Os fatos ocorreram em 25 de abril, durante audiência de instrução da primeira fase do rito do Tribunal do Júri no caso das gêmeas de Igrejinha — duas irmãs de seis anos que morreram em um intervalo de oito dias.
A mãe das vítimas, principal suspeita do crime, é defendida pro bono por José Schneider. Durante a audiência, após ser interrompido seguidas vezes pelo julgador, o advogado disse que ele não tinha condições morais, éticas e profissionais para o processo e pediu decência.
O juiz, então, perguntou se estava sendo chamado de indecente. “Sim. E não respondo por injúria ou difamação. Está conduzindo indecentemente”, devolveu o advogado.
A audiência terminou com ordem de ofícios à OAB do Rio Grande do Sul, para apurar falta do advogado, e à Polícia Civil, para apuração dos delitos de injúria ou difamação. O advogado prestou depoimento em 16 de junho.
Em 27 de agosto, o MP-RS fez a Schneider proposta de transação penal pelo crime de desacato, por entender que os impropérios na audiência transbordaram da prática forense e da defesa combativa.
A oferta foi de pagamento de R$ 4 mil para evitar o processo, e foi prontamente rejeitada pelo advogado. Ele foi denunciado no sábado (18/10), com proposta de suspensão condicional do processo mediante pagamento de um salário mínimo e comparecimento mensal em juízo. O processo tramita na 2ª Vara de Igrejinha (RS).
Pedido de decência processual
Para José Schneider, não há crime a ser apurado porque as falas foram proferidas no exercício da defesa da ré — que acabou pronunciada pela morte das filhas gêmeas e vai a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Ele entende que o pedido de decência está acobertado pela norma do artigo 142 do Código Penal, que exclui a incidência de injúria ou difamação quando a ofensa é feita em juízo, na discussão da causa, pelo advogado.
O embate com o magistrado começou cedo no processo. O juiz mandou oficiar a OAB-RS porque o advogado teria perdido o prazo de defesa prévia, o que ele alega não ter ocorrido — o prazo efetivamente cumprido foi o que constou no sistema eProc e foi alargado pela juntada de novos documentos ao caso. Esse foi o motivo para o primeiro pedido de suspeição do magistrado, rejeitado por ele mesmo.
No dia da audiência, a discussão ocorreu durante o depoimento do delegado do caso, que inicialmente falou livremente por mais de uma hora, sem ser interpelado. Quando a defesa passou a fazer perguntas, o juiz interrompeu e indeferiu algumas delas, por impertinência ou repetição. O advogado suscitou novamente a suspeição e, então, fez os impropérios (veja a transcrição abaixo).
No depoimento prestado à Polícia Civil, José Schneider explicou que o pedido foi de decência processual na condução do processo, sem a intenção de atentar contra a honra do juiz. E que as condutas foram feitas na defesa da ré e no exercício da profissão. Foi, portanto, um embate jurídico buscando a plenitude de defesa.
Por fim, ele pediu desculpas ao juiz caso ele tenha se sentido ofendido.
Apoio institucional
Até o momento, o advogado não foi intimado pela OAB-RS sobre os dois ofícios expedidos pelo juiz. Ele recebeu apoio institucional da Ordem e é representado na ação penal pela Comissão de Defesa, Assistência e das Prerrogativas (Cedap).
Antes da denúncia, a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) peticionou ao delegado da causa para apontar a inexistência de crime nas atitudes do advogado e pedir a inviolabilidade por seus atos e manifestações, como previsto pelo Estatuto da Advocacia.
“Sua intenção não era ofender pessoalmente o magistrado, mas registrar sua inconformidade com as condutas que ele vinha adotando ao longo do processo e daquela solenidade, as quais, na visão do advogado, causavam prejuízo à defesa da ré”, disse a entidade.
Por outro lado, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) também peticionou para alegar que a inviolabilidade dos atos dos advogados não é absoluta e para manifestar confiança na conclusão do procedimento com independência.
Para José Schneider, todo o caso gera uma incoerência flagrante: Diogo Bononi Freitas continua à frente do processo penal no caso das gêmeas de Igrejinha, apesar de se dizer vítima do advogado da ré.
Além disso, a denúncia contra ele foi assinada pelo promotor de Justiça Daniel Ramos Gonçalves, que também atua no caso criminal das gêmeas — foi quem assinou os memoriais da acusação e, portanto, tem interesse (ou conflito de interesse) na causa.
Eis a transcrição da audiência:
ADVOGADO: Delegado, eu quero entender: o senhor teve preocupação com as crianças? Com o Michel, para não indiciá-lo indevidamente? E com a questão psicológica da minha cliente?
