Militares no INSS: isso é juridicamente possível? Artigo de Rodrigo Belmonte

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bit.ly/2NJDICx | O governo federal e a direção do INSS adotarão medidas de gestão para tentar alcançar a eficiência administrativa da autarquia federal sobredita. Trata-se de um conjunto de ações que visam solucionar problemas encontrados nas atividades do Instituto Nacional do Seguro Social, que é pessoa jurídica de direito público, vinculada à Administração Pública indireta da União, o órgão foi criado 1990.

Uma das soluções para dinamizar o serviço do INSS é o emprego de mão-de-obra de militares da reserva das Forças Armadas nas atividades da autarquia. Segundo o Palácio do Planalto e o INSS isso é uma ideia que consiste, basicamente, em: 1) convidar militares da reserva, cerca de 7.000 (sete mil) para trabalhar; 2) em contrapartida ao trabalho, a União e ou o  INSS darão um acréscimo remuneratório a esses militares. Tudo isso seria feito por meio de um decreto presidencial, amparado pelo art. 84, inciso VI da Constituição da República de 1988.

Posto isso cumpre esclarecer que esse texto não tem por finalidade analisar o mérito da ideia, mas sim sua viabilidade jurídica sob a luz da Constituição da República e das normas infraconstitucionais vinculadas ao regime jurídico de direito público, especialmente o direito Administrativo. Salienta-se ainda que os comentários aqui alinhavados distanciam-se, e muito, de quaisquer das ideologias políticas dominantes nesta República.

Quem tem legitimidade para propor medidas de gestão no INSS?

O INSS é pessoa jurídica de direito público portadora de autonomia administrativa. A autarquia não está subordinada ao Poder Executivo e a qualquer dos seus Ministérios, quem define isso é o Decreto-lei 200/67, norma que organizou a Administração Pública como conhecemos. Apesar disso, há uma vinculação administrativa com o Ministério da Economia, mas isso não implica em subordinação. Então, eventuais ações gerenciais e burocráticas para o INSS precisam partir da sua e não da presidência da República. O poder regulamentar para implementar “reformas” deve ser exercido diretamente pelo presidente da autarquia e não pelo presidente da República ou, se for o caso, por intermédio de lei federal, específica e ordinária.

Mas a quem cabe a legitimidade e competência para executar a medida de disponibilizar mão-de-obra de militares da reserva das Forças Armadas? Nesse caso, ao presidente da República por disposição expressa do art. 142, caput, da CF/88. E isso (disponibilizar mão-de-obra sem criar despesas) pode, constitucionalmente, ser feito por decreto presidencial. Mas ao presidente da República cabe disponibilizar a mão-de-obra. Aceitar essa força de trabalho e utilizá-la na execução de serviços civis previdenciário, cabe à autarquia federal e não ao Executivo, pois, como asseverado anteriormente, o INSS é órgão portador de autonomia administrativa. Lembre-se que a aceitação e uso dessa força de trabalho será uma decisão administrativa vinculada ao regime jurídico de direito público.

Militares da reserva das Forças Armadas podem executar serviços públicos civis no INSS?

A resposta para esse questionamento exige uma abordagem jurídica mais ampla. Para responder é necessário entender o que é o INSS e o que é feito nessa instituição e por quem.

Bom, como já dito o INSS é uma autarquia previdenciária federal, é pessoa jurídica de direito público, é responsável pela execução de serviços públicos previdenciários, cuja execução compete aos servidores públicos civis. Tal conclusão decorre do que dispõe a Constituição da República, art. 37 usque 41 e 201 ao 202, lei nº 8112, lei nº 8212 e decretos regulamentares aplicáveis.

O serviço executado no INSS tem natureza jurídica de serviço público previdenciário civil de caráter primário. Essas atividades são vinculadas à Seguridade Social que, por sua vez, trata-se de um conjunto de direitos constitucionais fundamentais do cidadão previstos na CF/88.

