Desde o lançamento do Innocence Project (1990) e, sobretudo, após a publicação do relatório do Conselho Nacional de Pesquisa da Academia Nacional de Ciências dos EUA, Strengthening Forensic Science in the United States: A Path Forward (2009), o problema da fiabilidade das provas periciais vem sendo enfrentado por autoridades e pesquisadores da área. Infelizmente, tais estudos têm tido pouca ressonância na realidade brasileira: de forma generalizada, não só ignoramos esse tipo de discussão em nossas faculdades e cursos de formação profissional, mas carecemos de uma investigação própria capaz de revelar dados sobre os erros cometidos em nosso próprio sistema de justiça criminal.
Em face desse quadro preocupante, a coluna de hoje pretende contribuir para o avanço dessa discussão no Brasil olhando para algumas reflexões de teóricos da common law. A razão para essa mirada ao estrangeiro é simples: as regras de exclusão de provas em geral e as discussões sobre a fiabilidade da prova pericial em particular encontram maior desenvolvimento nos países que pertencem a essa tradição jurídica. O que oferecemos a seguir é uma contribuição teórico-normativa impulsionada pela seguinte pergunta: seria desejável a previsão de standards ou critérios de admissibilidade da prova pericial baseados na análise de sua fiabilidade epistêmica?2
Antes de enfrentar essa pergunta, vale a pena esclarecer algumas questões.
1. Existe uma tensão entre o conceito epistêmico de fiabilidade e o conceito jurídico de admissibilidade. A fiabilidade, que constitui um corolário da relevância, não é um conceito de natureza binária — não é uma questão de sim ou não, mas escalonada. Algumas ciências ou práticas forenses são mais fiáveis que outras; e nenhuma delas — nem mesmo o exame de DNA3 — pode ser considerada absolutamente fiável. Porém, embora a fiabilidade seja uma questão de grau, o juízo de admissibilidade é sempre categórico. Ou o juiz admite a prova, ou a rejeita. Isso significa que o direito precisa estipular algum limiar em uma linha de continuidade; isto é, uma espécie de “sarrafo” que deve ser ultrapassado para que a prova seja admitida4.
2. A definição de um standard de admissibilidade de provas periciais nos tribunais é uma escolha política, de modo que o standard jurídico pode ou não se aproximar do standard de aceitação da teoria ou método em questão em sua respectiva comunidade científica. Como sempre, a escolha deve levar em consideração os riscos que o direito quer assumir: se toleramos mais a ideia de que culpados possam escapar da punição estatal ou a possibilidade de que inocentes sejam condenados por crimes que não cometeram5. Nas palavras de F. Schauer: “o que é bom o suficiente para a ciência pode ainda não ser bom o suficiente para o direito, e o que não é bom o suficiente para a ciência pode às vezes ser bom o suficiente para o direito”6.
3. O direito brasileiro está conformado por um ethos que dificulta qualquer tipo de controle epistêmico da prova na fase de admissibilidade. A figura do juiz porteiro da boa ciência no contexto jurídico brasileiro não costuma ser muito bem recebida. Qualquer proposta de atribuir ao juiz o poder de controlar a entrada dos meios de prova acende a justa preocupação de que possamos rapidamente escorregar para uma concepção inquisitorial do processo criminal. Além disso, a liberdade probatória é vista como um corolário do direito à ampla defesa. Com base no inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal e no artigo 157 do Código de Processo Penal, a doutrina penal brasileira sustenta que uma prova pode ser excluída somente em caso de ilicitude ou ilegitimidade (ambos subsumidos sob a ideia de prova inadmissível)7. Também existe previsão normativa de indeferimento de provas “irrelevantes, impertinentes e protelatórias” a serem produzidas em audiência. Contudo, não existe qualquer texto normativo que diretamente prescreva a consideração da fiabilidade da prova pericial em particular para fins de sua admissão. Este ethos inclusivista tende a transferir a discussão da fiabilidade para o momento posterior da valoração do conjunto probatório.
4. Os problemas da fiabilidade da prova pericial que aqui nos ocupam guardam relação com a discussão mais recente sobre a cadeia de custódia das provas. Ambos se preocupam em questionar “a prova sobre a prova” — como sublinha Geraldo Prado8. Contudo, a falta de fiabilidade da prova pericial não pode ser reduzida a problemas relativos à cadeia de custódia. Existem preocupações anteriores que dizem respeito à própria fragilidade científica de certos ramos das ciências forenses. Também há preocupações relativas à forma como os peritos têm interpretado os achados e comunicado suas conclusões, independentemente da cadeia de custódia. Com as alterações no Código de Processo Penal promovidas pela Lei 13.964/2019, temos um fundamento normativo para a inadmissibilidade da prova pericial por quebra da cadeia de custódia9. O mesmo, contudo, não pode ser dito em relação às outras causas aqui mencionadas que também comprometem a qualidade epistêmica da prova pericial. Talvez alguns dos subsídios fundamentais que, antes da alteração legislativa, eram oferecidos para argumentar a favor da exclusão de prova por quebra da cadeia de custódia possam ser aqui aproveitados10.
