bit.ly/2Q4pwVg | Era um domingo qualquer. Meu celular toca. Do outro lado, meu sogro.
Eu não esperava uma conversa sobre o resultado de algum jogo do campeonato brasileiro. Meu sogro não curte futebol e ele sabe que eu também não. Nossas conversas, geralmente, são sobre as trilhas na Serra da Canastra, cachoeiras, bichos do cerrado e fatos antigos de tempos que eu não vivi, mas que gosto de saber.
A ligação foi rápida. Era apenas para me dizer que um conhecido tinha uma “causa ganha” e estava disposto a dividir com o advogado que a “encarasse” 50% do – possível – valor a ser devolvido.
Puff, pensei. “Causa ganha”. “Encarasse”…
Existe um abismo que separa esse negócio de “causa ganha” e a realidade. Sempre há uma outra versão. Existe um longo caminho até o ganho de causa. Além disso, a causa pode ser perdida mesmo.
Ele me passou o telefone do “possível cliente”.
— “Sr. Edgar” –, complementou meu sogro.
Anotei tudo.
Na segunda-feira de manhã, organizei algumas coisas e liguei para o Sr. Edgar. Com uma voz um pouco rouca, como de quem tinha acabado de acordar, ele disse que poderíamos nos encontrar no período da tarde.
Confirmei o endereço: Rua E, nº 22, Bairro Princesa Isabel.
Peguei meu notebook, alguns papéis em branco, uma caneta esferográfica azul e coloquei na minha pasta. Uma Samsonite preta, de terceira mão e desbotada. Era o que eu tinha.
Nessa época eu já me perguntava se precisava de muita coisa além disso, na verdade.
Rua E, nº 22.
Uma ladeira, um muro alto e o número “22” escrito à mão. Logo abaixo, um pouco borrado, consegui ler a palavra “fundos”. Fazia 37 graus, às 14h em ponto. Eu vestia um terno preto e sapatos por engraxar. Pensei em colocar uma gravata também, mas a essa altura já teria tirado.
Ao lado da porta tinha uma daquelas campainhas antigas que parecem tomada e têm um sininho desenhado na ponta. Toquei e fiquei ali aguardando, até ouvir passos de alguém vindo pelo corredor para abrir a porta.
Um senhor de aproximadamente 65 anos me atende. Bigode e cabelos tingidos de preto luminoso. Alguém que queria esconder a idade. Era o Sr. Edgar.
Digo boa tarde. Ele responde da mesma forma e me convida para entrar.
Enquanto ele ia à frente, passando pelo corredor apertado, eu vinha logo atrás me desviando das roupas no varal.
Por alguns milésimos de segundo, passou pela minha cabeça a imagem de Harvey Specter pegando um café em uma rua badalada de Nova Iorque, antes de ir para o seu escritório com paredes de blindex, enquanto eu estava mais para o Saul cavando o deserto de Albuquerque num calor de 41 graus.
— Me desculpe pela bagunça, Dr.
— Sem problemas, Sr. Edgar.
A casa era bem simples e já fomos entrando na cozinha. Tinha um fogão com algumas panelas e comida do almoço, uma mesa no canto e sobre ela um forro plástico com desenhos de frutas e legumes em cestas. Estava coberta de farelos de pão também.
Ficamos por ali. Enquanto o Sr. Edgar estava de pé tentando tirar os farelos de pão da mesa e tentando organizar rapidamente a bagunça – como se fosse possível -, me sentei na única cadeira da cozinha e coloquei minha Samsonite no colo.
De onde viria os 50% prometidos a quem encarasse a causa? Dos honorários contratuais é que não era. Eu dependia da causa ganha mesmo.
— O Dr. aceita um café?
— Não precisa se incomodar –, eu logo respondi.
Essa foi a deixa que abriu espaço para um senhor aposentado e sozinho me contar sua história.
Ouvi atentamente enquanto ele divagava sobre suas aventuras joviais, seus casamentos frustrados, as economias juntadas e como perdeu tudo depois que o banco lhe “roubou”. Nesse momento, Edgar se dirige ao que parecia o quarto e volta com uma caixa grande de papelão.
De lá, saem alguns maços de papel e logo entendi ser a fotocópia de um processo: o processo contra o banco.
O arquivo físico tinha tranquilamente 400 páginas. Cheio de orelhas e encardido, o Sr. Edgar conseguia abrir em locais precisos, deixando claro não só o seu inconformismo, mas também que muita gente – e, porque não, outros advogados – já tinha ouvido pacientemente a sua história.
Era perceptível o sentimento de injustiça por parte dele.
— Posso dar uma olhada?
— Por favor –, disse ele.
O número do processo nos fazia regressar ao ano de 1999.
Esperto, já fui a passos largos para as últimas páginas, procurando a certidão de trânsito em julgado.
Ali estava ela. Datada e assinada.
Logo percebi que não se tratava de uma “causa ganha”. Muito pelo contrário.
— Temos que entrar com o processo, Dr. Já falei com outro advogado e ele está vendo também.
— O senhor falou com outro advogado? –, pergunto com um leve sentimento de alívio.
— Sim. Ele ficou de me dar uma resposta.
Era tudo o que eu precisava.
— Nesse caso, Sr. Edgar, é melhor aguardar a resposta do outro advogado.
Apoiei a alça da minha velha Samsonite no meu ombro esquerdo e, desviando-me daquelas roupas penduradas no varal, não via a hora de entrar no carro e ligar o ar-condicionado.
