Inexigibilidade de licitação para contratação de advogado

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bit.ly/3gaFnw9 | A interpretação combinada dos artigos 25, inciso II, e 13, inciso V, da Lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações) autoriza, em caráter excepcional, a contratação de serviços técnicos advocatícios, por meio de procedimento de inexigibilidade de licitação, para patrocínio de questões de interesse da Administração Pública, nas quais o objeto seja singular e o advogado ou a sociedade de advogados a ser contratada ostente notória especialização.

Desse modo, em situações particularizadas que exigem elevado grau de expertise profissional, de relevante interesse para determinado órgão público, justifica-se tal contratação para patrocínio numa determinada demanda ou mesmo para assessoria jurídica específica.

No entanto, a ausência de previsão legal expressa quanto à singularidade do exercício profissional tem ensejado interpretações desfocadas, que geram certo desconforto aos advogados e, até mesmo, violação às suas prerrogativas profissionais. Não raro, deparamo-nos com o entendimento de que serviços advocatícios, de um modo geral, podem ser efetivados por qualquer profissional inscrito na Ordem dos Advogados, premissa essa que desconhece as múltiplas e complexas áreas do direito, que impõem, atualmente, especialização intelectual e técnica de quem for contratado.

O importante é que o serviço a ser prestado seja realmente singular, específico e relevante!

Esse pressuposto norteia a orientação pretoriana que se encontra sedimentada no Superior Tribunal de Justiça, como se extrai, dentre outros, de recente precedente (DJe 8.5.2020) da 1ª Turma, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.520.982/SP, com voto condutor do ministro Sérgio Kukina, textual:

“É plenamente possível a contratação de advogado particular para a prestação de serviços relativos a patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas sem que para tanto seja realizado procedimento licitatório prévio. Todavia, a dispensa de licitação depende da comprovação de notória especialização do prestador de serviço e de singularidade dos serviços a serem prestados, de forma a evidenciar que o seu trabalho é o mais adequado para a satisfação do objeto contratado, sendo inviável a competição entre outros profissionais”.

Assim sendo, caso não comprovada a especificidade da questão e muito menos a aptidão técnica do prestador do serviço, reputa-se inadequada e ilegal a respectiva contratação, como se infere de julgado da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.838.182/SP (DJe 5.3.2020), da relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, que, desprovendo o recurso, prestigiou o acórdão impugnado, textual:

“Na hipótese dos autos, o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública por ato de improbidade administrativa em face de ex-prefeito do município de Borebi/SP em razão da contratação, por dispensa de licitação, de sociedade de advogados para prestação de serviços técnicos de assessoria e consultoria jurídica do gabinete do prefeito pelo prazo de 30 dias ao valor de R$ 7.800,00 (sete mil e oitocentos reais).

O Tribunal de origem manteve a sentença de parcial procedência ao argumento de que além da inexistência de singularidade no serviço contratado, não houve procedimento administrativo formal, nem se fez pesquisa sobre preço de mercado para o serviço. Por outra, em contraposição à alegação de notória especialização, foi observado que outros escritórios e outros profissionais deteriam a mesma capacidade técnica para prestar os mesmos serviços (fl. 1255e-STJ)

Ademais, está consignado no acórdão recorrido a presença do elemento subjetivo por parte do advogado parecerista, motivo pelo qual foi confirmada a sua legitimidade para compor o polo passivo da demanda”.

Explica, a propósito, Marçal Justen Filho que determinado serviço de advocacia caracteriza-se como singular, a inexigir certame licitatório, em virtude de relevância e peculiaridades próprias, que o diferenciam de outros. No que toca à especialização, consiste ela “na titularidade objetiva de requisitos que distinguem o sujeito, atribuindo-lhe maior habilitação do que a normalmente existente no âmbito dos profissionais que exercem a atividade. Isso se traduz na existência de elementos objetivos ou formais, tais como a conclusão de cursos e a titulação no âmbito de pós-graduação, a participação em organismos voltados a atividade especializada, o desenvolvimento frutífero e exitoso de serviços semelhantes em outras oportunidades, a autoria de obras técnicas, o exercício de magistério superior, a premiação em concursos ou a obtenção de láureas, a organização de equipe técnica e assim por diante” (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 16ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2014, pág. 502).

Nesse mesmo sentido, a 2ª Turma do aludido Sodalício federal, no julgamento do Recurso Especial n. 448.442/MS, relatado pelo ministro Herman Benjamin, averbou que:

"A notória especialização jurídica é aquela de caráter absolutamente extraordinário e incontestável, que fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no ápice de sua carreira e do reconhecimento, espontâneo, no mundo do Direito, mesmo que regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela publicação de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio. A especialidade do serviço técnico está associada à singularidade, envolvendo serviço específico que reclame conhecimento peculiar do seu executor e ausência de outros profissionais capacitados no mercado, daí decorrendo a inviabilidade da competição."

