Entre relatos de quem viu um vulto caindo pela janela e o choque daqueles que se aglomeraram no subsolo do prédio, próximo ao local em que o corpo foi encontrado sem vida, um grupo expressivo de funcionários tinha certeza de que era questão de tempo para que uma fatalidade como aquela acontecesse. O suicídio foi tratado como um fato isolado pelo comando do MP-SP, que divulgou nota de pesar no dia seguinte. Menos de um ano depois, contudo, outros dois servidores se mataram.
Ambos os casos ocorrerem em um intervalo inferior a 24 horas, entre os dias 10 e 11 de maio deste ano. Os servidores eram um diretor de engenharia que estava afastado do trabalho com diagnóstico de depressão e um motorista que tirou a própria vida durante o expediente, dentro de uma caminhonete do Ministério Público. Horas depois, um terceiro servidor foi impedido pela polícia de se jogar de um viaduto próximo à sede do MP-SP, na Rua Riachuelo, após mandar um vídeo de despedida para a família.
A sequência de episódios motivou a criação de um movimento batizado “Nenhum Servidor a Menos”, um protesto de funcionários em frente ao prédio-sede do Ministério Público paulista e uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Para o grupo, as tragédias são consequências diretas do que classificam como “cultura de assédio”, tanto moral quanto sexual, que vigora dentro da instituição que tem como principal função defender os direitos sociais e individuais dos cidadãos, combatendo, inclusive, esse tipo de abuso.
Nos últimos dois meses, o Metrópoles, parceiro do Bahia Notícias, ouviu 12 servidores e três ex-funcionários do Ministério Público que relatam ter sofrido assédio moral ou sexual de membros do MP-SP — promotores e procuradores de Justiça — ou de outros integrantes do órgão. Pela primeira vez, três deles decidiram falar abertamente sobre o que dizem sofrer dentro da instituição, abrindo mão do anonimato.
Os relatos apontam para uma rotina de intimidação, xingamentos, ameaças, sobrecarga de trabalho, desvio de função, falta de acolhimento a quem procura ajuda, omissão dos superiores e punição aos denunciantes. Por medo de represálias, a maioria dos entrevistados pediu para não ser identificada. “A pessoa que escolhe se matar no local de trabalho, durante o expediente, quer passar uma mensagem sobre esse lugar”, diz uma dessas supostas vítimas.
Criada na periferia da zona sul de São Paulo, bolsista do Prouni e filha de uma diarista e de um pedreiro, a oficial de promotoria Thaissa Vieira, de 30 anos, viu-se começando nova etapa de vida quando foi aprovada no concurso do MP-SP, há sete anos. Um cargo público com estabilidade era a sua esperança de comprar uma casa e garantir melhores condições para a sua família.
O primeiro desapontamento veio logo nos meses iniciais de trabalho, em 2016, com a sua transferência de setor, porque não poderia fazer uma jornada completa, que iria até a noite, por causa dos estudos. Como universitária, Thaissa tinha direito, segundo as normas internas, a um expediente mais flexível. Na prática, segundo seu relato, ela descobriu que o benefício não valia para todos.
“Em uma reunião com uma promotora e um superior, me disseram que eu precisava me adaptar ao MP, e não o contrário”, conta. Ela deixou a sala aos prantos e se abrigou no banheiro para desabafar com uma amiga por telefone: “Aqui eles tratam a gente feito bandido, parece que eu fiz alguma coisa muito grave”, disse na ocasião.
Em sete anos como servidora do Ministério Público, Thaissa já trocou de área sete vezes. As movimentações, afirma, são comuns dentro do órgão e ocorrem, geralmente, quando um funcionário manifesta algum incômodo com a rotina de trabalho, como sobrecarga, desvio de função e assédio moral, ou quando um promotor ou procurador demonstra insatisfação com a atuação do servidor.
As trocas de área foram precedidas por episódios de gritos, xingamentos, gordofobia, elitismo e assédio sexual, afirma Thaissa. “Em todas essas situações eu falei com chefes, diretores e com duas promotoras. Todo mundo sempre abafava e me trocava de setor”, relata a servidora. Ela conta que foi perseguida por um colega de trabalho após dizer que não tinha nenhum interesse nele e que era tocada de forma constrangedora na cintura ou no braço por promotores nos corredores do MPSP, além de receber beijos na bochecha que quase tocavam seus lábios. “Era quase um selinho.”
