Existe causa criminal indigna de defesa?

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bit.ly/3dly9UN | Até o patrocínio de uma causa má é legítimo e obrigatório, porque a humanidade o ordena, a piedade o exige, o costume o admite e a lei o impõe (Giuseppe Zanardelli)

Em 1911, Evaristo de Moraes teve de lidar com um fato de considerável controvérsia ética e profissional. O médico José Mendes Tavares foi acusado de ser o “mandante” do assassinato do capitão-de-fragata Luís Lopes da Cruz, por supostos motivos passionais. O imputado, no entanto, havia apoiado a campanha do Marechal Hermes da Fonseca à presidência da república, no ano anterior, contra a qual Evaristo se opôs. Como agravante, a opinião pública militou fortemente em favor da acusação, culminando na construção de uma estigma social feroz em detrimento de Mendes Tavares.

Conhecendo o excepcional talento do rábula, o médico logo clamou pelos seus serviços advocatícios. No entanto, Evaristo se viu preso em um conflito de consciência. A priori, os noticiários exclamavam, categoricamente, que o acusado não era suscetível de defesa, haja vista o caráter repulsivo do crime de que era suspeito. O profissional que ousasse patrocinar a sua causa enfrentaria, inexoravelmente, a impopularidade na vida pública. Ademais, o cliente era seu contraditor político, o que levou o defensor a indagar se esse ajuste configuraria eventual incorreção partidária. Desconfortável diante da problemática, Evaristo dirigiu-se ao seu eminente mestre, Ruy Barbosa, para realizar a célebre consulta: devo, por ser o acusado nosso adversário, desistir da defesa iniciada?

Vê-se que a situação narrada encontra afinidade com os questionamentos cotidianos a respeito da atividade do advogado criminalista, com os quais todo bacharel e estudante de Direito se depara no decorrer da vida.

Existe situação tal que, por sua acentuada repugnância moral, possa tornar uma causa criminal indigna de defesa? Existe réu indefensável? Essas perguntas conduzem a uma importante reflexão a respeito dos direitos fundamentais de defesa e presunção de inocência, consagrados na nossa Carta Magna de 1988.

Da defesa e da presunção de inocência no processo penal

O processo é, fundamentalmente, um instrumento epistemológico. Isto é, através dele é que se busca atingir o conhecimento a respeito de um fato histórico, com as suas nuances mais importantes, nos limites que o ordenamento jurídico permite. Assim, o órgão de acusação (via de regra, o Ministério Público) exercerá o seu jus ut procedatur, imputando a determinado indivíduo a prática de uma conduta incriminada. Essa alegação carrega carga probatória, incumbindo ao parquet demonstrar, pelos métodos válidos, a veracidade de tudo que opõe ao réu. Em contraposição, o réu tem o direito de responder o inteiro teor do libelo e a faculdade de produzir provas que demonstrem o seu estado de inocência ou a improcedência de pontos específicos da acusação. O magistrado, alheio às partes, haverá de decidir motivadamente a respeito do seu convencimento, “sentenciando o veredicto” sobre o ocorrido.

Reconhecido o direito de autodefesa do réu, aduz-se que a legitimidade da defesa técnica criminal é um corolário necessário. Não é concebível que o réu, na possibilidade de realizar a própria defesa, se veja impedido de delegar esse ofício a um profissional do direito, que, por sua própria expertise jurídica, pode assegurar a paridade de armas em uma relação processual cuja parte ex adversus é o próprio Estado, na figura de um artífice conceituado como é o Promotor de Justiça. Portanto, ao direito de resistir e contrapor uma persecução criminal, se segue a correspondência lógica de poder (e dever) estar acompanhado por um advogado.