Cientes dos desafios acima, vamos enfrentar a questão proposta. É desejável a estipulação de um sarrafo para a admissibilidade de provas periciais com base em critérios de fiabilidade epistêmica? Se sim, onde o colocaríamos? Deveria ser o mesmo para acusação e defesa?
Michael Pardo é contrário à ideia11. Para ele, o foco não deve estar nos critérios de admissibilidade da prova pericial, mas no momento posterior de valoração e determinação da suficiência probatória. Pardo aposta em modificações no nível macro da doutrina probatória, isto é, no desenvolvimento de uma teoria jurídica mais robusta em matéria de suficiência probatória. Para ele, provas de baixa fiabilidade podem ter algum grau de relevância para a hipótese da acusação ou da defesa; e, do ponto de vista epistemológico, quanto mais prova relevante for admitida no processo, mais robusto será o conjunto de elementos probatórios sobre o qual se fundamentará a decisão sobre os fatos. Esse é um argumento antigo, de Jeremy Bentham12.
Mas a discussão sobre um standard para decidir a respeito da admissibilidade da prova pericial pode depender de elementos contextuais. Para Edmond e Roach, é importante controlar a admissibilidade da prova pericial em razão de sua fiabilidade, e a altura do sarrafo pode variar em função de quem a introduz ou dela se beneficia13. A abordagem é assimétrica entre a acusação e a defesa. Deveríamos estar menos dispostos a admitir uma prova pericial oferecida para suportar uma alegação favorável à hipótese condenatória (quando comparada à alegação que favorece a hipótese de inocência).
O raciocínio é coerente. Mesmo que a admitíssemos nos processos criminais, a prova pericial de baixa ou nula fiabilidade epistêmica não seria suficiente para a condenação, considerando o alto standard probatório exigido para superar a presunção de inocência. Por outro lado, ela poderia servir para levantar uma dúvida razoável em relação à autoria do crime. O emprego de um standard mais oneroso para o Estado justifica-se em razão de princípios de justiça criminal e de um conjunto de estudos empíricos sobre como juízes e jurados erram quando decidem casos que envolvem prova pericial. Os dados sobre condenações errôneas baseadas em provas periciais falsas e enganosas são evidências que justificam a adoção de critérios contextualmente mais rígidos. Além disso, dizem os autores, os mecanismos pensados para controlar a qualidade das provas (e.g. standards probatórios, ônus da prova e contraditório) não parecem funcionar tão bem quanto pensamos.
Outro ponto merece atenção. Se vamos implementar um standard de admissibilidade da prova pericial baseado em critérios que indiquem a sua fiabilidade, parece razoável supor que a sua estipulação deve considerar o que diz a comunidade científica. Afinal, o direito não pode ser um ambiente de tomada de decisão alheio ao mundo. O que os cientistas dizem importa para todos nós. Contudo, para Schauer, é preciso pensar também de maneira realista e comparada. Quais as alternativas? Por exemplo, quando Schauer discute a admissibilidade dos exames de imagem de ressonância magnética funcional (fMRI) para fins de detecção da mentira nos depoimentos e testemunhos, ele oferece o seguinte contraponto: se não admitirmos esse meio de prova porque a comunidade científica relevante afirma que a sua fiabilidade epistêmica é ainda muito baixa, acabaremos por recorrer a outras teorias, métodos e técnicas ainda menos fiáveis para se determinar a veracidade do que é dito pelas partes e testemunhas. Juízes e jurados inevitavelmente tomariam decisões baseadas em mitos e teorias psicológicas já superadas — e.g., de que certos comportamentos, como nervosismo, sudorese e falta de contato ocular, seriam bons indicadores da mentira14. (Atenção: este é um ponto bastante controvertido, e aqui estamos apenas expondo um argumento).
Nesse embate entre inclusivistas15 e exclusivistas, não podemos ignorar um ponto: a opção por excluir provas ruins deve ser sopesada quando refletimos sobre a estrutura da justificação epistêmica. A forma como uma prova interage com outras pode ser crucial para a justificação da hipótese fática:
Se as cortes decidirem, com relação a cada expert, que o seu testemunho deve ser admitido, no todo ou em parte, elas podem falhar em reconhecer que os testemunhos de diversos experts poderiam, em alguns casos, se encaixar em uma história explanatória para dar mais credibilidade a um fato do que seria possível com o testemunho de um só isoladamente16.