Em vista da natureza jurídica dos serviços em questão (serviços públicos civis e primários) vale destacar que apenas as seguintes categorias de trabalhadores podem executar, regularmente, as atividades previdenciárias no INSS, a saber: a) estagiários, b) ocupantes de cargos comissionados (direção, chefia e assessoramento) e c) servidores públicos concursados. Salienta-se que segundo a legislação atual, particulares não podem executar esse serviço público previdenciário e de caráter primário, sob pena da violação do princípio e regra da obrigatoriedade do concurso público, que por sua vez é baseado na igualdade e na impessoalidade.

Posto isso, é possível concluir que militares da reserva das Forças Armadas podem executar essas atividades no INSS? A princípio não. Por que não? Porque militares não são servidores públicos civis. Aliás, por disposição constitucional, art. 42, e art. 142, ambos com redação da EC nº 18/98, os militares não estão incluídos na categoria geral de servidores públicos. São classificados apenas como Militares integrantes de instituições permanentes e regulares e, no caso das Forças Armadas, segundo a lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), art. 3º, esses agentes públicos “(...) formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares”.

Destaca-se que no texto do art. 3º da lei nº 6880 é de 1980 e segundo a redação da EC nº 18/98, a palavra “servidores” ali empregada, não possui o mesmo conteúdo jurídico que a palavra “servidores” prevista no art. 41 da CF/88 e na lei nº 8112. Isso se justifica pela diversidade do regime jurídico aplicado aos militares em relação aquele aplicado aos servidores públicos civis em geral. Militares não são considerados, juridicamente, servidores públicos, assim como agentes políticos não são, tecnicamente, servidores públicos.

Contudo, ainda que esse detalhe técnico normativo reste superado, o que, com o devido respeito aos posicionamentos diversos, seria uma distorção do conteúdo jurídico da palavra servidor, assim como um desvirtuamento dos efeitos jurídicos desse instituto, resta ainda observar o que segue.

Militares da reserva das Forças Armadas podem ser convidados a executar serviços públicos civis?

Os Militares das Forças Armadas dividem-se em duas grandes categorias. Os que estão na ativa e os que estão na inatividade. Essa divisão é feita pelo art. 3º do Estatuto dos Militares da União e, possivelmente, os Estados-membros seguem organização semelhante.

Estão na atividade os militares:

a) os de carreira;
b) os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos;
c) os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados;
d)  os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e
e) em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.

De outro lado, estão na inatividade:

a) os da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização; (grifou-se)
b) os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União e
c) os da reserva remunerada e, excepcionalmente, os reformados, que estejam executando tarefa por tempo certo, segundo regulamentação para cada Força Armada. (Essa redação foi inserida em 2019 pela lei 13.954/19) (grifou-se)

Posto isso surge mais um questionamento. Quem são as reservas das Forças Armadas e o que é “executando tarefa por tempo certo”?

Novamente a lei nº 6880/80, art. 4º esclarece objetivamente o primeiro questionamento, são as reservas das Forças Armadas:

Art. 4º São considerados reserva das Forças Armadas:
I - individualmente:
a) os militares da reserva remunerada; e
b) os demais cidadãos em condições de convocação ou de mobilização para a ativa.
II - no seu conjunto:
a) as Polícias Militares; e
b) os Corpos de Bombeiros Militares.

Sendo assim os militares da reserva remunerada das Forças Armadas são, por excelência e disposição legal expressa, parte integrante da reserva das Forças Armadas e o uso dessa mão-de-obra pode ocorrer para prestar serviço na ativa ou para executar tarefa por tempo certo. Serviço na ativa é, de acordo com o art. 6º do Estatuto dos Militares da União, qualquer atividade para desempenho de:
“cargo, comissão, encargo, incumbência ou missão, serviço ou atividade militar ou considerada de natureza militar nas organizações militares das Forças Armadas, bem como na Presidência da República, na Vice-Presidência da República, no Ministério da Defesa e nos demais órgãos quando previsto em lei, ou quando incorporados às Forças Armadas”.

Verifica-se com clareza que o serviço no INSS não se enquadra nessas circunstâncias de serviço na ativa. Portanto, os militares da reserva remunerada, que percebem remuneração da União não estão sujeitos e nem podem ser convidados para prestar de serviços públicos previdenciários, civis e primários. Tal assertiva repousa no fato de que esses militares só podem ser convocados ou mobilizados para execução de serviços militares. Essa força de trabalho não pode ser empregada para atividade civil previdenciária no INSS, que por disposição constitucional e legal é destinada àquelas categorias de trabalhadores já indicadas anteriormente neste texto.

