada. Será a hora de recomeçar, mais uma vez:

— Recomeçar faz parte da minha vida. Não quero olhar para trás e dizer "nem tentei". Este arrependimento eu não vou ter.

Fonte: gauchazh.clicrbs.com.br

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