As conclusões dessa breve síntese a respeito da relação processual penal aparentam ser tautológicas e indiscutíveis. No entanto, quando ocorrem lamentáveis episódios delituosos, em especial aqueles que atingem mais fortemente o sentimento social, é comum emergir a censura da advocacia criminal. “Como pode alguém defender uma pessoa tão sórdida?”. E é diante desses casos detestáveis que a proteção do direito de defesa e, especialmente, da existência da advocacia criminal deve ser realizada com imponência.

Primeiramente, expurgar o direito de defesa técnica corresponderia a uma ode à infalibilidade dos órgãos estatais e, por óbvio, dos homens que os integram. Se, diante de toda acusação, executasse-se a pena sumariamente, sem prévio contraditório judicial, estar-se-ia indicando que a polícia judiciária, bem como o membro do MP, são incapazes de errar e insuscetíveis de agir sob a influência de interesses escusos. Ter-se-ia de supor que os investigadores seriam sempre eficazes na descoberta dos elementos de informação e que os acusadores procederiam apenas quando amparados nesse lastro probatório infalível; ambos ainda deveriam ser incorruptíveis. Não suficiente, se haveria de arquitetar um julgador, enquanto destinatário final das provas, cujas conclusões fossem necessariamente pertinentes e a atuação se mantivesse pautada no mais genuíno interesse de tutelar a verdade. Em suma, se santificaria o equivocado entendimento de que não existem mal entendidos ou fraudes, circunstâncias demasiadamente humanas.

Nesse sentido, Ruy Barbosa sintetizou argumentos sólidos em benefício do patrono de causas criminais, sempre alertando que todo conflito em matéria penal conduz ao dever que o criminalista tem de compor a dialética processual, não havendo, de modo subsequente, alegação acusatória tão evidente que “não precise ser provada” ou causa penal “já resolvida desde a origem”. Qualquer proposta em contrário constituiria a perpetuação de injustiça infindável e a sistematização de condenações irregulares, pois pautadas em acusação desprovida de antítese.

Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente. – p. 39.

Do exposto, é indispensável que o processo tenha assegurada a sua natureza cognitiva/garantidora, para a qual o defensor se faz indeclinável. Não são poucos os casos de Erros Judiciários, como o dos irmãos Sebastião e Joaquim Naves da Rosa, condenados pelo homicídio de uma suposta vítima que, 15 anos depois, reapareceu na cidade (sim, o juiz pronunciou os réus em um homicídio “sem cadáver”). Exemplos como estes fazem lembrar que, em todo processo, o advogado atua de forma decisiva, como garantidor dos direitos do réu e, consequentemente, dos interesses públicos. Na suspeita da prática de homicídio, é indispensável que seja verificada a procedência das provas alegadas, excluídos os juízos prévios (inseguros) e os clamores da imprensa a respeito; mesmo que decisivos os elementos de prova trazidos pela acusação, é ainda necessário que sejam apurados em debates judiciais, aferindo-se desde a tipicidade da conduta, até a licitude das provas com que se pretende imputar; afastado o estado de inocência pela produção de provas robustas, exige-se que o criminoso seja condenado na estrita forma da lei.

Finalizada a breve jornada, pode-se concluir que a pergunta feita por Evaristo de Moraes, ainda que sucinta, deu ensejo a uma das mais memoráveis apologias da advocacia criminal, no que tange à sua legitimidade, realizadas por Ruy Barbosa. Em “O dever do advogado”, Ruy explana por que o patrocínio de causas criminais não carece de retidão e moralidade. O “civilismo”, como denomina o autor, impõe a todo indivíduo a obrigação de reconhecer que, por mais atroz que haja sido o delito, a presença do advogado de defesa é inafastável, a fim de que o processo não se torne um golpe de cena e que o réu, abandonado à própria sorte, não seja condenado sem a observância dos imperativos prescritos em lei. Quando do reconhecimento desses princípios gerais, é possível afirmar, sem dúvidas, que não há causa criminal indigna de defesa.
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Victor Oliveira L. Da Franca
Fonte: Canal Ciências Criminais

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