A doutrina especializada conhece bem o problema; como em muitas outras situações da vida, conhecer o problema pode ser o primeiro passo para tratá-los e resolvê-los. Segundo AMADEI e AMADEI em sua clássica obra (Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais - Loteamento e Desmembramento. 2018) o "parcelamento do solo urbano é subsistema do macrossistema da cidade, que expressa operação polivalente de INTEGRAÇÃO de espaços públicos e privados, pelo FRACIONAMENTO sustentável da PROPRIEDADE imobiliária, servindo de base a múltiplas acomodações civis, urbanísticas e ambientais relevantes". O conceito lapidado é importantíssimo e, nessa linha de intelecção, os referidos mestres classificam o "parcelamento" (ou loteamento, se assim o leitor preferir) do solo da seguinte forma:
"1. PARCELAMENTO REGULAR: é o parcelamento aprovado, registrado e devidamente executado (ou implantado), em conformidade com a Lei e com as licenças expedidas;
2. PARCELAMENTO CLANDESTINO: é parcelamento não aprovado, oculto à Administração Pública;
3. PARCELAMENTO IRREGULAR: é parcelamento aprovado, mas não registrado ou, ainda, que registrado, com falha na implantação;
4. PARCELAMENTO REGULARIZADO: é o parcelamento informal (clandestino ou irregular) que foi formalizado, pela regularização urbanística, administrativa, registrária e civil".
É fácil imaginar que exigir a comprovação da regularidade seja uma das etapas mais óbvias para os adquirentes, todavia, na prática não costuma ser o que acontece, especialmente quando o adquirente não conta com a assessoria jurídica especializada já que do cidadão comum não se espera conhecer todos esses detalhes complexos e sofisticados que envolvem a compra de um imóvel. De toda forma, situação muito comum que nos deparamos com frequência é a do sujeito que adquire/ocupa imóvel em TERRENO/LOTEAMENTO IRREGULAR - quase sempre a situação já se arrasta há anos - e deseja regularizar seu imóvel, obtendo o "RGI" em seu nome. Como será possível se muitas vezes o mesmo não possui nem mesmo ESCRITURA ou qualquer outro título que justifique sua posse?
O fato de o imóvel estar erigido sobre loteamento/terreno irregular não pode representar óbice para a regularização pela prescrição aquisitiva (USUCAPIÃO), desde que comprovados os requisitos para a aquisição através da Usucapião, conforme a espécie pretendida. Tal questão já foi inclusive enfrentada pelo STJ que, através do Tema Repetitivo 1.025, julgado em 2021 definiu ser cabível a aquisição de imóveis particulares ainda que edificados sobre loteamento irregular. Do processo que serviu de base para o referido Tema (REsp 1818564/DF) podemos extrair, pela sua importância, seguintes excertos:
"Não há, portanto, como negar o direito à usucapião sob o pretexto de que o imóvel está inserido em loteamento irregular, porque o direito de propriedade declarado pela sentença (dimensão jurídica) não se confunde com a certificação e publicidade que emerge do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística). (...). Eventual construção irregular, supressão de nascente ou risco à saúde pública continuarão a existir independentemente de o juiz, na sentença, deferir ou indeferir o pedido de usucapião, sendo certo que tais irregularidades devem ser corrigidas por remédios próprios, a cargo do Poder Público, pelo poder de polícia que lhe é inerente. A declaração da usucapião, vale dizer, é incapaz de causar prejuízo à ordem urbanística, sendo certo, da mesma forma, que o indeferimento do pedido de usucapião não é capaz, por si só, de evitar a utilização indevida da propriedade. (...) Sob essa perspectiva, a declaração da usucapião, ao contrário do que alegado pelo Ministério Público Federal, pode revelar-se, de extrema utilidade para o restabelecimento de uma situação de regularidade na ocupação urbana, imprimindo a dignidade humana e dando ensejo à compreensão de que o capital pode e deve ser humanista. (...) A declaração da prescrição aquisitiva pode ser o primeiro passo para restabelecer a regularidade da ocupação urbana, atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana que pode e deve ser feliz. E o STJ deve honrar a cidadania".
Com toda razão - e ousamos acrescentar - que se de fato a legislação não exige nas espécies de Usucapião que "regularidade" registral ou urbanística como um dos requisitos para o estabelecimento da Usucapião como fenômeno para aquisição imobiliária (vide, por exemplo, artigo 1.238 do Código Civil) a Usucapião deve ser reconhecida em favor do pretendente - tanto em sede judicial quanto em sede extrajudicial - ainda que se trate de loteamento/terreno irregular ou clandestino. Dessa forma, a Usucapião - inclusive manejada diretamente nos Cartórios, sem processo judicial, com assistência de Advogado na forma do art. 216-A da Lei de Registros Públicos - pode ser um dos caminhos para iniciar a regularização do imóvel, objetivando o Registro de Imóveis em nome do possuidor, como assenta recente decisão do TJSP que inclusive anulou a sentença do Juízo de origem, determinando o prosseguimento do feito:
"TJSP. 1002044-15.2020.8.26.0441; J. em: 16/09/2021. APELAÇÃO CÍVEL – USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA – Sentença de improcedência de plano – Autores que, à época do ajuizamento da ação estavam na posse mansa e pacífica do imóvel, com urbanística, administrativa, registrária e civil, há mais de cinco anos e comprovaram ter justo título consistente em instrumento particular de venda, compra, cessão e transferência de direitos e obrigações – Loteamento irregular – IRRELEVÂNCIA – Prosseguimento da demanda em primeira instância, de rigor – Recente julgamento do Tema 1025 sob o rito dos recursos repetitivos pelo C. STJ em consonância com o entendimento ora esposado - SENTENÇA ANULADA".
Por Julio Martins
Fonte: www.juliomartins.net
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