Relatos de um Jovem Advogado: o dia em que o crime tentou corromper o criminalista

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bit.ly/3dvgWcM | Antes mesmo de sair da faculdade já era comum ouvir dos professores e colegas de estágio que a advocacia criminal não é fácil, não só em razão do nível de stress que a profissão pode gerar, mas também por haver risco à integridade física daquele que representa acusados de cometerem delitos.

Ao ouvir tais recomendações, sempre indagava: “basta tratar o cliente com seriedade, não abrindo brechas para intimidade com aquele que te contrata, correto?”. Nunca me responderam com situações concretas, em como lidar com abordagens incomuns daqueles que procuravam um advogado criminalista.

Também nunca imaginei uma situação em que encontraria dificuldades em seguir isento na carreira profissional. Pois é, pra isso houve uma primeira vez.

Recém formado, com poucos clientes (sendo a maioria da área cível, daquelas causas que você pega enquanto a matéria que escolheu para seguir carreira não sustenta seus boletos), começaram a aparecer oportunidades de comparecer aos presídios para prestar algum tipo de serviço ao preso. Passar informações do processo, diligenciar junto à equipe médica um possível atendimento, despachar com o Diretor da Unidade Prisional a respeito de alguma questão administrativa, enfim, diligências cabíveis ao advogado no exercício de sua função.

Porém, houve uma oportunidade que realmente mexeu comigo, não tive frieza o suficiente para separar a faceta profissional da faceta pessoal, íntima.

Certa vez, ainda com poucos meses de formado, uma senhora entra em contato por telefone, tendo informado que pegou meu cartão com uma outra cliente que havia visitado seu familiar preso. A ligação cai. Na ânsia pela captação de clientes, retorno o telefonema. A senhora se identifica como esposa de um interno, informando que tinha acabado de visitar seu companheiro e este pediu para que um advogado o procurasse, haja vista ter interesse nos serviços.

Até aí tudo bem. No dia seguinte (sim, no dia seguinte, haja vista que em início de carreira a agenda possui mais espaço em branco do que compromissos marcados), repleto de esperança em fechar contrato com um cliente na área criminal, área que tanto me fascina e que possivelmente iria me render futuras indicações (um bom serviço prestado ao detento certamente rende indicações aos colegas de cela), me dirijo até a unidade prisional em que o companheiro da senhora estava preso preventivamente.

Após quase uma hora de espera (tempo relativamente normal para os presídios capixabas), sou informado pelos agentes penitenciários que já poderia conversar com o preso. Entro. Parlatório dividindo o espaço de advogado e cliente. Tal situação já não me era estranha, haja vista não ser a primeira vez que visitava um preso. O estranho foi o que se passou a seguir.

Tiro o telefone do gancho e o potencial cliente, falando de maneira formal, demonstrando ter boa instrução (depois descobri que ele já havia cursado Direito), me aborda com o seguinte relato: “Doutor, primeiramente bom dia. Preciso te avisar que já tenho advogada trabalhando em meus processos.” Bom, depois dessa fala pensei, “deve estar querendo trocar de advogado, não está satisfeito com o patrono atual, vejamos o que mais ele tem a dizer”. Então o interno continuou: “A Doutora é muito competente, não tenho interesse na retirada dela dos processos”. Isso me causou estranheza mas não fazia ideia do que viria a seguir: “Preciso de um advogado para passar uns recados, manter meus negócios na rua funcionando”.

Bom, até mesmo para os péssimos entendedores essa frase é suficiente para elucidar tudo. O potencial cliente não estava atrás de advogado para cuidar da sua situação jurídica/processual, mas sim para cuidar de seus “negócios” ilícitos. Neste momento, as atitudes que me imaginava fazendo não se consolidaram. Aquela segurança em negar imediatamente a abordagem daquele que visitava não transpareceu.

Não consegui cessar a conversa, estava surpreso, nervoso e principalmente, com medo. O preso informou que era carioca, integrante do Comando Vermelho (facção criminosa que se disseminou no Rio de Janeiro), sendo ele um dos líderes do movimento no Estado vizinho.

Talvez essa informação tenha me abalado, jamais imaginei que estaria frente a frente com um membro de organização criminosa tão conhecida pela polícia e mídia nacional. Pior, jamais imaginei que seria convocado a participar das atividades ilícitas cometidas por ele.

