A Lei do Superendividamento e a cultura do consumo (ir)responsável

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Em pesquisa realizada em junho de 2021 pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), constatou-se que cerca de 69,7% das famílias do país estão endividadas.

De acordo com os dados divulgados periodicamente pelo mesmo instituto, esse percentual tem aumentando consecutivamente nos últimos dez anos e, embora a pesquisa recente mostre uma desaceleração no aumento de famílias inadimplentes se comparado ao mesmo mês de 2020, a taxa daquelas que não têm condições de arcar com seus encargos atingiu 10,8%. Um aumento de 0,3 ponto percentual em relação a maio de 2021.

Os dados coletados ainda revelam que a porcentagem das famílias que recebem até dez salários mínimos e não possuem condições de pagar suas dívidas sem comprometer sua subsistência chegou 13% do total.

Entre as causas de endividamento, as despesas contraídas com cartão de crédito chegaram a 81,8%, número muito superior a outras operações de crédito tradicionais, como carnês (17,5%), financiamento de carro (11,9%) e financiamento de casa (9,1%).

Soma-se a esse contexto outros fatores como a fragilidade do mercado de trabalho, a elevação da inflação e o pagamento reduzido do auxílio emergencial, o que dificulta ainda mais o adimplemento dessas dívidas, principalmente para as famílias consideradas de baixa renda que já fazem um esforço significativo para manter seu padrão de vida.

É diante desse cenário que foi sancionada recentemente a Lei nº 14.181/21, que altera e acrescenta algumas disposições no Código de Defesa do Consumidor, visando a prevenir e conter do chamado superendividamento.

A lei classifica o superendividamento como a impossibilidade manifesta de o consumidor de boa-fé pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial (artigo 54-A, §1º, CDC).

Para isso, a lei opera de duas formas: a primeira voltada à proteção da pessoa que não consegue saldar seus débitos sem comprometer seu sustento; e a segunda focada em criar instrumentos para conter os abusos na oferta de crédito.

Assim, além de novas disposições sobre direitos básicos (artigo 6º, XI, XII e XIII, CDC) e cláusulas abusivas (artigo 51, XVII e XVIII, CDC), a nova lei também trouxe dois novos capítulos.

O primeiro capítulo, em síntese, é destinado a promover medidas de prevenção e tratamento do superendividamento, impondo obrigações ao fornecedor de crédito, principalmente no momento da oferta. Agora, o fornecedor deve informar o consumidor sobre os reais riscos da contratação, bem como sobre o custo efetivo total, as taxas de juros, tanto mensais como as moratórias, o número de prestações, o prazo de validade da oferta e cientificar o consumidor de seu direito de liquidar antecipadamente o débito sem nenhum ônus, de acordo com o artigo 52, §2º, do CDC.

O capítulo também impõe aos fornecedores mais responsabilidade no momento da oferta do crédito, de modo que estes estarão impedidos de realizar novos empréstimos sem consultar previamente os serviços de proteção ao crédito e sem avaliar a situação financeira do consumidor (artigo 54-B, CDC). Ademais, o assédio e a pressão sobre os consumidores, principalmente os considerados idosos, analfabetos ou em estado de vulnerabilidade agravada, foram expressamente vedadas (artigo 54-C, IV, CDC).

Já no segundo capítulo, voltado para a conciliação do superendividamento, a lei cria um mecanismo similar ao da recuperação judicial, de modo que o consumidor superendividado, através de pedido dirigido ao juiz do processo, poderá apresentar um plano de repactuação de dívidas perante os credores, com prazo máximo para pagamento de cinco anos, preservando-se o mínimo existencial e demais garantias legais (artigo 104-A, CDC).

Todos esses pontos são importantes para vislumbrar a nova cultura de consumo que a lei pretende instigar e refletem as atuais bases principiológicas que fomentam não só a prevenção e tratamento do superendividamento, mas também o incentivo à educação financeira e ambiental dos consumidores (artigo 4º, IX, CDC).

O princípio do crédito responsável, que decorre do princípio constitucional da proteção do consumidor (artigo 5º, XXXII, da CF) e se encontra implícito nas novas disposições legais, é o guia para tutelar os consumidores diante dessas modificações estruturais da sociedade, além de ser o responsável por propagar valores de eticidade e responsabilização nas relações de consumo [1].

Através do princípio do crédito responsável, os fornecedores de crédito devem adotar condutas compatíveis com a realização sustentável do contrato, adequando a oferta de acordo com a capacidade econômica do consumidor e consentindo-o dos riscos que essas operações envolvem [2].

Da mesma forma, cabe ao poder público exercer uma fiscalização mais eficiente para coibir práticas abusivas, bem como adequar seus atos normativos e políticas públicas voltadas ao consumo sustentável. Além disso, é dever dos consumidores adotar uma postura mais prudente ao contrair dívidas, visando a não extrapolar sua capacidade de pagamento.

Desse modo, espera-se que as novas disposições legais desestimulem a cultura do endividamento e promovam uma melhoria na educação financeira da população, obstando comportamentos temerários e irresponsáveis, além de preservar o mínimo existencial e evitar a exclusão social do consumidor.
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[1] CARQUI, Vagner Bruno Caparelli. Princípio do crédito responsável: evitabilidade do superendividamento e promoção da pessoa humana na sociedade de consumo. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Gradução em Direito na Universidade Federal de Uberlândia. Orientadora Profa. Keila Pacheco Ferreira, 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/18854/1/PrincipioCreditoReponsavel.pdf>. pág. 134.

[2] Ibidem. pág. 195.
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Matheus Catarino Camparim é advogado, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
Fonte: Conjur

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