Aplicativos de Transporte e Demandas Judiciais: qual o foco?

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bit.ly/2XezW9r | É importante destacar que a repercussão das análises sobre qual é a natureza jurídica dos contratos entre motoristas de aplicativos e respectivas plataformas tem sido por vezes interpretada com ruídos, principalmente quanto ao foco da proteção legal pretendida. O caso da Califórnia, em que se noticia processo contra Uber e Lyft, por exemplo, não aborda a existência de análise contratual necessariamente para fins de reconhecimento de “vínculo empregatício” – sequer existente nesse exato formato por lá –, mas sim sobre como o sistema incluirá motoristas para fins de necessidades assistenciais e previdenciárias, por exemplo.

No Brasil, diversas foram as ações envolvendo não apenas a Uber. Organizações como IFood e Loggi também foram acionadas (em ações promovidas pelo Ministério Público do Trabalho inclusive) em demandas que pretendem o reconhecimento de um efetivo vínculo empregatício pela lei nacional. É importante também deixar claro que a Califórnia, dentre os 50 estados americanos, é considerada a mais protetiva quanto às relações de trabalho. Há previsão de intervalos para alimentação, carga horária diária de 8 horas e semanal de 40 horas e recolhimento de seguro para afastamentos temporários e assistência de saúde.

Posicionamentos à parte, o que parece ser consenso entre os estudiosos, doutrina e até jurisprudência é a necessidade de que se prevejam situações normalmente existentes no mercado de trabalho e sobre as quais a legislação do trabalho se desenvolve em escala global. São situações como seguro-desemprego, benefícios previdenciários e o respectivo custeio disso tudo o que mais preocupa. Se o jargão popular consagra que não existe “meio grávida”, a lei trabalhista da mesma forma não admite o “meio emprego”. Reside nesse ponto, assim, o que parece mais importar: quais as proteções ao trabalhador e como se custearão tais medidas?

A linha mais liberal pode defender a plena, geral e irrestrita não regulação desse mercado. O outro extremo, acredita-se, defende que efetivamente há – pelo menos em nível nacional – relação empregatícia nesses casos. Os extremos geralmente desequilibram as relações. As jurídicas também. As plataformas de economia colaborativa surgiram como uma alternativa tanto a consumidores quanto a fornecedores. Muitos motoristas de aplicativos – sem julgamentos de valor aqui – conseguiram manter suas famílias dignamente em períodos de crise. Quando pessoas se desfizeram de um segundo veículo na família (por opção ou necessidade), tiveram um serviço à disposição enquanto o prestador monetizava sua oferta, em contrapartida.

Voltando à análises mais jurídica, não se podem comparar os sistemas legais de modo aleatório. Se somos mesmo jabuticabas, não há como compararmos o nosso ordenamento jurídico nesse aspecto. Seria equivocado tanto se seguirmos o sentido de direito estrangeiro para direito nacional quanto o oposto. O que se tem tentado por aqui é trazer aos sistemas de aplicativos a aplicação de leis trabalhistas de um sistema criado específica e propriamente para tais fins, com princípios fortes e uma prática jurídica consolidada sob tais aspectos. Deve-se ressaltar que o nosso caso reflete pagamento de verbas não previstas em outros ordenamentos, ou seja, não é mera previsão para assistência em casos de desemprego ou impossibilidade de exercício da profissão por questões médicas, por exemplo. Em território norte-americano, salvo melhor juízo, trata-se de discussão contratual e seus reflexos justamente para tais casos, não havendo que se falar – por lá – em pagamento de algumas verbas acessórias previstas na lei brasileira (FGTS, décimos terceiros salários, adicional noturno, etc.)

A tendência jurisprudencial em território brasileiro, com julgados já pautados pelo Tribunal Superior do Trabalho, é de inexistência de vínculo empregatício entre Uber e motoristas – ainda que haja algumas decisões divergentes em instâncias inferiores.

