O clique de “Parasita” e alguns traços da culpabilidade

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bit.ly/2WLYhmO | Dentre as tantas abordagens possíveis em “Parasita”, uma daquelas que diz respeito e pode interessar às discussões acadêmico-forenses é o homicídio praticado pelo pai da família “parasitária” contra o pai da família rica e bem abastada.

A notória tensão entre as classes, perceptível durante todo o desenrolar da trama, culmina num estopim que surpreende o espectador, pois o crime que acontece durante a festa de aniversário contra o empresário dono da casa pode ser analisado e compreendido por diversas formas, mas jamais pode se dizer que se tratou de algo premeditado.

O que levou o pai largar a filha que sangrava e agonizava no chão para avançar contra o patrão? Havia algum motivo explicável (que não justificável) que culminou no trágico homicídio por muitos presenciado numa festa infantil? Há algo que pode ser apontado como o fator determinante que levou à prática do ato?

Pela ótica do Direito, talvez fosse o caso de analisar o crime com enfoque na questão da culpabilidade, não apenas no sentido do juízo de reprovação que recai sobre o agente, mas enquanto no aspecto do fator biopsicológico presente que aos poucos se desdobrou até que se tenha aquela virada de chave que resulta na prática do ato.

O clique do qual aqui se fala é o momento em que a coisa toda muda, o instante em que o motorista acaba por avançar contra o seu patrão, vindo a matá-lo. Há a virada de algo aí, nessa cena, que representa o estopim de todo um algo, do explodir de uma tensão acumulada, do exaspero de um ódio que se vinha nutrindo. A questão a ser indagada, portanto, se dá para com esse ato que, por mais abrupto tenha sido, parece conter alguma coisa além de uma infeliz decisão de momento.

No campo da culpabilidade enquanto elemento dogmático da teoria do crime, tem-se de maneira geral que se trata do juízo de reprovação que se faz para com relação a conduta praticada pelo sujeito. O elemento da culpabilidade, com todos os seus requisitos, deve estar presente para que se possa falar em crime.

No juízo de culpabilidade, há de observar se presentes estão as condições no sentido de se estabelecer que o agente poderia ter agido de forma diferente daquela que agiu, de modo que, em assim sendo, é possível atribuir a culpabilidade à situação em análise.

O que acaba então por fundar o aspecto da culpabilidade são fatores psíquicos e biológicos que, presentes da forma como compreendidos pela dogmática penal, permitam que o agente aja de forma diferente daquela proibida pela norma penal, de modo que em se tendo numa situação concreta que o sujeito poderia ter agido de modo diferente, mas ainda assim incorreu na conduta proibida, haverá aí uma relação linear do agente com a conduta por si praticada, pois preenchido esse elemento da culpabilidade.

No campo da dogmática brasileira, adota-se a teoria normativa pura da culpabilidade, essa que é composta por elementos valorativos exclusivamente definidos pela própria norma, os quais são elencados a partir de fatores de ordem psíquica e biológica. É daí que se estabelecem então os seus elementos como o potencial conhecimento da ilicitude, a exigibilidade de conduta diversa e a imputabilidade.

No caso do crime em comento em “Parasita”, indaga-se se todos esses fatores estão preenchidos, devendo o agente responder pelo crime praticado, de modo que a culpabilidade apareceria como elemento medidor da pena ao considerar todo o contexto trazido no filme, ou se restaria ausente um desses elementos, restando prejudicada a própria definição do ato enquanto crime.

Parece um pouco forçoso dizer que a imputabilidade do motorista estaria ausente quando da prática do ato, por ter “saído de si” no momento em que avançou contra o seu patrão. De todo modo, somente uma avaliação clínica para determinar a saúde mental do agente quando do crime poderia determinar a possibilidade de um argumento nesse sentido. O caminho apontado para tratar da questão aqui, porém, é outro. Diz-se da culpabilidade enquanto elemento medidor da pena.

Se não se pode dizer que o agente deveria ser isento de pena por ter matado o seu chefe, de igual modo não se diz quando a questão é considerar as circunstâncias do crime para que se tenha uma dosimetria de pena adequada.

O clique é algo que fica bastante claro na película. Possui ligação com o cheiro. A forma com a qual o patrão lida com odor das pessoas de classe social mais baixa por um motivo determinado. Essa tratativa para com o cheiro também é algo que se percebe pelo desenrolar da história. Vai evoluindo até que a coisa explode.

O fato é que não se pode deixar de se questionar a questão em análise frente ao mal-estar na cultura, afinal, quanto existe de inumano na ciência e seus fins? Se tem algo necessário para que a Psicologia seja aplicada devidamente é o levantamento da queixa. Como dito, “Parasita” se mostra do início ao fim com problemáticas infinitas, escolhendo-se aqui trabalhar a violência como um sintoma.

Quando se analisa um indivíduo, é necessária toda uma anamnese para que o mínimo dele seja compreendido. No filme em análise, a família protagonista se encontra em notória situação de vulnerabilidade: todos os seus integrantes estão desempregados e residem em um pequeno porão, cujos cuidados de higiene são precários – isso fica evidente na cena em que é realizada a dedetização na rua e a ordem do pai é que as janelas fiquem abertas para que não precisem gastar com serviço de extermínio de pragas, expondo assim a saúde de todos os integrantes familiares. As tentativas de lidar com a situação não alcançam sucesso e as opções vão se fechando.

