A cena, que ele descreveu em juízo como "cenário típico de tráfico de drogas", foi o que deu à polícia fundadas razões para invadir a residência sem autorização judicial ou consentimento do morador. Dentro do imóvel, foram encontrados 92g de crack, o que levou à condenação do réu à pena de cinco anos, oito meses e um dia de reclusão, em regime inicial fechado.
Essa situação foi analisada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de dezembro do ano passado, e exemplifica o trabalho dos ministros ao decidir casos em que a violação de domicílio tem sido justificada por flagrantes policiais feitos de fora da casa — por frestas no portão, janelas abertas ou por cima do muro.
Relator do recurso especial julgado na 6ª Turma, o ministro Antonio Saldanha Palheiro avaliou a situação e concluiu que "não é crível que de fora da residência fosse possível divisar '1 faca e 1 prato com resquícios de cocaína', em contexto de traficância, e não de uso". Logo, a polícia não tinha razões para crer que havia ali a prática de tráfico de drogas.
"A diligência apoiou-se em meras denúncias anônimas e em uma alegada visualização de atos de tráfico, circunstâncias que não justificam, por si sós, a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial", argumentou o ministro. A votação, unânime, levou à anulação da condenação, pela nulidade das provas.
Olhos de lince
Essa análise decorre da posição adotada pelo tribunal desde 2021. Os ministros passaram a ser mais criteriosos com as razões usadas para justificar a invasão de domicílio de alguém, de modo a evitar a conivência com ataques aos direitos fundamentais que eram, desde sempre, praticados pelas polícias no combate ao crime e tolerados pelo Poder Judiciário.
A análise da validade das razões usadas para invadir a casa de alguém é sempre feita caso a caso e dentro dos limites do processo — na maioria, em Habeas Corpus, que não permite produção de prova e tem cognição limitada. O tema tem se mostrado presente em meio às centenas de recursos apontando esse tipo de nulidade.
Outro caso julgado pela 6ª Turma que terminou com a declaração da nulidade das provas envolveu policiais em patrulha que viram uma pessoa correr para dentro de casa. Da rua, eles conseguiram ver pela janela porções de crack sobre a mesa, então invadiram o local e apreenderam 16g de cocaína, elemento que embasou a condenação do réu por tráfico.
O ministro Saldanha Palheiro, relator do Habeas Corpus, mais uma vez afirmou que o contexto não aponta para a conclusão inarredável de que se praticava crime dentro da residência. "A diligência apoiou-se em meras denúncias anônimas e na visualização de objeto que parecia ser droga, circunstâncias que não justificam, por si sós, a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial."
O acórdão ainda concluiu que "mais grave é a intromissão indevida na intimidade domiciliar sob a alegação de que foi possível divisar pequena quantidade de drogas pela janela e ainda assim concluir não se tratar de manuseio de drogas para consumo, mas, sim, de flagrante delito de tráfico". A votação foi também unânime.
Um terceiro caso análogo julgado pela 6ª Turma em 2022 foi noticiado pela revista eletrônica Consultor Jurídico: um homem foi preso e condenado porque abriu a porta do seu apartamento para policiais, que viram comprimidos de ecstasy dentro do imóvel e deram o flagrante. Ele foi absolvido pelo STJ.
'Molhou! Joga fora!'
Nem sempre, porém, os flagras de fora da casa levam à anulação das provas. A 5ª Turma manteve a validade do ingresso de policiais numa residência depois de eles verem, por uma fresta no muro, pessoas conhecidas no meio policial pelo envolvimento com o tráfico ilícito de entorpecentes em ação.
Essa cena fez parte da apuração prévia feita na hora pelos agentes públicos. Eles receberam denúncia anônima sobre o ponto de drogas. Na frente do local, observaram seguidas movimentações suspeitas. Relator, o desembargador convocado Jesuíno Rissato considerou válidas as conclusões de que havia ali um crime sendo praticado — o que ficou comprovado posteriormente.
Em outro Habeas Corpus, o colegiado validou o flagrante ocorrido durante uma campana feita em uma casa em que traficantes armazenavam grande quantidade de drogas. Eles tinham a informação de que o transporte do entorpecente seria feito em dois carros, um branco e um preto. Ao olhar por cima do muro, viram os dois na garagem e perceberam até tabletes de droga dentro de um dos veículos. "Tais circunstâncias não deixam dúvidas quanto à existência de fundadas razões para o ingresso domiciliar", concluiu o ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
A 5ª Turma também validou a invasão de domicílio feita por policiais que receberam denúncia sobre a prática de tráfico, foram até a casa do suspeito e chamaram por ele. Ao ver quem estava do lado de fora da residência, o réu gritou "Molhou! Molhou! Joga fora!", e correu para dentro.
Quando os PMs entraram no local, encontraram o homem jogando entorpecentes no vaso sanitário do banheiro. Para o ministro Soares da Fonseca, a denúncia anônima foi corroborada por outros indícios. "É forçoso reconhecer que o contexto delineado evidencia existirem fundadas suspeitas para que a autoridade policial realizasse a vistoria no imóvel."
REsp 2.019.123 (caso de Florianópolis)
HC 735.572 (crack visto pela janela)
REsp 1.974.278 (flagra ao abrir a porta)
HC 765.547 (pela fresta do muro)
HC 749415 (por cima do muro da garagem)
HC 741190 (gritos de fora da casa)
Por Danilo Vital
Fonte: Conjur
Postar um comentário
Agradecemos pelo seu comentário!