bit.ly/2M95p61 | Baseada em uma série de crimes ocorridos entre 2008 e 2011, reunidos no artigo “An unbelievable story of rape”, escrita por T. Christian Miller, ProPublica e Ken Armstrong, publicada na página ProPublica em 16 de dezembro de 2015 (aqui), a série Unbelievable, disponível no serviço de streaming Netflix, narra o inferno vivido pela adolescente Marie Adler, atacada por um criminoso serial.
A garota de 18 anos morava sozinha em um apartamento, como participante de um projeto que auxiliava jovens sem família, como ela. Ela havia sido tirada de sua mãe biológica por negligência, já havia sofrido violência sexual aos sete anos, havia passado por algumas famílias adotivas, enfim, já vinha de uma situação de sucessivos traumas.
Atacada por um criminoso expert em não deixar rastros de DNA, dentro de seu próprio apartamento, a moça chama a polícia imediatamente. Mesmo com o exame de corpo de delito realizado, com feridas no corpo que dificilmente poderiam ser auto-infligidas, a moça é desacreditada completamente pelos dois detetives responsáveis pelo caso. As próprias “mães” temporárias não acreditaram; uma delas chega a procurar a polícia para dizer que a menina era “problemática”, “fazia tudo para chamar a atenção”.
Confrontada pelos policiais, sem um suporte familiar, de amigos e mesmo de um advogado, a adolescente não sabe o que fazer. Sofrendo pelos traumas da violência sexual, sem apoio psicológico e jurídico, sem família nem amigos, ela retira a queixa apresentada. Então, a polícia a processa por denunciação caluniosa, um crime que em seu Estado poderia levar ao cumprimento de até um ano de cadeia. Pouquíssimas pessoas são processadas por denunciação caluniosa, então o caso da jovem chamou atenção:
"She was 18 years old, charged with a gross misdemeanor, punishable by up to a year in jail.
Rarely do misdemeanors draw notice. Her case was one of 4,859 filed in 2008 in Lynnwood Municipal Court, a place where the judge says the goal is ‘to correct behavior — to make Lynnwood a better, safer, healthier place to live, work, shop and visit.’
But her misdemeanor had made the news, and made her an object of curiosity or, worse, scorn. It had cost her the newfound independence she was savoring after a life in foster homes. It had cost her sense of worth. Each ring of the phone seemed to announce another friendship, lost. A friend from 10th grade called to ask: How could you lie about something like that? Marie — that’s her middle name, Marie — didn’t say anything. She just listened, then hung up. Even her foster parents now doubted her. She doubted herself, wondering if there was something in her that needed to be fixed.” (MILLER, ARMSTRONG, PROPUBLICA, 2015).
Em tradução livre:
"Ela tinha 18 anos de idade, acusada de contravenção grave, punível com até um ano de cadeia.
Raramente contravenções atraem atenção. O caso dela era um de 4.859 apresentados em 2008 na Corte Municipal de Lynnwood, um lugar onde o juiz diz que a meta é ‘corrigir comportamento – para fazer de Lynnwood um lugar melhor, mais seguro, mais saudável para viver, trabalhar, comprar e visitar’.
Mas a contravenção dela havia feito notícia, e feito dela um objeto de curiosidade, ou, pior, escárnio. Tinha custado a ela a recém-encontrada independência que ela estava saboreando depois de uma vida em lares adotivos. Tinha custado a ela sua autoestima. Cada toque do telefone parecia anunciar outra amizade, perdida. Uma amiga do 10º ano ligou para perguntar: Como você pode mentir sobre uma coisa dessas? Marie – este é seu nome do meio, Marie- não disse nada. Ela apenas escutou, então desligou. Mesmo seus pais adotivos agora duvidavam dela. Ela duvidava dela, perguntando-se se havia algo nela que precisasse ser consertado.
Enquanto a adolescente vivia esse calvário, o criminoso continuava agindo, seguindo o mesmo modus operandi, deixando pouquíssimos rastros forenses, mas também se beneficiando de um sistema de investigação policial que, em pleno século XXI, deixa muito a desejar.
Ao longo da série, as falhas de um sistema que negligencia crimes sexuais são expostas. Mesmo com o advento do exame de DNA, com as facilidades trazidas pela Internet, o criminoso se aproveitava das falhas da polícia para atacar impunemente.
Mas, além das falhas óbvias apresentadas, o descaso com que as mulheres vítimas de violência sexual são tratadas fica evidente. Percebe-se que, em casos de violência sexual, a vítima é mais investigada pela polícia do que o crime em si.
