Demissão em massa e “envio da conta” para o governo durante a pandemia: uma análise de caso

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bit.ly/3daC8nT | Na última semana, a mídia noticiou o caso da churrascaria “Fogo de Chão” que realizou demissão em massa de cerca de 690 funcionários.

De acordo com as publicações, a churrascaria teria justificado as demissões por meio de “Comunicação de Rescisão do Contrato de Trabalho por Ato de Autoridade” afirmando que ante o prejuízo causado pela pandemia do COVID-19 e o ato do Governo que determinou o fechamento dos estabelecimentos, o trabalhador deveria buscar o recebimento de suas verbas junto ao  Governo do Estado do Rio de Janeiro, conforme art. 486 da CLT.

Pois bem.

Nas demissões realizadas pela Churrascaria foi considerada a ocorrência do “factum principis” que pode ser conceituado como ato de autoridade pública que determina a suspensão ou paralisação definitiva ou temporária de estabelecimento.

O factum principis é considerado uma das espécies de força maior (art. 501 da CLT) mas possui regulamento próprio, registrado no art. 486 da CLT, vejamos:

Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.    

Conforme se observa, o texto da Lei de fato, garante ao empregador a possibilidade de rescindir o contrato de trabalho “mandando a conta” para o governo responsável pelo fechamento/paralisação do estabelecimento.

Ocorre que, da leitura do referido dispositivo, é possível, de pronto, observar que a Churrascaria não se enquadra nos requisitos para “utilização” do mesmo, haja vista que o estabelecimento não paralisou por completo suas atividades, vez que, basta simples busca na internet, para constatar que o delivery da Churrascaria permanece ativo.

Algumas empresas alegam que governo é responsável pelas indenizações aos empregados dispensados em virtude do isolamento social

Nesse sentido, vejamos julgado oriundo do TRT da 2ª Região, que assentou o fato de que a interrupção da atividade deve ser total, in verbis:

FATO DO PRÍNCIPE. CONFIGURAÇÃO. A caracterização do factum principis exige um ato administrativo de autoridade competente ou lei que implique total interrupção das atividades da empresa, bem como a comprovação de que o empregador não concorreu culposa ou dolosamente para a causa desencadeadora do ato de autoridade. A falta de qualquer um destes elementos torna inócua a invocação. Não cuida a hipótese dos autos de ato que teria acarretado a total interrupção das atividades da recorrente de forma a impedir a continuidade do cumprimento das suas obrigações, notadamente em decorrência de ato administrativo ou lei. Nesse trilhar, não pode a parte apoiar-se no instituto, para o fim de ver sua responsabilidade pela condenação rechaçada. Recurso da 1ª reclamada ao qual se nega provimento, no aspecto. (TRT-2 10010416120165020254 SP, Relator: SIDNEI ALVES TEIXEIRA, 17ª Turma – Cadeira 1, Data de Publicação: 12/09/2019)

Outrossim, da interpretação do art. 486 da CLT em conformidade com os princípios constitucionais e do trabalho, chega-se à conclusão de que, se o ato da autoridade pública que determina a paralisação da atividade empresarial se mostrar justificável, não há que se falar na aplicação do referido artigo.

Isto é, tendo o Governo do Rio de Janeiro determinado a paralisação das atividades (aqui vale frisar que a paralisação é apenas para atendimento presencial), em razão da Pandemia do COVID-19 que só no Estado do Rio já levou a óbito cerca de 2.614[1] brasileiros, se mostra razoável e prudente a conduta da autoridade pública, de tal sorte que, inaplicável os termos do art. 486 da CLT.

Outrossim não se pode olvidar de um dos mais importantes princípios do Direito do Trabalho, qual seja, o princípio da alteridade, disposto no art. 2º da CLT, que dispõe que os riscos do empreendimento serão sempre do empregador e intransferíveis ao empregado.

Ainda no que tange aos princípios, vale citar a função social da empresa cujo conceito “engloba a ideia de que esta não deve visar somente o lucro, mas também preocupar-se com os reflexos que suas decisões têm perante a sociedade, seja de forma geral, incorporando ao bem privado uma utilização voltada para a coletividade; ou de forma específica, trazendo realização social ao empresário e para todos aqueles que colaboraram para alcançar tal fim.”[2] 

No caso em análise (churrascaria fogo de chão) observa-se nítida insensibilidade e irresponsabilidade social, além do descaso com seus empregados ao exigir que estes busquem o recebimento de suas verbas rescisórias junto ao Governo do Rio de Janeiro. Dito isso, impraticável que em plena Pandemia, jamais vista no Brasil, que já soma mais de 20 mil mortos, o empregador utilize de forma equivocada e distorcida dispositivo legal com a finalidade de transferir a terceiro os encargos decorrentes do seu empreendimento, sendo que, ao final é o trabalho, parte hipossuficiente na relação que sofre as consequências de tamanha irresponsabilidade.
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[1] Dados retirados do site < https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR%3Apt-419&mid=%2Fm%2F015fr> na data de 17 de maio de 2020.

[2] Disponível em < https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-92/funcao-social-da-empresa/> Acessado em 17/05/2020.
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Sthefania Machado
Advogada trabalhista. Especialista em Processo Civil pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e Pós-graduanda em Direito Previdenciário. Siga no Instagram: @adv.sthefania
Fonte: www.direitodoempregado.com

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