Se um policial afirmar que pratiquei um crime, mas eu negar, serei condenado?

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bit.ly/2SChoMF | De acordo com uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública Fluminense (RJ), em conjunto com Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça, no ano de 2018 cerca de 53,74% de condenações por tráfico de drogas foram publicadas tendo como prova apenas a palavra de policiais militares. É importante ressaltar que tal percentual diz respeito apenas ao estado do Rio de Janeiro.

De acordo com a doutrina e a jurisprudência, a palavra dos policiais não deve ser analisada de forma isolada; a condenação deve ocorrer somente quando existem outras provas que corroborem tais testemunhos:

EMENTA: TRÁFICO DE DROGAS – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA – NECESSIDADE – PALAVRA ISOLADA DOS POLICIAIS. A versão policial isolada sobre a prática do crime não forma conjunto probatório suficiente para sustentar a convicção sobre a destinação da droga apreendida e, portanto, não autoriza a condenação pelo crime de tráfico de drogas.  (TJ – MG – APR: 10699160103817001 MG, Relator: Alexandre Victor de Carvalho, Data de Julgamento: 27/11/2018, Data de Publicação: 03/12/2018)

Conforme sentença proferida pela juíza da 4ª Vara Criminal da Comarca de Vitória (ES):

[…] é bem verdade que os depoimentos de policiais nos processos criminais são prestigiados pela doutrina e jurisprudência. No entanto, tal prova deve ser analisada à luz das demais produzidas nos autos, uma vez que a simples condição de policial não traz garantia se ser o mesmo considerado infalível em suas ações, especialmente naquelas decorrentes da sua função, exercida, quase sempre, em situação de intenso estresse.

Na grande maioria dos casos, tais depoimentos são fracos e incapazes de detalhar de forma pormenorizada os acontecimentos no momento da apreensão. Não raras vezes existem no processo testemunhas que narram os fatos de forma totalmente oposta. Isso sem falar nos casos em que o réu nega a prática do crime, mas nada disso importa: as condenações se baseiam tão somente na fé pública dos policiais.

Conforme o Código de Processo Penal:

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.

Ainda conforme o Código de Processo Penal, cabe ao juiz formar sua convicção para eventual condenação com base nas provas colhidas no contraditório judicial. A simples repetição por policiais de seu depoimento na fase de inquérito não corrobora tal condenação.

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. 

Portanto, quando um juiz condena uma pessoa usando como fundamentação a mera palavra dos policiais, sem qualquer outro argumento, sua decisão contraria a Constituição, que preza pelo princípio do contraditório e da dignidade da pessoa humana, além do Código de Processo Penal e os princípios fundamentais do Direito Processual Penal, como o princípio do in dubio pro reo.

Constantemente podemos acompanhar em jornais que policiais militares forjaram provas buscando a condenação do réu. Conforme matéria disponibilizada no G1, policiais foram flagrados forjando a cena de um assassinato em 2015 no Rio de Janeiro.

Em São Paulo, de acordo com o R7, um homem passou 105 dias preso acusado de transportar um tablete de 720 gramas de maconha. Um vídeo feito por um cinegrafista amador que presenciou a abordagem mostra que tal droga fora plantada pelos policiais que realizaram a prisão. Fazendo uma breve pesquisa iremos encontrar não só esses, mas inúmeros casos de policiais que cometem tais atos, por sentirem que sua palavra está acima do bem e do mal.

Diante da realidade, podemos constatar que, enquanto perdurar esta fé pública, tida por policias que põem sua palavra acima de tudo, todos estaremos diante de inúmeros casos de injustiça. A palavra de uma pessoa nunca pode ser superior às provas ou à falta delas, pelo menos não em um Estado que traz em sua Constituição o princípio do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência.

Para concluir, você deve estar se perguntando:

Então se um policial disser que pratiquei um crime, e outra testemunha disser que não pratiquei serei condenado? Provavelmente sim!

Se um policial disser que pratiquei um crime, e eu negar, serei condenado? Provavelmente sim!

E se eu for primário e possuir bons antecedentes? Não importa, ainda sim provavelmente você será condenado.

Um policial pode prender você sem provas e, mesmo assim, há uma enorme probabilidade de o Poder Judiciário acreditar unicamente na palavra dele, mesmo que você negue tal crime, pois a palavra dele tem fé pública, e a sua não.

Parece uma narrativa de séculos passados, mas não: estamos falando do nosso obscuro presente e duvidoso futuro.
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Letícia Meireles Almeida
Advogada criminalista. Especialista em Direito Penal, Processo Penal e Execução Penal.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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