Mesmo com sistemas informatizados, a falta de comunicação entre as milhares de delegacias que integram um país facilita a vida de criminosos seriais, que se deslocam de uma cidade a outra e dificilmente são pegos. A falta de estudo dos milhares de inquérito arquivados sem solução também são uma falha grave; cada inquérito arquivado sem solução é um criminoso que deixou de ser processado, e eventualmente está livre para agir de novo.
Enfim, tomar conhecimento da história de Marie Adler é doloroso, mas necessário, para repensar um sistema judicial que se preocupa mais com crimes patrimoniais do que com crimes que ofendem a dignidade sexual. Deve-se repensar um sistema que arquiva milhares de inquéritos sem resolutividade, deixando vítimas eternamente traumatizadas e com o amargo gosto da impunidade de um sistema judicial que tem muito a evoluir.
O criminoso, posteriormente condenado a 327 e ½ anos de cadeia, só foi encontrado, processado e condenado pela persistência de duas detetives: Edna Hendershot e Stacy Galbraith. Em 2011, Galbraith teve a incumbência de investigar um caso de estupro de uma jovem mulher. O criminoso usara luvas, máscara, tivera todo o cuidado de não deixar rastros, e ainda tirara fotos de sua vítima. Ao compartilhar suas dúvidas com seu marido, também policial, ele lhe dissera que em sua delegacia tiveram um caso semelhante. Galbraith então conheceu Edna Hendershot; a parceria entre as duas equipes levou ao criminoso e a mais vítimas.
Depois de meses de rigorosas investigações, as duas equipes, verificando tratar-se de um criminoso serial, pesquisaram todas as denúncias de estupro não solucionadas nas cidades e distritos ao redor. Assim, encontraram mais vítimas, mais detalhes, chegando finalmente ao criminoso.
Marie só foi contatada pela equipe quando encontraram sua foto no computador do criminoso. Somente aí, três anos depois de seu ataque e de ser processada, a jovem finalmente teve justiça. Marie ganhou uma quantia razoável por danos morais; não obstante a repercussão alcançada pelo caso, os dois detetives que duvidaram da moça e ainda a processaram por denunciação caluniosa seguem trabalhando como policiais, sem nenhuma punição.
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REFERÊNCIAS
INACREDITÁVEL. Disponível no streaming Netflix. Criadores: Susannah Grant, Ayelet Waldman, Michael Chabon. Drama. 2019.
MILLER, T. Christian. PROPUBLICA. ARMSTRONG, Ken. AN UNBELIEVABLE STORY OF RAPE. Publicada na página Propublica em 16 de dezembro de 2015.
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Por Maria Carolina de Jesus Ramos
Especialista em Ciências Penais. Advogada.
Fonte: Canal Ciências Criminais
A garota de 18 anos morava sozinha em um apartamento, como participante de um projeto que auxiliava jovens sem família, como ela. Ela havia sido tirada de sua mãe biológica por negligência, já havia sofrido violência sexual aos sete anos, havia passado por algumas famílias adotivas, enfim, já vinha de uma situação de sucessivos traumas.
Atacada por um criminoso expert em não deixar rastros de DNA, dentro de seu próprio apartamento, a moça chama a polícia imediatamente. Mesmo com o exame de corpo de delito realizado, com feridas no corpo que dificilmente poderiam ser auto-infligidas, a moça é desacreditada completamente pelos dois detetives responsáveis pelo caso. As próprias “mães” temporárias não acreditaram; uma delas chega a procurar a polícia para dizer que a menina era “problemática”, “fazia tudo para chamar a atenção”.
Confrontada pelos policiais, sem um suporte familiar, de amigos e mesmo de um advogado, a adolescente não sabe o que fazer. Sofrendo pelos traumas da violência sexual, sem apoio psicológico e jurídico, sem família nem amigos, ela retira a queixa apresentada. Então, a polícia a processa por denunciação caluniosa, um crime que em seu Estado poderia levar ao cumprimento de até um ano de cadeia. Pouquíssimas pessoas são processadas por denunciação caluniosa, então o caso da jovem chamou atenção:
"She was 18 years old, charged with a gross misdemeanor, punishable by up to a year in jail.
Rarely do misdemeanors draw notice. Her case was one of 4,859 filed in 2008 in Lynnwood Municipal Court, a place where the judge says the goal is ‘to correct behavior — to make Lynnwood a better, safer, healthier place to live, work, shop and visit.’
But her misdemeanor had made the news, and made her an object of curiosity or, worse, scorn. It had cost her the newfound independence she was savoring after a life in foster homes. It had cost her sense of worth. Each ring of the phone seemed to announce another friendship, lost. A friend from 10th grade called to ask: How could you lie about something like that? Marie — that’s her middle name, Marie — didn’t say anything. She just listened, then hung up. Even her foster parents now doubted her. She doubted herself, wondering if there was something in her that needed to be fixed.” (MILLER, ARMSTRONG, PROPUBLICA, 2015).
