Pode o policial atender o celular da pessoa detida? (Parte 2) – Por Leonardo de Tajaribe da Silva Jr.

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Em ocasião pretérita tivemos a oportunidade de apresentar e analisar decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça, no HC nº 446.102/SC, proferida em junho de 2019, na qual o Tribunal Superior decidiu que, no contexto de operações policiais, havendo “escorreito procedimento policial apto a legitimar a ação”, o agente policial operador poderá atender ligações telefônicas dirigidas ao telefone celular da pessoa detida.

O caso tratado perfazia-se em operação policial procedida em ponto no qual estaria se dando a venda de drogas e, chegando até certa localidade, determinado sujeito teria empreendido fuga, tendo os policiais obtido êxito em captura-lo, atendendo chamada telefônica veiculada a seu celular, razão pela qual conseguiram capturar também outra agente criminosa e apreender vasto material entorpecente.

Superadas as recordações necessárias, imperioso se faz mencionar que, na ocasião da explanação anterior acerca do mencionado, discordamos da posição adotada pela Corte Cidadã no sentido de permitir a invasão de privacidade e quebra do sigilo telefônico perpetrada no atendimento de ligações telefônicas dirigidas a sujeito que se encontra em situação de flagrância.

Invocamos, a título de aprofundamento lógico, a comparação entre o meio de comunicação por cartas e as ligações telefônicas, questionando a razão pela qual as Cortes Superiores protegem o primeiro a título quase absoluto, protegendo o sigilo daquelas, e abrem exceções quando a estas, sobretudo na situação que se extrai da decisão comentada, em que criou-se uma espécie de “estado de sítio” no território em que está ocorrendo operações policiais, afastando-se postulados normativos e constitucionais em prol da perseguição de criminosos.

À vista disso, a mesma Corte Superior, em 15/08/19, no Habeas Corpus nº 511.484/RS, apreciou matéria semelhante, a qual segue ementada:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. ILICITUDE DA PROVA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO PESSOAL OU JUDICIAL PARA ACESSAR DADOS DO APARELHO TELEFÔNICO APREENDIDO OU PARA ATENDER LIGAÇÃO. POLICIAL PASSOU-SE PELO DONO DA LINHA E FEZ NEGOCIAÇÃO PARA PROVOCAR PRISÃO EM FLAGRANTE. INEXISTÊNCIA DE PROVA AUTÔNOMA E INDEPENDENTE SUFICIENTE PARA A CONDENAÇÃO. 1. Não tendo a autoridade policial permissão, do titular da linha telefônica ou mesmo da Justiça, para ler mensagens nem para atender ao telefone móvel da pessoa sob investigação e travar conversa por meio do aparelho com qualquer interlocutor que seja se passando por seu dono, a prova obtida dessa maneira arbitrária é ilícita. 2. Tal conduta não merece o endosso do Superior Tribunal de Justiça, mesmo que se tenha em mira a persecução penal de pessoa supostamente envolvida com tráfico de drogas. Cabe ao magistrado abstrair a prova daí originada do conjunto probatório porque alcançada sem observância das regras de Direito que disciplinam a execução do jus puniendi. 3. No caso, a condenação do paciente está totalmente respaldada em provas ilícitas, uma vez que, no momento da abordagem ao veículo em que estavam o paciente, o corréu e sua namorada, o policial atendeu ao telefone do condutor, sem autorização para tanto, e passou-se por ele para fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante. Esse policial também obteve acesso, sem autorização pessoal nem judicial, aos dados do aparelho de telefonia móvel em questão, lendo mensagem que não lhe era dirigida. 4. O vício ocorrido na fase investigativa atinge o desenvolvimento da ação penal, pois não há prova produzida por fonte independente ou cuja descoberta seria inevitável. Até o testemunho dos policiais em juízo está contaminado, não havendo prova autônoma para dar base à condenação. Além da apreensão, na hora da abordagem policial, de cocaína (2,8 g), de maconha (1,26 g), de celulares e de R$ 642,00 (seiscentos e quarenta e dois reais) trocados, nada mais havia no carro, nenhum petrecho comumente usado na traficância (caderno de anotações, balança de precisão, material para embalar droga, etc.). Somente a partir da leitura da mensagem enviada a um dos telefones e da primeira ligação telefônica atendida pelo policial é que as coisas se desencadearam e deram ensejo à prisão em flagrante por tráfico de drogas e, depois, à denúncia e culminaram com a condenação. 5. Ordem concedida para anular toda a ação penal. (grifo nosso)

Conforme se extrai da ementa da decisão, o distinguishing encontrado no embate entre esta decisão recente e a anteriormente por nós apreciada está na ação do agente policial em, no presente caso, atender a ligação telefônica do celular da pessoa detida, se passando por esta, passando a preparar a situação de flagrância que culminou na prisão deste por tráfico ilícito de entorpecentes.