Para a filósofa Susan Haack, a exclusão de provas periciais que isoladamente consideradas têm baixa fiabilidade epistêmica pode ser uma escolha problemática para a fundamentação racional da decisão. Como ocorre no jogo de palavras-cruzadas — a metáfora que Haack sugere para capturar o processo de justificação epistêmica —, nossa confiança em determinada hipótese poderá ser fortalecida quando respondemos a outras que com ela se intercruzam. Esse argumento, chamado de “metodologia do peso da prova”, foi sustentado pela parte autora do famoso caso Joiner, que compõe a chamada Trilogia Daubert, um conjunto de precedentes de natureza civil decidido pela Suprema Corte dos EUA. Joiner era um caso de reparação de danos em que o autor apresentou diversos tipos de prova — estudos toxicológicos, epidemiológicos, in vitro e in vivo — que conjuntamente seriam suficientes para provar a relação de causalidade.
O assunto não poderá ser encerrado neste espaço. Não é trivial a escolha entre as duas estratégias, exclusivista e inclusivista. O próprio argumento de Haack contrário a um modelo atomístico de justificação é mais complexo do que pode parecer, pois ela apresenta concessões. Mas há, sim, uma posição que podemos fixar desde logo: provas periciais cuja fiabilidade seja extremamente baixa ou nula não devem ser admitidas no processo, não importa a quem beneficiem. Esse parece ser o caso dos exames de locais de incêndio e das marcas de mordedura, que já colocaram muitos inocentes atrás das grades17.
O argumento deste artigo foi desenvolvido no capítulo de livro “Condenados pela ciência: a confiabilidade das provas periciais”, que escrevemos em coautoria e se encontra no prelo. A publicação está prevista para este ano.
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1 Todos esses dados podem ser facilmente obtidos na página da internet do The National Registry of Exonerations (http://www.law.umich.edu/special/exoneration/Pages/about.aspxs).
2 Esse parece ter sido o caminho tomado pela Suprema Corte dos EUA desde o julgamento do caso Daubert.
3 As conclusões podem estar comprometidas por problemas na cadeia de custódia ou na interpretação de amostras misturadas (DROR, Itiel E.; HAMPIKIAN, Greg. “Subjectivity and bias in forensic DNA mixture interpretation”. Science & Justice, vol. 51, núm. 4, 2011, pp. 204-208).
4 A analogia com o “sarrafo” é emprestada do artigo de Janaina Matida e Alexandre Morais da Rosa publicado aqui na Coluna Limite Penal da Conjur.
5 É a famosa razão de William Blackstone (jurista do século XVIII): “É melhor que dez culpados escapem do que um inocente sofrer.”
6 SCHAUER, Frederick. “Neuroscience, Lie-Detection, and the Law”. Trends in Cognitive Sciences, vol. 14, núm. 3, 2020, pp. 101-103.
7 Ver, por todos, LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16ª edição. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 392.
8 V. PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019 (cap. 5).
9 Não há convergência doutrinária em relação a este ponto. Enquanto Geraldo Prado entende que a quebra da cadeia de custódia torna “ilícita a prova remanescente” (idem, p. 128), Gustavo Badaró discorda: o problema deve ser no momento da valoração (BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson B. (orgs.). Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017).
10 PRADO, op.cit.
11 PARDO, Michael. “Evidence Theory and the NAS Report on Forensic Science”. Utah Law Review, num. 2, 2010, pp. 237-283.
12 BENTHAM, Jeremy. The Rationale of Judicial Evidence: Specially Applied to English Practice, Volume 1. London: Hunt and Clark, 1827, p. 1. No direito brasileiro, posição análoga é defendida por Gustavo Badaró em relação à quebra da cadeia de custódia (op. cit.).
13 EDMOND, Gary; ROACH, Kent. “A Contextual Approach to the Admissibility of the State’s Forensic Science and Medical Evidence”. University of Toronto Law Journal, num. 61, 2011, pp. 343-409.
14 SCHAUER, op.cit.
15 V. FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 70.
16 HAACK, Susan. Epistemology Legalized: Or, Truth, Justice, and the American Way. In: Evidence Matters: Science, Proof, and Truth in the Law. New York: Cambridge University Press, 2014, p. 43.
17 V. BEECHER-MONAS, Erica. “Reality Bites: The Illusion of Science in Bite-Mark Evidence”. Cardozo Law Review, n. 30, 2009. Outro exemplo interessante, mas que foge das provas periciais, é o das cartas psicografadas. Para uma discussão mais ampla sobre o tema, vide nosso artigo publicado aqui na Conjur.
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Rachel Herdy é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).
Juliana Melo Dias é mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).
Fonte: Conjur
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