O sentimento vivenciado pelo pai é o de fracasso com sua família. O mercado de trabalho é disputado e parece não haver espaço para alguém de sua idade, o que pode ter despertado um sentimento de “inutilidade social”. Se nesse momento fosse aplicado um simples questionário de saúde mental, seria possível concluir que o mesmo estaria baixo.

Em poucos momentos se observa os sentimentos vivenciados pelo pai protagonista sendo exteriorizado, e quando expostos assim o são em forma de discussão. Não existe a construção de um diálogo sobre o que se sente internamente.

Diz-se, então, de sintomas contemporâneos, de patologias do ato, entre outras expressões, para indicar a característica peculiar desses sintomas que resistem ao trabalho que usa a palavra, diferentemente da época freudiana. São os sintomas próprios de um mal-estar subjetivo que supõe evitar o conflito interior por meio do não-exercício do pensamento, mesmo que manifestos por sujeitos que tenham condições de pensar. Como é bem conhecido, nessas formas sintomáticas têm sido incluídas as anorexias, bulimias, toxicomanias, mas, também, a violência (FERRARI, 2006, p.53).

A violência da qual aqui se diz é aquela que se externaliza nas mais diversas formas – física, verbal, psicológica, entre outras. Não se pauta aqui uma definição do que efetivamente vem a ser, mas apontar para um possível motivo que faz com que ela aconteça.

Para a Psicanálise, a violência é entendida como um sintoma, afinal, vive-se em busca do prazer (prazer aqui entendido não como uma fonte sexual no sentido estrito do termo, mas sim como uma fonte de bem estar, algo que lhe traga boas sensações), e quando não é possível acessá-lo, quando não se tem mais alegria, felicidade, satisfação, age-se para combater aquilo que impede a intenção/princípio do prazer, surgindo aí uma necessidade por verdade – algo como “não suporto conviver sem algo que me proporcione prazer”.

Essa dinâmica funcional da psique pode ser observada a partir do filme em comento: um desconhecido mata a filha do motorista protagonista, a qual pode ser entendida como uma fonte de alegria para o pai, vindo esse a reagir com violência. A violência nesse caso foi uma reação não ao agressor de sua filha, mas direcionada a outro fator que lhe impedia de desfrutar efetivamente dos benefícios de trabalhar para uma família de classe alta – aqui visto como outra fonte de alegria.

É que o motorista flagrou num momento anterior uma conversa entre seus patrões, na qual havia um reclamo sobre o cheiro do funcionário, referenciando-o não de forma positiva, mas sim dito com desdém. Essa manifestação com relação ao cheiro acarretou num nítido impacto para com o pai protagonista, uma vez que desde quando ouviu o diálogo de seu chefe, passou a se preocupar e se sentir incomodado com o odor que seu corpo exalava.

Não por menos o clique que culminou no crime teve o cheiro como fator que o desencadeou, pois enquanto o motorista buscava conter o sangramento de sua filha que estava ao chão em prantos, visualizou o seu rico patrão torcer o nariz para o corpo de outra pessoa da mesma classe social que a família parasitária – numa nítida demonstração de nojo para com o odor.

Todo aquele incômodo sobre o seu próprio cheiro que vinha sofrendo, toda aquela preocupação pela qual estava passando veio então à tona naquele exato momento em que o fator odor fez com que a chave fosse virada, num rompante de violência que de um segundo para outro se fez presente, impossibilitando que qualquer estrutura psíquica do sujeito contivesse aquela explosão.

É nesse sentido que se aponta para a compreensão da violência como um sintoma – sendo entendido como absolutamente qualquer forma pela qual possa ser manifestado (dor de cabeça, febre, coceira…) –, não dependendo de normas, leis ou qualquer estruturação cívica para existir. Ela existe para expressar algo que não caminha na sua estrutura natural.

Assim como uma baixa em hormônios de serotonina pode resultar em uma depressão, a falta de recompensas esperadas, por assim dizer, pode resultar em comportamentos de agressividade, o que pode se dar pelos mais diversos motivos, como por exemplo a baixa renda mensal, a ausência de equilíbrio hormonal, um término de relacionamento ou uma perda familiar.

Obviamente não se está a dizer que a violência é necessária ou justificável nesse contexto. Pelo contrário. Busca-se mencionar brevemente o que pode ser que a ocasiona e quais são suas consequências a fim de promover, quiçá, uma melhor análise no âmbito da culpabilidade do sujeito, pautando “Parasita” como objeto dessa rápida abordagem.

A fala é um método para identificar os adoecimentos psíquicos e emocionais, criando-se a partir disso estratégias para a busca da melhoria da qualidade de vida. No caso do crime aqui exposto em “Parasita”, esse método poderia fornecer melhores detalhes para que quando da análise da culpabilidade – enquanto medidor da pena (presente em todas as fases da dosimetria) – uma reprimenda mais condizente com o fato em todas as circunstâncias fosse estabelecida.
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REFERÊNCIAS

FERRARI, Ilka Franco. Agressividade e violência. Psicol. clin.,  Rio de Janeiro ,  v. 18, n. 2, p. 49-62, 2006. Disponível aqui.
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Paulo Silas Filho
Mestre em Direito. Especialista em Ciências Penais. Advogado.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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