Controvérsias Jurídicas: Validade das provas contra o anestesista estuprador

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Por @fernandocapez | O rapto das Sabinas, narrado por Lívio e Plutarco, remonta à primeira geração de homens romanos que teriam raptado meninas de aldeias próximas para servirem de objeto sexual. Tal episódio inspirou a escultura de Giambologna, exposta na Loggia dei Lanzi, Florença, e as obras de Nicolas Poussin e Jacques Louis, no Museu do Louvre, em Paris.

Diz a história que, logo após a fundação de Roma, um grupo de cidadãos romanos liderados por Rômulo, raptaram as sabinas, mataram seus maridos e tomaram posse de seus corpos à força, em das primeiras narrativas de objetificação da mulher, dramatizada em diversas representações artísticas durante o período renascentista. Alijadas dos status civitatis, status libertatis e status familiae, as mulheres eram subservientes ao pater famílias e submissas aos seus maridos.

Superada a antiguidade clássica, os dez séculos medievais e a era moderna, foi somente no século 20 que a luta pela igualdade de representação de gênero apresentou seus primeiros frutos. Mesmo consideradas certas especificidades culturais e religiosas, sob o prisma jurídico, tem sido incomum no Ocidente de hoje, tal menoscabo à condição feminina, garantindo-se mulher proteção especial contra violência no âmbito doméstico.

Em que pesem, porém, os avanços legislativos no sentido de extinguir a hierarquia de gênero, ainda são muitos os exemplos de atos discriminatórios, principalmente no que tange aos crimes por ódio e a cultura da objetificação do corpo feminino como aparato sexual. O mais recente é o caso da mulher grávida, sedada e em pleno trabalho de parto, estuprada por um médico anestesista.

Desconfiando do comportamento do anestesista que compunha a equipe médica do Hospital da Mulher Heloneida Studart de Vilar dos Teles, unidade da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, as enfermeiras posicionaram um celular de modo a filmar sua atuação durante o parto. Para a surpresa e repulsa de todos, foram captadas imagens do médico realizando atos libidinosos com a paciente desacordada e impossibilitada de exercer qualquer resistência. Municiada das imagens, a autoridade policial efetuou a prisão em flagrante do médico, indiciando-o por crime de estupro de vulnerável.

Não restam dúvidas que de todos os crimes carnais, o estupro é o que mais demonstra a maior repulsa. No direito romano, a prática era punida com a morte pela Lex Julia de vi publica, porém, a denominação stuprum somente foi prevista na Lex Julia de aldulteriis. As antigas leis espanholas também previam a pena de morte para o autor de estupro. A Ley del Fuero Viejo, por exemplo, por meio da declaración de enemistad, outorgava aos parentes da vítima violada o direito de ceifar a vida do agressor.

O Livro V, Título XVIII das Ordenações Filipinas prescrevia: "Do que dorme per força com qualquer mulher, ou trata dela, ou a leva per sua vontade. Todo homem de qualquer stado e condição que seja, que forçosamente dormir com qualquer mulher, posqtoque ganhe dinheiro per seu corpo, ou seja escrava, morra por ello" (sic) [1]. Antes mesmo da edição do Código Penal do Império, a Lei de 19 de junho 1775 já revogara a pena de morte, sendo que o artigo 222 do Código de 1830 assim passou a dispor: "Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaça com qualquer mulher honesta. Pena: prisão de 3 a 12 annos, e de dotar a offendida" (sic). Depois das excessivas atenuantes previstas pelo Código de 1890, O CP de 1940 passou a prever pena de reclusão de 3 a 8 anos, além de três hipóteses de violência presumida (vítima não maior de 14 anos, alienada mental ou impossibilitada de oferecer resistência).

Atualmente, o artigo 217-A do Código Penal prevê pena de reclusão de 8 a 15 anos para aquele que tiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou com alguém que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. Sua finalidade é proteger a dignidade sexual da pessoa menor de 14 anos, sem discernimento para compreender o ato praticado, ou impossibilitada de oferecer resistência [2]. Qualquer pessoa, homem ou mulher, poderá ser vítima de estupro, uma vez que a lei não considera estupro apenas o coito vagínico (introditio penis intra vas), mas qualquer ato libidinoso passível de ser praticado contra homens e mulher, tais como o coito anal e a felação. No estupro de vulnerável, a vítima é menor de 14 anos, deficiente mental ou não pode oferecer resistência. Essa condição da vítima equipara o crime ao estupro cometido com violência real ou grave ameaça.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica ao interpretar a presunção de violência do artigo 217-A como absoluta, conforme se extrai do seguinte julgado: "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a anterior experiência sexual ou o consentimento da vítima menor de 14 (quatorze) anos são irrelevantes para a configuração do delito de estupro, devendo a presunção de violência, antes disciplinada no art. 224, alínea 'a', do Código Penal, se considerada de natureza absoluta" [3].