De acordo com Thaissa, uma colega lhe disse que ela era alvo de homens dentro do órgão por ter uma “beleza de periferia”. Diante desse quadro, a servidora afirma ter moldado a sua rotina de trabalho para evitar qualquer abordagem que pudesse resultar em assédio. Ela diz que passou a esconder-se atrás de pilastras, trocar de calçada na rua e almoçar sozinha. No período mais crítico, afirma, cogitou tirar a própria vida pulando de uma janela do MPSP.
“Eu queria deixar uma mensagem assim: já que vocês estão roubando minha alma, agora que fiquem com a minha carcaça”. Quando soube do suicídio do analista, em junho passado, ela diz que o sentimento foi de identificação. “Ele concretizou o que eu tanto estudei fazer.”
“Em 17 anos de Ministério Público, nunca recebi ameaça de criminoso, mas recebi ameaça de promotor”, desabafa o oficial de promotoria Bruno Bertolo, de 41 anos, outro servidor que afirma ser vítima de assédio moral dentro da instituição e que falou abertamente sobre o seu caso ao Metrópoles.
Há sete anos, Bertolo entrou com representação no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão responsável pela fiscalização dos MPs em todo o país, contra resolução que delegava aos servidores a responsabilidade de acompanhar a incineração de drogas apreendidas em investigações.
O CNMP acolheu a argumentação de Bertolo, que dizia ser responsabilidade de membros do MP – ou seja, de promotores e de procuradores – acompanhar o ato de incineração, tarefa que demanda curso específico e fiscalização de uma autoridade que representa a instituição.
“A partir daí, minha vida virou um inferno”, relata ao Metrópoles. Bertolo conta que recebeu dois telefonemas em seguida. O primeiro, anônimo, de um colega alertando que a medida não havia “pegado bem” internamente. A segunda ligação veio de um promotor que, nas palavras de Bertolo, prometeu “acabar com sua vida”.
O oficial se disse perseguido internamente e passou a responder por um Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD). Com depressão, ansiedade e enfrentando um processo de divórcio – que ele credita ao desgaste sofrido no MPSP –, Bertolo chegou ao extremo de planejar a própria morte.
Na carta, que seria endereçada à cúpula do MPSP, ele questionava: “Quando farão algo a respeito? Quando tivermos um suicídio por mês? Ou somente se algum cadáver atingir o automóvel de algum membro ministerial na queda? Até quando adotarão essa alienação deliberada? Como dormem tranquilos à noite?”.
Quadros como o de Bertolo são recorrentes entre os servidores. Logo após a morte do analista, em junho de 2022, um grupo de funcionários organizou pesquisa interna com 777 funcionários. Nela, 76% disseram já ter sofrido assédio moral no trabalho e 14% relataram casos de assédio sexual. Setenta por cento deles afirmaram ter presenciado alguém sendo assediado, moral ou sexualmente, na instituição.
Ao todo, o MPSP afirma ter recebido oito denúncias de assédios cometidos por integrantes do órgão contra servidores.
A decisão dos funcionários de falar abertamente sobre os assédios que dizem sofrer dentro do Ministério Público paulista é uma reação ao que eles classificam como omissão da instituição em relação a casos extremos, como o do analista de 48 anos que se matou em junho de 2022. O quadro de depressão enfrentado pelo funcionário é uma das primeiras informações a constar do boletim de ocorrência ao qual o Metrópoles teve acesso.
Entre os relatos colhidos pelo Metrópoles, há mais de um caso envolvendo servidores que se viram alvos de procedimentos disciplinares após entrarem de licença por motivos de saúde, bem como histórias de quem se viu obrigado a realizar “favores pessoais” a promotores.
O movimento é para pressionar a instituição a adotar políticas de saúde mental e de combate ao assédio. O grupo promoveu um ato em frente à sede do Ministério Público, no dia 18 de maio deste ano, e participou de uma audiência pública na Alesp, na semana seguinte.
Questionado pelo Metrópoles sobre as denúncias de assédio, o MPSP enviou nota afirmando que o bem-estar de seus funcionários é prioridade e elencou cinco iniciativas anunciadas pelo órgão desde o ano passado. No texto, o MPSP afirma que todas as denúncias de assédio são “diligentemente investigadas” e ressalta que, de oito denúncias contra membros nos últimos dois anos, em seis houve punição efetiva. Nas outras duas, o denunciado foi advertido.
Fonte: www.bahianoticias.com.br
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