Os impactos da crise da Covid-19 na prática da advocacia

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bit.ly/3oVMSww | O que este fenômeno da pandemia da Covid-19 impactou no nosso cotidiano profissional e em que medida aponta para o futuro da advocacia? Pela primeira vez na História, a humanidade foi afetada, ao mesmo tempo, por uma experiência radicalmente transformadora. No mundo inteiro, os tribunais, independentemente do sistema de Justiça, estreitaram suas portas, restringindo o seu acesso imediato às questões comprovadamente urgentes. Urgentes — é bom que se esclareça — muitas vezes são questões de vida ou morte, situações de violência, situações extremas, enfim.

As dores agudas, da maioria das pessoas, precisaram ser endereçadas de outra maneira. Advogados que enxergam os conflitos de natureza familiar exclusivamente pelo viés adversarial ficaram sem função por um período, aguardando a retomada da "normalidade" dos andamentos processuais e da rotina das varas de família. Por alguns meses, clientes que estavam se separando ou que não tinham como manter, integralmente, o pagamento da pensão alimentícia ou ainda que não conseguiam estar com seus filhos, por conta de divergências com o ex-cônjuge durante a pandemia, foram orientados a ter "bom senso". Mas o que é "bom senso"?

A grande maioria dos profissionais se viu despreparada para auxiliar, com efetividade, seus clientes a encontrarem o tal "bom senso" com a outra parte. Ficou evidente a necessidade de se incorporar à prática da advocacia ferramentas mais eficazes para a construção de acordos. Afinal, "bom senso" é um conceito vago. E como se chega a esse lugar?

Advogados colaborativos, desde os primeiros dias da quarentena, não ficaram sem trabalhar. Seus clientes não foram orientados a aguardar a reabertura dos tribunais, ou foram incitados a correr para o plantão forense, disputar a atenção de um magistrado que tem também que lidar com as situações graves e urgentes, como única saída para dissolver impasses durante o confinamento.

Os advogados colaborativos seguiram trabalhando normalmente, apenas passando das reuniões presenciais para o formato virtual. No mais, não houve qualquer turbulência: nosso trabalho independe da largura das portas dos tribunais; o trabalho se dá essencialmente, fora dele. O alcance do tal "bom senso" é o nosso dia a dia. Cada família tem o seu próprio ajuste e não há uma fórmula única que atenda a todas as situações. Disso, já tínhamos clareza. Assim seguimos trabalhando, facilitando processos de diálogo, evitando a escalada dos conflitos e, consequentemente, o congestionamento do Poder Judiciário. 

Soluções customizadas e adaptadas a cada situação específica é a nossa especialidade. Não trabalhamos para identificar quem tem razão e dar ganho de causa a uma das partes; trabalhamos para compatibilizar diferenças e viabilizar entendimento.

E no que a pandemia inovou na nossa prática? Passamos a fazer reuniões exclusivamente online. Em alguns aspectos, perdemos muito: em uma reunião de negociação, não é mais possível sentir com tanta propriedade as emoções, a expressão corporal e sensorial de nossos clientes, seus ex-cônjuges e dos outros advogados. Da mesma forma, tornou-se inócuo o nosso investimento em ambientes acolhedores, com chá, café, biscoitos, luz natural e plantas para promover um ambiente agradável e propiciar relaxamento e distensão.

Passamos a lidar com quadradinhos na tela de nossos computadores, onde apenas visualizamos o dorso superior e a expressão facial dos nossos clientes. Como Nancy Cameron, advogada e mediadora em Vancouver, ressaltou em uma conversa comigo, não conseguimos observar o balançar de pernas, o sentar em cima das mãos, alguns sinais mais sutis de que algo não está bem.

Por outro lado, para alguns clientes, o ambiente virtual significou um ambiente mais seguro. Para alguns, é realmente muito difícil estar no mesmo espaço físico junto com o outro. Paradoxalmente, o canal virtual possibilitou algumas aproximações. Estar em reunião com seu ex-cônjuge e advogados e, ao mesmo tempo, estar em sua própria casa, poder pausar e se recompor de uma emoção em seu próprio ambiente e com total privacidade, significou, para muitos, um grande alívio.

E mesmo em relação a menor capacidade de observar as expressões não verbais de todos os envolvidos em uma negociação com a mesma qualidade dos encontros presenciais, ainda assim vejo vantagem: todos os participantes de uma negociação, profissionais e clientes, estão sendo convocados a se comunicar com mais clareza e a expressar seus sentimentos e necessidades com autenticidade. O que antes poderia ser comunicado com um balançar de pernas, dedos nervosos batendo sobre a mesa ou uma bufada, agora pode passar despercebido, e, se o incômodo for realmente importante, será necessário encontrar a melhor forma de expressá-lo por meio de palavras.

