O que a morte de Soleimani revela sobre o Direito (Penal) Internacional

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bit.ly/2NsProM | Após conflitos oriundos de movimentos iranianos no Iraque, a morte de Qasem Soleimani – comandante da Força Quds e reconhecido como herói nacional no Irã – instigou o governo persa a se posicionar com maior rigor contra os Estados Unidos da América (EUA), atingindo duas bases estadunidenses e, consequentemente, trazendo maior instabilidade política à região e a Donald Trump, o mandante confesso do ataque.

Submetido a um processo de impeachment aprovado na Câmara e com votações aguardadas no Senado, Trump, diante do crescimento da influência do Irã no Oriente Médio, sobretudo no Iraque (país cujo governo foi desestabilizado após ser invadido pelos EUA em 2003), também tendia a agravar o discurso para agradar eleitores, optando também por sanções econômicas.

Nesse estágio, o Presidente americano se vê inclinado a aparentar controle sob o Oriente Médio e ao menos relatar sua superioridade bélica. Contudo, dada a importância de Soleimani no Irã, os iranianos consideram-se com legitimidade para eleger quais seriam as respostas proporcionais ao atentado (quaisquer retaliações militares, o enriquecimento ilimitado de urânio, empecilhos no estreito de Ormuz, atos com efeitos econômicos etc.).

Desprovida do aval do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (arts. 25 e 27, da Carta das Nações Unidas) e de declarações ou autorizações do Congresso Estadunidense (“Authorization for Use of Military Force”), a medida de Trump recorda o tema da culpa e periculosidade dos atos de chefes de estado e de governo nas relações entre nações e, portanto, produz o debate a respeito das funções e abrangência (e até a existência) do Direito Internacional, sobretudo do Direito Penal Internacional.

Inicialmente, é necessário lembrar que os Estados Unidos (país do autor) e o Iraque (território onde ocorreu o ataque) não aderiram ao Estatuto de Roma, o qual submeteria Trump à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI). O Brasil, por exemplo, é um dos estados signatários (com ratificação), do mesmo modo que quase todos os países das três Américas e da Europa, todos da Oceania e grande parte daqueles da África.

Representado ao TPI (como foi Bolsonaro), Trump poderia ser denunciado e julgado pelo ataque ao líder iraniano, tendo sua conduta tipificada em um dos crimes previstos no art. 5º do Estatuto de Roma. Caso reconhecidos como crimes de guerra, o homicídio doloso ou mesmo o ato de “matar ou ferir à traição pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigo” (art. 8º, 1, 2, a, I e XI), seriam tipificações prováveis.

Sobre o assunto, o processo de julgamento de militares britânicos por fatos relacionados àquela mesma invasão americana do Iraque em 2003 encontra-se na fase de exames preliminares de admissibilidade no TPI. Os militares do Reino Unido (que ratificou o Estatuto) são acusados de “assassinato, tortura e outras formas de maus-tratos” contra cidadãos iraquianos.

Porém, a não permanência da assinatura dos EUA no Estatuto (o que é comum a muitos países em conflito armado) impede o julgamento do Presidente sem avaliações dos seus compatriotas. O ordenamento estadunidense, por sua vez, submetido ao “common law”, possui uma jurisprudência relevante ao cenário.

O caso Nixon v. Fitzgerald, julgado na Suprema Corte (equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal), avaliou a responsabilidade civil de Presidente pelos efeitos da demissão de um funcionário público, supostamente por retaliação. A decisão do Tribunal sustentou a punição do Presidente apenas por meio de impeachment, por danos causados por atos oficiais, mas aduziu que a existência desta medida de impedimento não obstaculiza processos criminais (POWELL; BURGER; WHITE; BLACKMUN, 1982).

Portanto, a soberania das nações e a autodeterminação dos povos, legitimamente, oferece aos Estados a autonomia para decidir pela assinatura de tratativas internacionais de acordo com seus interesses. Contudo, é necessário notar no mundo dos fatos que, mesmo quando assinados e ratificados, os acordos podem não ser obedecidos quando algum país possuir atributos imperialistas (supremacia militar e/ou econômica, movimento expansionista e intervencionista, v.g.).

Dessa forma, por exemplo, mesmo quando assinada e ratificada a Convenção das Nações Unidas, o Estado-parte, possuindo poder suficiente para se sobrepor aos interesses dos demais membros da ONU (ou mesmo daqueles com poder de veto no Conselho de Segurança), pode agir individualmente e sem responsabilização internacional efetiva, já que inexistem meios satisfatórios de supressão da sua vontade.