Diante de tais ponderações, o médico anestesista praticou estupro de vulnerável, uma vez que a sedação retirou a consciência da vítima e sua possibilidade de defesa. O ato foi pautado na mais covarde forma de violência, uma vez que o emprego de anestésico é equiparado à vis corporalis (violência física) ou vis compulsiva (grave ameaça). Como já expressava Carpsov: qui vele non potuit, ergo noluit (quem não podia consentir, dissentiu).

A hediondez da ação fica reforçada pelo ardil empregado. Depois de pedir para que o marido se retirasse da sala de parto, o agressor violou a dignidade sexual da vítima atrás de um biombo, às escondidas, sorrateiro, o que ruborizaria de vergonha até o mais infame romano sequestrador de sabinas.

Por fim, não há que se colocar em dúvida a validade da prova produzida, qual seja, a filmagem do estupro, por suposta violação à intimidade do criminoso, nem de sua ilicitude pelo fato de não ter sido previamente autorizada pela Justiça.

Circulam pela internet vídeos com palpites estapafúrdios de que a filmagem configuraria prova ilícita, uma vez que o criminoso deveria ter sido avisado antes de que iria ser filmado cometendo o crime. Evidentemente, o registro fotográfico ou audiovisual de um flagrante delito é prova idônea e inequívoca de sua prática, além de perfeitamente lícita, a qual é utilizada costumeiramente para lastrear condenações consideradas válidas pela Justiça. A sala de parto pode até ser considerado um ambiente privado para o resguardo da intimidade da gestante, nunca do criminoso que a estuprou. Na ponderação de valores, a dignidade sexual da vítima e sua integridade física, assim como a do bebê, prevalecem sobre uma suposta e absurda garantia para o estuprador de não ser filmado cometendo a violência sexual.

Além disso, a CF é clara ao exigir prévia autorização judicial apenas para a interceptação de comunicação telefônica (artigo 5º, XII), não proibindo a captação de imagens para a configuração do flagrante esperado. Deste modo, desnecessária também prévia autorização judicial para captação ambiental de imagens. A sala cirúrgica não é ambiente secreto, no sentido de proteger atos criminosos ali praticados, nem tampouco é necessário consentimento do criminoso para ser flagrado no cometimento dos crimes, o que seria até risível, para não dizer absurdo.

Fica, no entanto, a questão de que a ação deveria ter sido interrompida por quem registrava as imagens. As enfermeiras estavam na posição de garantidoras da integridade da paciente e, desde que possível, deveriam ter impedido a consumação do estupro.

Neste caso, deverão estar presentes os seguintes requisitos para que as enfermeiras sejam responsabilizadas pelo crime, na modalidade por omissão: (a) ciência contemporânea do fato, ou seja, é necessário que as enfermeiras estivessem acompanhando o estupro no momento em que estava sendo cometido; (b) possibilidade real e concreta de ter interrompido a ação, caso a estivessem visualizando no mesmo instante em que ocorria; (c) dolo de ver o ato consumado, ou seja, seria necessário que estivessem acompanhando toda a ação concomitantemente, tivessem a possibilidade real de agir na mesma hora para interromper o ato e a intenção de vê-lo realizado até o final. Em outras palavras, se elas somente tiveram ciência do estupro mediante a visualização das imagens após encerrada a ação, não há como responsabilizá-las pelo fato pretérito. Um responsável, no entanto, é certo: o anestesista estuprador, sujeito a uma pena de até 15 anos de reclusão.
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[1] NORONHA. Edgard Magalhães. Crime contra os costumes. Comentários aos arts. 213 a 226 e 108 nº VIII do Código Penal. 1ª edição. São Paulo, Ed. Saraiva & Cia, 1943, p. 14.

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte especial, arts. 213 a 359-H. Vol. 3, 18ª edição. São Paulo. Ed. SaraivaJur, 2020, p. 125.

[3] STJ, HC 224174, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 18/10/2012.
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Fernando Capez é procurador de Justiça, mestre e doutor em Direito e presidente do Procon-SP.
Fonte: Conjur

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