Ocorre que a lei nº 13.954/19 introduziu no Estatuto dos Militares a hipótese de que, excepcionalmente, os reformados podem executar tarefa por tempo certo.

Vale destacar que os militares da reserva remunerada e na inatividade são um grupo à disposição das Forças Armadas que podem ser mobilizados e convocados para atividades de natureza militar. Já os reformados estão dispensados, definitivamente, de qualquer atividade militar, embora continuem a receber remuneração da União.

Apesar do que foi exposto no parágrafo anterior, a lei nº 13.954/19 admite, excepcionalmente, que militares reformados possam executar tarefas por tempo certo, desde que exista regulamentação em cada segmento das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica).

Assim, pode-se, com certa dificuldade, vislumbrar que militares reformados poderiam, ao menos em tese, ser “convidados” para executar tarefa por tempo certo. Mas dessa assertiva surgem novos questionamentos: a) o que é tarefa por tempo certo? b) onde militares reformados podem executar tarefa por tempo certo na Administração Pública? c) tarefa por tempo certo é serviço civil ou militar?
Enfim, não há resposta para tais questionamentos, pois a execução de tarefa por tempo certo exige regulamentação no âmbito de cada segmento das Forças Armadas. Isso implica em dizer que tais atividades poderão ser regulamentadas administrativamente, poder regulamentar. Salienta-se que a incidência de um ato administrativo normativo dessa natureza estaria restrita, nesse caso, ao segmento militar em que foi produzido, não podem atingir esferas administrativas civis, por exemplo o INSS.

Ainda que tudo isso fosse ignorado e superado e as diferenças técnico jurídicas apontadas fossem insignificantes em seu aspecto jurídico, há outro ponto merecedor de atenção. O Presidente da República pretende resolver o emprego da mão-de-obra de militares da reserva remunerada da União e não dos reformados, por intermédio de um decreto presidencial.

Contudo, essa não seria a norma mais indicada pois o decreto presidencial pode ser utilizado para organizar a Administração Pública Federal desde que não crie novas despesas, art. 84, VI, “a” da CF/88. No caso em mesa pretende-se criar uma nova despesa que diz respeito ao pagamento de um acréscimo pecuniário aos militares da reserva remunerada que executem atividades civis no INSS.

Isso não pode ser feio por decreto, essa despesa exige lei. Outro detalhe, além de exigir lei, é imprescindível a elaboração estudo de impacto financeiro no orçamento da União para garantir o equilíbrio fiscal das contas públicas. Caso isso não seja feito, segundo disposições constitucionais e infraconstitucionais pertinentes e vigentes, tais como Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, o presidente da República poderia praticar crime de responsabilidade administrativa, o que, em tese, lhe renderia um impeachment.

Mas ainda assim, caso tudo o que foi exposto não mereça sua atenção pelo simples fato de que o emprego dessa mão-de-obra seria voluntário. Vale ainda atentar para o seguinte.

O serviço voluntário é destinado a qualquer cidadão e não apenas aos militares da reserva da União que, via de regra, possuem atividades prestadas com exclusividade para as Forças Armadas. Além disso, o serviço voluntário no INSS exige lei, tendo em vista a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício com a autarquia federal.

Sem norma (lei) excepcionando a possibilidade de emprego de mão-de-obra no INSS, estranha ao seu quadro de pessoal, os militares não podem prestar esse serviço voluntário.

Essa análise, como prometido, fixou-se em questões de direito público e também em assuntos pertinentes à gestão pública de pessoal. Via de regra a ideia de empregar mão-de-obra de militares da reserva da União para execução de serviços públicos civis primários não é juridicamente possível. Insistir nessa solução poderá causar mais dificuldades do que facilidades para o INSS, para o filiado ao INSS e, de forma geral, para o contribuinte.

Forte abraço, bons estudos e até no próximo estudo.

Rodrigo Belmonte é servidor do Ministério Público Federal, professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo, palestrante e autor de artigos jurídicos.

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