O preso informou que a função seria simples: bastaria anotar recados e repassar a um de seus colegas na “rua”. Até sugestionou como deveriam ser as anotações para dificultar o trabalho investigativo em caso de flagrante: “Ao invés de mandar pegar armas em determinado local, você pode escrever assim: manda o pessoal jogar uma bola no campo de tal Bairro.”

Era isso, fui chamado na unidade prisional para prestar um serviço de “pombo correio do tráfico”. Salário: R$1.500,00 para comparecer 8x por mês na unidade prisional. O valor pode parecer módico frente a advogados bem sucedidos ou com carreira relativamente engajada, porém, para um jovem advogado pode representar a tão sonhada estabilidade financeira. Tanto é verdade que aquele cliente em potencial informou que já tinha conversado com outros jovens advogados a respeito da proposta, significando que tinha consciência de que advogados em início de carreira são mais suscetíveis a tal abordagem, deixando os advogados mais experientes para cuidarem da parte lícita, ou seja, defesa técnica no processo penal.

Jordan, você negou a proposta e nunca mais voltou a visita-lo, correto? Errado. Lembra do medo que me paralisou? Me impediu de falar o NÃO que já tinha imaginado e ensaiado tantas vezes nos bancos da graduação. Disse que iria avaliar a proposta e retornaria assim que conversasse com meu sócio a respeito. Na época eu nem tinha sócio, sequer possuía escritório, tudo o que eu queria era sair daquele parlatório, respirar.

Prometi que retornaria na semana seguinte para responder à proposta que me foi oferecida (apesar de não ter sido ameaçado em nenhum momento, o medo que sentia me fez pensar que era meu dever dar uma satisfação ao presidiário) . Retornei numa quarta-feira de cinzas, não consegui esperar o dia útil para me livrar daquela situação. Voltei à unidade prisional e disse que em avaliação conjunta com meu sócio entendemos não ser viável aceitar aquele tipo de serviço, em razão da política que tínhamos adotado em nosso escritório.

O interno, de maneira gentil (se é que posso utilizar essa palavra neste contexto), agradeceu e disse que tentaria contato com outro advogado, para novamente oferecer a proposta.

Foi assim, uma experiência que já tinha imaginado no plano abstrato, porém, quando me vi diante da situação, “tremi”. É fato que profissionais realizam serviço de “leva e traz” para detentos (qualquer pesquisa no Google já revela isso), não sendo improvável que um jovem advogado, sufocado pela competição dos demais colegas, sucumba a tal abordagem.

Tirei tudo isso como aprendizado, lição de como as coisas acontecem na vida real. Não é fácil começar uma carreira sozinho, sem muitos contatos, porém, preferi persistir no caminho da ética profissional. Além da lisura frente às autoridades que investigam delitos, dinheiro nenhum compensaria a paz interior que me seria tirada.

Pra finalizar, pode surgir a pergunta: “Jordan, você denunciou essa situação, correto?”. Infelizmente não. O medo novamente me consumiu, provocar investigação para aquele preso em específico poderia me colocar em risco, já que tanto o interno quanto sua esposa (que possuía meu cartão) poderiam vincular aquela investigação a mim.

Disso tudo, fica o alerta para jovens advogados. Situações embaraçosas irão surgir, que este relato sincero sirva de preparo àqueles que estão iniciando na advocacia criminal.

Por fim, preciso registrar que não podemos confundir a situação narrada com o direito do preso em ser submetido a um processo justo, imparcial. Seja qual for o crime imputado ao cliente, nada afasta a ampla defesa como garantia constitucional necessária ao devido processo legal. Aqueles que insistem em cometer delitos devem ser punidos? Certamente. Porém, tal punição deve ser resultado de um julgamento sem abusos, em observância às regras do jogo.
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Jordan Tomazelli Lemos
Advogado Criminalista. Mestrando em Direito Processual pela UFES.
Advogado. Bacharel em Direito e Mestrando em Direito Processual, ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro da Comissão de Advocacia Criminal e Políticas Penitenciárias na OAB/ES.
Fonte: jordantomazelli.jusbrasil.com.br

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