Com efeito, "técnico" e "singular" são aspectos de determinado serviço, enquanto "notória especialização" circunscreve o conhecimento do profissional que irá prestá-lo. Converge nessa mesma direção o enunciado da Súmula 252 do Tribunal de Contas da União, que tem a seguinte redação: “A inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o artigo 25, inciso II, da Lei n. 8.666/93, decorre da presença simultânea de três requisitos: serviço técnico especializado, entre os mencionados no artigo 13 da referida lei, natureza singular do serviço e notória especialização do contratado”.

É de ter-se presente que essa tese, construída ao longo do tempo pela doutrina e pela jurisprudência, foi encampada, mais recentemente, pelo Projeto de lei n. 4.489/2019 do Senado Federal e pelo Projeto de lei n. 10.980/2018 da Câmara dos Deputados. Estas duas propostas legislativas tinham um único escopo, qual seja o de imprimir maior segurança jurídica acerca dessa importante questão, alterando a Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) e o Decreto-lei n. 9.295/46, que dispõem sobre a natureza técnica e singular, respectivamente, dos serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade.

O Projeto da Câmara, subscrito pelo Deputado Efraim Filho, acrescenta os parágrafos 3º e 4º ao artigo 3º da Lei n. 8.906, para dispor sobre a natureza singular e notória especialização dos serviços advocatícios, in verbis:

“Art. 1º Acrescenta-se os seguintes § 3º e § 4º ao art. 3º da Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994:

“Art. 3º...

§ 3º Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização nos termos da Lei.

§ 4º Considera-se notória especialização o profissional ou sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”.

Extrai-se da justificativa apresentada para esta modificação legislativa que: "a atividade advocatícia não pode ser taxada como comum, ordinária ou singela, em nenhuma hipótese, sendo uma atividade de natureza técnica e singular, consubstanciada pela confiança depositada pelo seu constituinte".

Aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado o texto legal para sanção, sobreveio, em 8 de janeiro de 2020, a publicação da mensagem de veto presidencial integral a esse projeto de lei, uma vez que: "viola o princípio constitucional da obrigatoriedade de licitar, nos termos do inciso XXI do artigo 37 da Constituição da República, tendo em vista que a contratação de tais serviços por inexigibilidade de processo licitatório só é possível em situações extraordinárias, cujas condições devem ser avaliadas sob a ótica da Administração Pública em cada caso específico, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (v. g., lnq. 3074-SC, rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, DJe 3.10.2014)".

Na verdade, o projeto de lei então vetado visa, como acima frisado, a tornar expressa a natureza especializada das atividades privativas da advocacia, embora condicionando a respectiva contratação direta pela Administração Pública à comprovação da notória especialização do advogado ou escritório, vale dizer, o efeito prático seria o mesmo da supra referida interpretação, não ensejando, de modo algum, que a contratação de advogado, em regra, efetive-se por inexigibilidade de licitação, circunstância que, de fato, violaria o disposto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal.

Isso significa que, pelo projeto, a exigência de certame licitatório continua sendo respeitada, autorizando-se, contudo, a contratação de advogado ou escritório de advocacia por inexigibilidade de licitação apenas em situações de comprovada excepcionalidade do objeto de determinada questão e, ainda, da indiscutível especialização do profissional ou escritório escolhido.

Retornado o aludido projeto ao Parlamento, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil interveio, com o encaminhamento de missiva aos congressistas, na qual assinalado que, "por não ter sido pacificada a discussão sobre a inerência da singularidade aos serviços advocatícios, muitos profissionais estão sendo condenados pela presença prática de atos de improbidade administrativa, depois de terem celebrado contrato com entes públicos para o simples desempenho de atividades que lhe são próprias, e em hipóteses em que licitação se afigura, por via de regra, patentemente inexigível".

Submetida a análise do veto ao Congresso Nacional, foi ele derrubado, na última quarta-feira (12/8).

Longe de conter inconstitucionalidade, o texto legal a ser agora promulgado, para espancar quaisquer dúvidas, apenas positivou a especificidade dos serviços de advocacia. Não obstante, como não foi introduzida alteração alguma na Lei n. 8.666/93, é certo que o administrador público deverá, caso seja necessária a referida contratação (singularidade), continuar aferindo, com objetividade, a elevada capacidade técnica do profissional que prestará o respectivo serviço (notória especialização).
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José Rogério Cruz e Tucci é sócio do Tucci Advogados Associados; ex-Presidente da AASP; professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP; e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Fonte: Conjur

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