'Quero advogar': avó se forma em Direito ao 66 anos graças ao Enem

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bit.ly/3sJOhbk | “Sonhar mais um sonho impossível. Lutar quando é fácil ceder.” A composição de Chico Buarque, eternizada na voz de Maria Bethânia, bem que poderia ter sido escrita por Celice Oliveira Brandão, de 67 anos, moradora de Cidade Tiradentes, no extremo da zona leste de São Paulo.

Ela, mais do que ninguém, conhece os caminhos que precisou percorrer para “romper a incabível prisão” e, aos 66 anos, receber o título de bacharel em Direito, após conseguir uma bolsa de estudos integral com a nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). No entanto, para compreender a importância de se “tocar o inacessível chão”, é preciso voltar ao ponto de partida. 

Celice nasceu na periferia de Salvador, na Bahia, em abril de 1953. Filha mais velha de uma família pobre, de nove irmãos, encontrou na avó um ponto de referência para os estudos.

Graças aos esforços da família, aos 11 anos, ela já dava aulas de reforço para as crianças da rua em que morava, no subúrbio da capital baiana. À época, contrariando todas as expectativas, foi aprovada no curso ginasial — incorporado ao chamado ensino fundamental, em 1996, por meio da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). 

“Lembro que na época era necessário adquirir um livro, que para minha família era muito caro.  Minha mãe foi pedir ajuda a um parente, que disse que não sabia por que ela estava com essa ideia de pôr negra e pobre no ginásio. Que se ela quisesse, eles conseguiriam uma casa de família para eu trabalhar. Ganhei o livro usado de uma professora e consegui. Entrei no ginásio e, aos 15 anos, já estava concluindo.” 

"A minha avó sempre nos dizia que a único meio que havia para mudar de vida era estudando"

Com a separação dos pais, aos 16 anos, e a mudança da mãe para o Rio de Janeiro, ela ficou em Salvador e se viu responsável pelos oito irmãos mais novos. À época, embora pudesse contar com o apoio da avó, foi trabalhar em uma fábrica de doces para ajudar com as despesas básicas.

“Tivemos muitas dificuldades de sobrevivência. Foram anos terríveis. À época, recebia meio salário mínimo. Mesmo assim, matriculei-me para fazer o curso colegial [hoje, ensino médio], pois a minha avó sempre nos dizia que a único meio que havia para mudar de vida era estudando”. Com a rotina na fábrica, Celice, no entanto, acabou não conseguindo concluir o curso.

Mudança para o Rio de Janeiro

Assim como tantos outros conterrâneos, que enxergavam na cidade do Rio de Janeiro uma terra de oportunidades, Celice decidiu deixar a Bahia para “tentar a sorte” na Cidade Maravilhosa, que, aos poucos, foi se mostrando, na verdade, cheia de desafios. Entre os anos 1940 e 1970, com a intensificação dos movimentos populacionais em direção aos centros urbanos e regiões consideradas mais ricas, o Brasil viveu um dos maiores fluxos de nordestinos em direção a região sudeste. 

“Naquela época, os nordestinos sonhavam em ir para o Rio de Janeiro tentar a sorte, não escapei do sonho e fui. Liberdade, muito trabalho, salários baixos, morando de favor com amigos e conhecidos. Acabei me tornando mãe solo, aos 24 anos, consequência de uma história longa e de muito sofrimento.” Entretanto, mesmo com todas as adversidades que isso pudesse representar, conseguiu fazer um curso profissionalizante de auxiliar de escritório. 

De volta à Bahia, após quase 10 anos no Rio, começou a trabalhar em farmácias e a fazer bicos para arcar com os estudos da filha. “Quando ela tinha três anos, decidi voltar para Salvador. Comecei a trabalhar em farmácias, a vender confecções e fazer outros bicos para que pudesse patrocinar os estudos de minha filha.”

Celice guarda orgulhosa o cartão de confirmação no Exame Nacional do Ensino Médio, em 2013
ARQUIVO PESSO/CELICE BRANDÃO

Anos depois, com a filha já adolescente, fez um curso de auxiliar de enfermagem. Era a realização de um sonho, ainda que reformulado pelas circunstâncias. “O sonho original era ser médica. Prestei um concurso no Estado e passei, só que ocorreu uma necessidade familiar que me obrigou a vir para São Paulo, prestar auxílio ao meu irmão que estava residindo aqui e perdeu a esposa de forma trágica.” O tempo foi passando, e, aos poucos, uma nova vida foi se construindo na maior cidade da América Latina. 

Ao longo de quase 25 anos, Celice foi aprovada em dois concursos para trabalhar como auxiliar de enfermagem. No entanto, a vontade de cursar uma graduação permanecia forte e vibrante dentro dela. “Trabalhava muito, geralmente em dois hospitais e também não tinha condições financeiras para pagar uma faculdade."

Da tragédia à realização de um sonho

Em 2007, Celice sofreu uma agressão de um dos pacientes, que a deixou com várias lesões pelo corpo e sequelas que existem até os dias de hoje. “Fiquei com hemiplegia (uma espécie de paralisia) no membro inferior esquerdo e outras sequelas, que resultou em aposentadoria compulsória e uma depressão profunda.”

“No fundo do poço e após alguns anos acamada”, como ela mesma define o momento difícil, encontrou nos netos, que se preparavam para o Enem, a animação necessária para retomar o antigo sonho de fazer uma graduação. 

“Comecei a diminuir os antidepressivos e me interessar pelos estudos. A partir daí, ganhei novo ânimo. Comecei a vislumbrar uma nova possibilidade de vida se conseguisse um bom resultado. Consegui passar. Eu e a minha neta. Eu ainda estava muito doente, até passei mal durante a prova, mas estava cheia de esperança pois poderia cursar o ensino superior de graça, poderia ter o meu sonho realizado.”

Adriana Brandão, uma das netas da advogada, hoje formada em jornalismo, acompanhou de perto o processo de retomada. "Minha avó passou por um período muito difícil após o acidente de trabalho. Os estudos proporcionaram a ela um recomeço lindo e admirável. Não é fácil recomeçar. Por vezes, vi as dificuldades com os avanços tecnológicos, a mobilidade reduzida, e o histórico de vida dela, marcado pela falta de recursos, serem grandes barreiras. Mas também assisti a resistência dela em continuar, e se tornar uma advogada". 

Celice, então, fez a inscrição no exame e, posteriormente, foi selecionada para uma bolsa integral pelo Prouni (Programa Universidade Para Todos). Em 14 de janeiro de 2020 recebeu o título de bacharel em Direito. Antes mesmo de terminar a graduação, foi contemplada com uma bolsa de pós-graduação em direito civil. A criança pobre, negra, que nasceu na periferia de Salvador, se transformou em uma mulher ainda cheia de sonhos que, agora, se prepara para o exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). 

“Tudo isso só foi possível por meio do Enem, pois eu não tinha a mínima condição de pagar uma faculdade. Em minha família, a Adriana [neta] se graduou por meio do Enem. Tenho uma outra neta no último ano de psicologia e uma no último semestre de Propaganda e Marketing. Todas são bolsistas do Enem. No dia 06 de abril, se Deus permitir, estarei completando 68 anos. E tenho um sonho: quero advogar. No ano passado, consegui passar na primeira fase do exame, mas, infelizmente, tive uma crise de hipertensão na segunda fase que me impediu de completar a prova. Mas espero conseguir agora, se estiver nos planos de Deus.” 

Ricardo Pedro Cruz
Fonte: noticias.r7.com

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