Em tradução livre:
"Ela tinha 18 anos de idade, acusada de contravenção grave, punível com até um ano de cadeia.
Raramente contravenções atraem atenção. O caso dela era um de 4.859 apresentados em 2008 na Corte Municipal de Lynnwood, um lugar onde o juiz diz que a meta é ‘corrigir comportamento – para fazer de Lynnwood um lugar melhor, mais seguro, mais saudável para viver, trabalhar, comprar e visitar’.
Mas a contravenção dela havia feito notícia, e feito dela um objeto de curiosidade, ou, pior, escárnio. Tinha custado a ela a recém-encontrada independência que ela estava saboreando depois de uma vida em lares adotivos. Tinha custado a ela sua autoestima. Cada toque do telefone parecia anunciar outra amizade, perdida. Uma amiga do 10º ano ligou para perguntar: Como você pode mentir sobre uma coisa dessas? Marie – este é seu nome do meio, Marie- não disse nada. Ela apenas escutou, então desligou. Mesmo seus pais adotivos agora duvidavam dela. Ela duvidava dela, perguntando-se se havia algo nela que precisasse ser consertado.
Enquanto a adolescente vivia esse calvário, o criminoso continuava agindo, seguindo o mesmo modus operandi, deixando pouquíssimos rastros forenses, mas também se beneficiando de um sistema de investigação policial que, em pleno século XXI, deixa muito a desejar.
Ao longo da série, as falhas de um sistema que negligencia crimes sexuais são expostas. Mesmo com o advento do exame de DNA, com as facilidades trazidas pela Internet, o criminoso se aproveitava das falhas da polícia para atacar impunemente.
Mas, além das falhas óbvias apresentadas, o descaso com que as mulheres vítimas de violência sexual são tratadas fica evidente. Percebe-se que, em casos de violência sexual, a vítima é mais investigada pela polícia do que o crime em si.
Mesmo com sistemas informatizados, a falta de comunicação entre as milhares de delegacias que integram um país facilita a vida de criminosos seriais, que se deslocam de uma cidade a outra e dificilmente são pegos. A falta de estudo dos milhares de inquérito arquivados sem solução também são uma falha grave; cada inquérito arquivado sem solução é um criminoso que deixou de ser processado, e eventualmente está livre para agir de novo.
Enfim, tomar conhecimento da história de Marie Adler é doloroso, mas necessário, para repensar um sistema judicial que se preocupa mais com crimes patrimoniais do que com crimes que ofendem a dignidade sexual. Deve-se repensar um sistema que arquiva milhares de inquéritos sem resolutividade, deixando vítimas eternamente traumatizadas e com o amargo gosto da impunidade de um sistema judicial que tem muito a evoluir.
O criminoso, posteriormente condenado a 327 e ½ anos de cadeia, só foi encontrado, processado e condenado pela persistência de duas detetives: Edna Hendershot e Stacy Galbraith. Em 2011, Galbraith teve a incumbência de investigar um caso de estupro de uma jovem mulher. O criminoso usara luvas, máscara, tivera todo o cuidado de não deixar rastros, e ainda tirara fotos de sua vítima. Ao compartilhar suas dúvidas com seu marido, também policial, ele lhe dissera que em sua delegacia tiveram um caso semelhante. Galbraith então conheceu Edna Hendershot; a parceria entre as duas equipes levou ao criminoso e a mais vítimas.
Depois de meses de rigorosas investigações, as duas equipes, verificando tratar-se de um criminoso serial, pesquisaram todas as denúncias de estupro não solucionadas nas cidades e distritos ao redor. Assim, encontraram mais vítimas, mais detalhes, chegando finalmente ao criminoso.
Marie só foi contatada pela equipe quando encontraram sua foto no computador do criminoso. Somente aí, três anos depois de seu ataque e de ser processada, a jovem finalmente teve justiça. Marie ganhou uma quantia razoável por danos morais; não obstante a repercussão alcançada pelo caso, os dois detetives que duvidaram da moça e ainda a processaram por denunciação caluniosa seguem trabalhando como policiais, sem nenhuma punição.
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REFERÊNCIAS
INACREDITÁVEL. Disponível no streaming Netflix. Criadores: Susannah Grant, Ayelet Waldman, Michael Chabon. Drama. 2019.
MILLER, T. Christian. PROPUBLICA. ARMSTRONG, Ken. AN UNBELIEVABLE STORY OF RAPE. Publicada na página Propublica em 16 de dezembro de 2015.
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Fonte: Canal Ciências Criminais
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