DELEGADO: Tive preocupação de apurar, de identificar o máximo possível de elementos. Me sinto até hoje muito tranquilo quanto a isso. Acho que fiz bem meu trabalho.
ADVOGADO: O juiz vai me interromper de novo em plena defesa. Qual a interrupção agora, doutor?
JUIZ: Interrompi porque a pergunta está indeferida. O senhor já a fez.
ADVOGADO: Não estava repetida. Está tudo sendo gravado. Às 11h34, faço mais uma arguição de suspeição. O senhor não analisou meu pedido anterior, mas analisou o do delegado. O senhor não está deixando eu trabalhar. Já pronunciou a Gisele e quer condená-la. O senhor não reúne condições morais, éticas e profissionais para este processo.
JUIZ: O senhor pode entrar com exceção de suspeição pela via correta. Pode seguir com as perguntas.
ADVOGADO: Delegado… Aliás, juiz, a via correta é por petição. O senhor respondeu o delegado às 21h, fora do plantão. Tenha ao menos decência ao conduzir um processo criminal.
JUIZ: Constitua em ata que será oficiado à OAB sobre a conduta do advogado. Pode prosseguir com as perguntas.
ADVOGADO: Constitua também que os abusos cometidos serão oficiados ao CNJ e à Corregedoria. Pedi resposta de ofício e o senhor não deu. O senhor não gosta de ser contrariado. Se não quer ouvir, trabalhe com decência.
JUIZ: O senhor está me chamando de indecente?
ADVOGADO: Sim. E não respondo por injúria ou difamação. Está conduzindo indecentemente. O delegado aceitou a pergunta e o senhor o interrompeu. Esse advogado não tem medo de ofício. Não vou me calar.
JUIZ: Vamos tentar continuar a audiência.
ADVOGADO: O senhor tira minha palavra. Posso falar sem ser interrompido?
JUIZ: O senhor pode perguntar. Eu presido a solenidade e indefiro quando necessário. Isso é normal.
ADVOGADO: A calma é tirada pelo abuso do senhor. Se o senhor não abusar do seu poder, manteremos a calma.
JUIZ: Se o senhor entende que sou parcial, proponha exceção. O tribunal decidirá.
ADVOGADO: Não tenho problema com a presidência, mas sim com a que fere a paridade de armas. O senhor disse que não deixo falar, mas o senhor não me deixa.
JUIZ: Pode fazer quantas perguntas quiser.
ADVOGADO: Respeito sua presidência até que ela se torne desproporcional. O delegado repetiu-se várias vezes e o senhor não pediu objetividade. Quando a defesa trabalha, o senhor pede objetividade. Isso fere a paridade de armas.
JUIZ: Pode prosseguir com as perguntas.
ADVOGADO: Delegado, sobre a câmera: o senhor chamou a situação de pitoresca. A Gisele teria faltado com emoção, mas o depoimento do Josias — que está nos autos — é diferente.
Nota do advogado
À revista eletrônica Consultor Jurídico, José Schneider enviou a seguinte nota:
O processo penal, sobretudo o júri, é local em que se estabelecem debates sensíveis, complexos e, por vezes, acalorados. Não raro, assistimos episódios de fortes embates entre as partes. Agora, o que não se pode é criminalizar o embate, que, no mais das vezes, ocorre no calor do momento.
Explico que minhas condutas e ações foram realizadas durante a defesa da minha cliente e no exercício da minha profissão, não tendo qualquer conotação ou objetivo de atacar ou desacatar o magistrado. Foi uma reação combativa e proporcional às violações ocorridas durante todo o processo. Não é demais lembrar que o mesmo magistrado determinou, de ofício, a abertura de processo correcional contra mim, por suposta perda de prazo para apresentação da resposta a acusação. Ocorre que não perdi prazo algum. Está lá no evento 30 dos autos a prova de que cumpri como prazo para a defesa prévia. Quando falo de decência processual é disso que se trata. É legal/decente determinar a abertura de investigação disciplinar por uma perda de prazo que não ocorreu? Pois é.
Reforço que em momento algum pretendi ofender moral ou profissionalmente o magistrado, apenas combati, de forma enérgica, a série de violações e abusos de poder por ele perpetrados, que inviabilizam a plena defesa e a paridade de armas no processo penal. Embora eu não tenha tido a intenção de ofender o magistrado, consigno minhas sinceras escusas, caso ele tenha se sentido ofendido.
Registro, por fim, que recebo essa tentativa de criminalização da minha advocacia com a serenidade de alguém que atua dentro dos limites da ética e técnica processual, mas que jamais irá se curvar ou acovardar diante abusos de poder e de violações aos direitos fundamentais. Como diria a música, “paz sem voz não é paz, é medo!”. E não se faz defesa criminal com medo.
Danilo Vital
Fonte: @consultor_juridico

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