Mais recentemente, o Tribunal Regional da 2a Região acolheu as alegações do Ministério Público do Trabalho e reconheceu haver relação empregatícia entre prestadores de serviço e a empresa Loggi, a qual realiza – segundo a organização – intermediação entre entregadores e usuários que necessitam contratar serviços de entrega. Em caso envolvendo o IFood, envolvendo-se – a priori – serviços de mesma natureza a resposta jurisdicional foi diversa. Nessa ação, também proposta pelo MPT, o julgador de origem entendeu pela inexistência de relações empregatícias.

Enquanto a raiz cultural norteamericana se embasa em premissas de liberdade econômica, sobretudo direcionando ao próprio cidadão a obrigação de custear uma previdência particular, com sistemáticas securitários muito desenvolvidas, o cenário brasileiro não segue uma mesma linha. Culturalmente, possuímos educação financeira com menos foco nesse tipo de previsão. A discussão sobre o ser humano como centro da temática é conduzida sob premissas diversas, desse modo, sendo necessária atenção para o que e como se pretende avançar no tema.

Primeiramente, o ponto de vista do cidadão perante garantias de livre iniciativa e de proteção do trabalhador perante o mercado enfrenta divergências complexas. De modo mais geral, a base principiológica que funda o sistema trabalhista brasileiro parte da premissa de hipossuficiência ou vulnerabilidade, do que decorre a insegurança jurídica quanto à natureza jurídica da relação. O cenário legal norteamericano, por sua vez, deixa de observar – salvo melhor juízo – as mesmas premissas. Por lá, discutem-se os limites de uma relação contratual que envolve não a forma em si, mas o modo de operação e eventuais abusos das plataformas, inclusive sobre o direcionamento dos algoritmos que compõem o sistema.

As ações aqui propostas, tanto de forma individual quanto pelo Ministério Público do Trabalho, pretendem conferir natureza jurídica de relação empregatícia que – até o momento – não têm tido pleno êxito, havendo algumas procedências reformadas em Tribunais Regionais e posição desfavorável aos trabalhadores também perante o Tribunal Superior do Trabalho. Em síntese, o objeto das ações é inserir “a fórceps” no sistema celetista uma nova espécie de relação de trabalho.

No intuito de contribuir com a solução e não necessariamente com a discussão jurídico-trabalhista, parece-me equivocado fazer comparações simples entre o que ocorre na Califórnia com o que se observa no Brasil. A luta pela inserção dos trabalhadores em um sistema legislado sob a ótica da Revolução Industrial e ainda por meio de ações judiciais reitera a omissão de garantias aos mesmos trabalhadores. A CLT se mostra inepta para a resolução de tais conflitos e, salvo melhor juízo, não está adequada ao novo contexto e perspectivas que unem liberdade econômica – tanto das plataformas quanto de motoristas – com indispensáveis mínimos de garantia sob aspectos trabalhistas e, a meu ver o mais importante, previdenciários.

O caminho clássico de legislação pura e simples para relações complexas e mutáveis não tem se mostrado adequado, respeitosamente falando, com a necessidade do caso. Já é difundido perante a sistemática legal o que se chama de sandboxes regulatórios, os quais partem de regulamentos mutáveis e flexíveis a partir de dados e mediante representações tanto de contratantes quanto de contratados, quem sabe com intermediação de representação de classes (sindicatos). Tal prática ainda é tímida em questões direcionadas à regulação de trabalho, mas não tanto em outras áreas, como por exemplo mercados financeiros e inovação.

O fato é que a tecnologia avança mais rápido que a lei e até que a resposta jurisdicional aos casos. Enquanto isso, aqueles a quem a lei, em tese, deve conferir proteções – seja de ordem trabalhista, seja de ordem previdenciária – resta sem aplicação prática e clara. É o resultado de um sistema em que todos perdem. O Direito, como um subsistema nesse contexto geral e complexo, deve ser instrumento capaz de regular as relações, trazendo equilíbrio.

Por Rafael Pereira

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