Não é fácil fazer isso, especialmente quando estamos envolvidos em uma situação de estresse e pelo fato de não sermos tão bem acostumados a nos expressarmos com objetividade, verdade e a escutar ativamente. Mas justamente por isso, vejo um benefício: porque hoje, no meio de uma pandemia, não há outra maneira de nos comunicarmos. Se temos um problema e esse é o canal que dispomos, somos obrigados a nos esforçar para tirar o melhor proveito dele. A equipe multidisciplinar de profissionais colaborativos, com as técnicas que dispõem, podem dar o suporte necessário para que os clientes passem a se apropriar de seus sentimentos, reais necessidades, objetivos maiores e valores essenciais, e tenham êxito em expressá-los de maneira adequada pelos quadradinhos do Zoom. Da mesma forma, os profissionais ajudam seus clientes a escutar de maneira ativa e empática as questões colocadas. Quanto mais restrito o canal, mais essencial se torna a comunicação. Penso que este é um importante exercício do qual nossa sociedade, extremamente prolixa e superficial, pode tirar proveito para aperfeiçoar o grande desafio de passarmos do debate (onde se quer ter razão e vencer) para o diálogo (onde se busca entender e coexistir).

Importante ressaltar o impacto que o meio virtual está causando na humanização das relações com os profissionais do Direito. Escritórios de andar inteiro, salas de reunião com estantes repletas de livros e códigos, a vestimenta formal (para não dizer sisuda) característica dos profissionais do Direito — tudo o que impressiona e nos distancia de nossos próprios clientes — foram substituídas pelo ambiente doméstico, naturalmente mais informal e humano. Assim, mais uma vez, identifico um paradoxo: o canal virtual imposto pelo distanciamento social ao mesmo tempo que soa "desumanizador" das relações, em alguma medida, pode significar o seu contrário. Cenas comuns desse período de quarentena que marcou 2020 foram reuniões formais terem seu clima quebrado por um cachorro que late, uma criança que invade o cômodo, entregas de encomendas, imagem congelada pela queda do wi-fi, áudios esquecidos ligados que revelam momentos de intimidade. Houve uma certa complacência dos envolvidos diante desses eventos, por estarmos todos passando pelo mesmo risco de estar naquelas situações, até então consideradas inadequadas, mas que são próprias da nossa adaptação à atual condição. Estruturas mais enxutas, linguagem acessível e objetiva, postura flexível e criativa diante de impasses e divergências marcam o perfil do profissional do Direito do século XXI. Acredito que um certo nivelamento de condições no espaço virtual tenha o potencial de eliminar subterfúgios que expressam e perpetuam poder e assimetrias e nos faça ter mais clareza da nossa condição de partes de um mesmo sistema onde a colaboração é condição sine qua non para mantê-lo funcional.

Muita gente se pergunta se sairemos seres humanos melhores ou piores desta experiência da pandemia. Vejo possibilidades concretas de darmos um salto qualitativo civilizatório importante, mas não é uma consequência automática, que decorrerá da simples experiência. Da mesma forma, também não acho que estamos fadados ao insucesso. Como nos ensinou Morton Deutch, "o conflito não é em si negativo ou positivo. O que vai determinar o potencial construtivo ou destrutivo de determinada situação, é a forma como lidamos com ela". Nesse sentido, nada está dado. A pandemia não é em si negativa ou positiva. Esse evento, sozinho, não tem potencialidade de transformar nada e nem ninguém. Quem tem a possibilidade de realizar qualquer transformação, para o bem ou para o mal, somos nós. As escolhas que fizermos, individual e coletivamente, é que determinará o nosso futuro.

Portanto, é hora de trabalhar — os desafios não são pequenos. Ninguém questiona que a vida online veio para ficar e que viveremos um sistema híbrido, integrando presencial e virtual. A diferença abissal sócio-econômica que marca a nossa sociedade constitui desafio grande para democratizar o acesso ao mundo digital a todos os cidadãos brasileiros. Outra preocupação é o impacto do confinamento para a mulher advogada, que, sem contar com rede de suporte (parceiro, creches, escola, familiares), se viu, mais do que nunca, sobrecarregada em sua tripla jornada. Sem uma mudança profunda de paradigma no que tange à questão dos papéis sociais associados ao gênero e se não criarmos mecanismos de proteção e equilíbrio das condições de todos, pouca coisa vai mudar, para não falar até no risco de retrocedermos.

Fato é que, com tanta transformação e tanta inovação tecnológica nas residências, nos escritórios e nos tribunais, aceleradas pela pandemia da Covid-19, nossa adaptação à Justiça 100% digital não passa apenas por aprender a utilizar novas plataformas para processamento digital, realização de audiências, julgamentos, webinários e reuniões online. Junto com todo esse instrumental vem a premente necessidade de revisão do papel do(a) advogado(a) — e de todos(as) os(as) operadores(as) do Direito — no atual contexto: é urgente adquirirmos novas habilidades para a resolução de conflitos (que vai além do conhecimento da legislação) e de atualizarmos o conceito de acesso à Justiça (que vai além dos tribunais).

A capacidade para resolver problemas, habilidades socioemocionais para lidar com situações de crise, evitar polarizações, negociar, facilitar conversas difíceis e restabelecer o diálogo e o entendimento preservando relacionamentos e parcerias importantes, é o que se espera dos profissionais do Direito que desejam ter um papel relevante daqui para frente.
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Olivia Fürst é advogada colaborativa, mediadora de conflitos e presidente do IBPC (Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas) e da Comissão de Práticas Colaborativas da OAB.
Fonte: Conjur

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