Portanto, tendo em vista a conduta invasiva do agente de segurança pública, a Corte Superior decidiu pela ilicitude das provas e anulação de toda a ação penal, considerando que as provas obtidas o foram por meio da infração de postulados constitucionais, eis que mediante invasão de privacidade e quebra de sigilo, além de preparar uma situação de flagrante, em desacordo com o verbete sumular nº 45 do Excelso Pretório.

Neste contexto, o STJ entendeu, acertadamente, que até o momento do flagrante preparado pelos policiais não havia provas que poderiam ser obtidas por fontes independentes e aptas a corroborar a condenação dos acusados, bem como a contaminação do depoimento dos policiais, que não poderia ser renovado em caso de anulação apenas do ato instrutório no curso do processo.

Ante os argumentos expostos no acórdão proferido e considerando a aplicação de todos os princípios normativos e constitucionais, a decisão mostra-se acertada, portanto.

Entretanto, a título de provocação, oportunizaremos um debate entre a situação fática apreciada no artigo e a presente.

Na situação anterior, decidida no HC 446.102/SC, o agente teria sido capturado no curso de operação policial em comunidade dominada pelo tráfico de drogas, em ponto no qual estaria ocorrendo a venda de drogas, trazendo junto a si vasto material entorpecente. No momento de sua imobilização, seu celular toca e o agente policial atende, ocasião em que teria escutado uma mulher dizer para o dono do celular se “livrar” do “bagulho” e que a encontrasse em outra localidade, próxima daquela.

Chegando ao local indicado, os policiais teriam encontrado a mencionada mulher, que levou a equipe até sua casa, onde estaria depositada grande quantidade de material entorpecente.

No caso em tela, a Corte Superior entendeu que a conduta de atender o telefone celular do agente detido é lícita, visto que no curso de “escorreito procedimento policial”, apto a legitimar a ação, conforme alhures mencionado, mesmo que esta conduta tenha promovido a prisão em flagrante de mais um suspeito de tráfico bem como a descoberta de vasto material probatório.

Ante isto, consideramos que a situação fática discutida no HC nº 511.484/RS mostra-se consideravelmente diferente pois, na ocasião, até o momento da invasão de privacidade promovida pelo agente policial, não haviam elementos aptos a corroborar o flagrante por tráfico de drogas, visto que sujeito teria sido surpreendido numa abordagem de rotina, com pouca quantidade de entorpecentes e sem apetrechos que indicassem a traficância, apesar de ter consigo quantidade de dinheiro em pequenas cédulas, o que poderia caracterizar a mencionada conduta delituosa.

Destarte, a descoberta de provas se desencadeou após o atendimento de ligação telefônica no celular do sujeito abordado sem a autorização deste, o que acarretou a ilicitude probatória dos elementos colhidos.

Conquanto, encontramos situação semelhante no caso pretérito, em que a segunda agente abordada, sob a qual foi encontrado vasto material entorpecente em depósito, só foi localizada e capturada, bem como o material apreendido, após o policial atender o celular do agente detido que, apesar de, este sim, estar em situação de flagrância por tráfico de drogas, não justificaria a invasão de sua privacidade sem autorização, independentemente de a situação caracterizar ou não interceptação telefônica ou conduta correlata.

Diante disso, concluímos pelo acerto da recente decisão emanada da Corte Cidadã, considerando a ilicitude das provas obtidas após o acesso a dados telefônicos e atendimento de ligações sem a autorização do proprietário e em desacordo com determinação legal ou jurídica, cabendo ressaltar que o sigilo das comunicações telefônicas é garantia valiosa do Estado Democrático de Direito, não devendo ser flexibilizado por motivos de “perseguição de criminosos”, sob pena de flagela dos institutos constitucionais pátrios.
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Por Leonardo de Tajaribe da Silva Jr.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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