___________________________________
Por Pedro Custódio
Fonte: pedrocustodio.adv.br
Eu não esperava uma conversa sobre o resultado de algum jogo do campeonato brasileiro. Meu sogro não curte futebol e ele sabe que eu também não. Nossas conversas, geralmente, são sobre as trilhas na Serra da Canastra, cachoeiras, bichos do cerrado e fatos antigos de tempos que eu não vivi, mas que gosto de saber.
A ligação foi rápida. Era apenas para me dizer que um conhecido tinha uma “causa ganha” e estava disposto a dividir com o advogado que a “encarasse” 50% do – possível – valor a ser devolvido.
Puff, pensei. “Causa ganha”. “Encarasse”…
Existe um abismo que separa esse negócio de “causa ganha” e a realidade. Sempre há uma outra versão. Existe um longo caminho até o ganho de causa. Além disso, a causa pode ser perdida mesmo.
Ele me passou o telefone do “possível cliente”.
— “Sr. Edgar” –, complementou meu sogro.
Anotei tudo.
Na segunda-feira de manhã, organizei algumas coisas e liguei para o Sr. Edgar. Com uma voz um pouco rouca, como de quem tinha acabado de acordar, ele disse que poderíamos nos encontrar no período da tarde.
Confirmei o endereço: Rua E, nº 22, Bairro Princesa Isabel.
Peguei meu notebook, alguns papéis em branco, uma caneta esferográfica azul e coloquei na minha pasta. Uma Samsonite preta, de terceira mão e desbotada. Era o que eu tinha.
Nessa época eu já me perguntava se precisava de muita coisa além disso, na verdade.
Rua E, nº 22.
Uma ladeira, um muro alto e o número “22” escrito à mão. Logo abaixo, um pouco borrado, consegui ler a palavra “fundos”. Fazia 37 graus, às 14h em ponto. Eu vestia um terno preto e sapatos por engraxar. Pensei em colocar uma gravata também, mas a essa altura já teria tirado.
Ao lado da porta tinha uma daquelas campainhas antigas que parecem tomada e têm um sininho desenhado na ponta. Toquei e fiquei ali aguardando, até ouvir passos de alguém vindo pelo corredor para abrir a porta.
Um senhor de aproximadamente 65 anos me atende. Bigode e cabelos tingidos de preto luminoso. Alguém que queria esconder a idade. Era o Sr. Edgar.
Digo boa tarde. Ele responde da mesma forma e me convida para entrar.
Enquanto ele ia à frente, passando pelo corredor apertado, eu vinha logo atrás me desviando das roupas no varal.
Por alguns milésimos de segundo, passou pela minha cabeça a imagem de Harvey Specter pegando um café em uma rua badalada de Nova Iorque, antes de ir para o seu escritório com paredes de blindex, enquanto eu estava mais para o Saul cavando o deserto de Albuquerque num calor de 41 graus.
— Me desculpe pela bagunça, Dr.
— Sem problemas, Sr. Edgar.
A casa era bem simples e já fomos entrando na cozinha. Tinha um fogão com algumas panelas e comida do almoço, uma mesa no canto e sobre ela um forro plástico com desenhos de frutas e legumes em cestas. Estava coberta de farelos de pão também.
Ficamos por ali. Enquanto o Sr. Edgar estava de pé tentando tirar os farelos de pão da mesa e tentando organizar rapidamente a bagunça – como se fosse possível -, me sentei na única cadeira da cozinha e coloquei minha Samsonite no colo.
De onde viria os 50% prometidos a quem encarasse a causa? Dos honorários contratuais é que não era. Eu dependia da causa ganha mesmo.
— O Dr. aceita um café?
— Não precisa se incomodar –, eu logo respondi.
Essa foi a deixa que abriu espaço para um senhor aposentado e sozinho me contar sua história.
Ouvi atentamente enquanto ele divagava sobre suas aventuras joviais, seus casamentos frustrados, as economias juntadas e como perdeu tudo depois que o banco lhe “roubou”. Nesse momento, Edgar se dirige ao que parecia o quarto e volta com uma caixa grande de papelão.
De lá, saem alguns maços de papel e logo entendi ser a fotocópia de um processo: o processo contra o banco.
O arquivo físico tinha tranquilamente 400 páginas. Cheio de orelhas e encardido, o Sr. Edgar conseguia abrir em locais precisos, deixando claro não só o seu inconformismo, mas também que muita gente – e, porque não, outros advogados – já tinha ouvido pacientemente a sua história.
Era perceptível o sentimento de injustiça por parte dele.
— Posso dar uma olhada?
— Por favor –, disse ele.
O número do processo nos fazia regressar ao ano de 1999.
Esperto, já fui a passos largos para as últimas páginas, procurando a certidão de trânsito em julgado.
Ali estava ela. Datada e assinada.
Logo percebi que não se tratava de uma “causa ganha”. Muito pelo contrário.
— Temos que entrar com o processo, Dr. Já falei com outro advogado e ele está vendo também.
— O senhor falou com outro advogado? –, pergunto com um leve sentimento de alívio.
— Sim. Ele ficou de me dar uma resposta.
Era tudo o que eu precisava.
— Nesse caso, Sr. Edgar, é melhor aguardar a resposta do outro advogado.
Apoiei a alça da minha velha Samsonite no meu ombro esquerdo e, desviando-me daquelas roupas penduradas no varal, não via a hora de entrar no carro e ligar o ar-condicionado.
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Por Pedro Custódio
Fonte: pedrocustodio.adv.br
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