Mireille Delmas-Marty chama de “imensas zonas de resistência” o fenômeno daquelas nações que colocam sua hegemonia em detrimento da internacionalização das fontes do direito, porém assevera que existem vários exemplos contrários à resistência desses países, como a Convenção Americana dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos do Homem e vários avançados dispositivos europeus (DELMAS-MARTY, 2004, pp. 47-48).

Apesar a ideia das exceções, a forte independência, dada por algumas caraterísticas – sobretudo centros avançados de tecnologia, forte mercado consumidor interno ou a propriedade de bombas nucleares – que favorecem países em negociações, está presente nos EUA, Rússia e China (que não ratificaram o Estatuto de Roma), ou de forma mais branda em blocos como a União Europeia (EU).

A União Europeia, inclusive, pode revelar sinais necessários à viabilidade de instrumentos internacionais. Os membros não possuem disparidade econômica tão acentuada, ressalvada a comparação entre a socialdemocracia escandinava e o recente desenvolvimento do leste europeu ou recuperação das nações de línguas românicas (menos França). Outrossim, os números de habitantes e dimensões territoriais, em sua maioria, não são tão desiguais.

Além disso, os países europeus necessitam de unidade para competir com as grandes populações do mundo, sobretudo aquelas do BRICS, NAFTA e UNASUL. A ausência da livre circulação na Europa e das diretrizes comerciais do continente incapacitaria os europeus em seu próprio território com recursos naturais comparativamente reduzidos, em um contexto de acelerado desenvolvimento tecnológico de potências consolidadas e emergentes.

A cultura imperial, contudo, já impedia a integralização do Reino Unido na UE. Mesmo sendo um dos principais países do continente, aderiu à União Europeia apenas em 1973 (o protótipo da União surgiu em 1950) e sempre manteve sua moeda (libra esterlina) em face do euro. Ainda com diversos territórios no planeta e, em vários países (incluindo Canadá, Austrália e o demais do “Commonwealth”), mantendo sua Chefe de Estado – a Rainha -, os britânicos votaram pela saída do bloco europeu em 2019.

Assim, o Direito Internacional depende não só do sinal da concordância em instrumento de acordo, mas da sobrevivência do acordo, ligada intrinsecamente ao mundo dos fatos norteado pelos interesses políticos nacionais e/ou individuais. No contexto, o cenário sociopolítico planetário revela-se como a fonte das fontes desse ramo do Direito, o elemento mais importante, a propósito.

Nesse árduo contexto, a confecção das normas internacionais é ainda mais difícil no ramo criminal. Dada à gravidade das consequências do Direito Penal, é comum aos ordenamentos a avaliação da extrema importância do bem tutelado, a grande gravidade da conduta a ser considerada criminosa e a proporcionalidade entre a ação do autor do fato e seu resultado danoso (princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social).

Obviamente, esses valores são discordantes entre as nações e, como empecilho também relevante, as penas permitidas também são diferentes em vários países, inclusive entre aqueles que ratificaram o Estatuto de Roma. O Brasil, como exemplo de renúncia em nome do sucesso das negociações, não permite a prisão perpétua (art. 5º, XLVII, b, da CF), à qual deverá submeter seus cidadãos caso condenados pelo TPI (art. 77, 1, b, Estatuto de Roma).

O equilíbrio dos poderes (internos) já era reconhecido por Montesquieu como elemento basilar da efetivação do direito nacional positivo em estados democráticos e, com relação ao tema em questão, o pensador afirmou que “nada foi mais difícil de suportar, aos germanos, do que o Tribunal de Varus”, um julgamento adequado aos valores romanos, mas, àquele povo, uma “coisa horrível e bárbara” (MONTESQUIEU, 2012, p. 349).

Diante dessa realidade, a descentralização do poder e a inexistência de potências hegemônica (e da cultura da hegemonia) assumem grande importância na resolução de conflitos, na ratificação e observância dos acordos firmados, além de viabilizar um custoso Direito Penal Internacional. No caso da morte de Soleimani, v.g., não existem apenas duas teses nacionais discordantes, há dois ordenamentos jurídicos e culturais, os quais apenas se assemelham no forte nacionalismo e belicosidade (oriundos de um presente ou um passado imperialista).
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REFERÊNCIAS

DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

JUSTIA. Nixon v. Fitzgerald, 457 U.S. 731 (1982). U.S. SUPREME COURT. Disponível aqui. Acesso em: 10 de janeiro de 2020.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, barão de. Do espírito das leis: volume1. Tradução Gabriela de Andrada Dias Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Iraq/UK: Alleged war crimes committed by United Kingdom nationals in the context of the Iraq conflict and occupation from 2003 to 2008. Preliminary examination. Disponível aqui. Acesso em: 11 de janeiro de 2020.
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Lucas Maia Carvalho Muniz
Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito. Bacharel em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Advogado.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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