Com esse entendimento, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu multar em 1% do valor da causa originária a parte autora de um mandado de segurança para atacar acórdão do próprio tribunal. O julgamento foi encerrado em 19 de maio e o acórdão, publicado na terça-feira (3/8).
Previsto pela Constituição e disciplinado na Lei 12.016/2009, o mandado de segurança é remédio para proteger direito líquido e certo não amparado por Habeas Corpus ou habeas data, quando o autor do ato atacado for autoridade pública ou agente no exercício de atribuições do Poder Público.
O Judiciário admite que seja usado contra decisões jurisdicionais em hipóteses excepcionalíssimas. E a jurisprudência exige, para isso, flagrante teratologia, risco de e dano real irreparável e a completa ausência de outro recurso capaz de suspender os efeitos do ato atacado.
No caso julgado pela Corte Especial, o MS atacou acórdão da 4ª Turma do STJ, que negou provimento ao recurso especial ajuizado contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo em ação anulatória de arrematação. A parte se valeu de todos os recursos possíveis antes de, derrotada, recorrer ao mandado de segurança, sustentando que houve decisão teratológica.
A ideia de aplicar multa por litigância de má-fé foi dada pelo ministro Luís Felipe Salomão, que, ao pedir vista dos autos em novembro de 2020, destacou a importância de a Corte Especial fixar com clareza a admissibilidade e os contornos do uso do mandado de segurança nessa situação.
"A questão da teratologia imbrica com a da subjetividade. É uma questão delicada, às vezes envolve cassar a decisão de outro colega. A gente viu há pouco tempo a repercussão que isso tem", disse, na ocasião.
Relator, o ministro Herman Benjamin incorporou a sugestão ao voto e foi seguido por maioria.
Ficou vencido o ministro Raul Araújo, que votou por afastar a multa. Destacou que o MS é ação constitucional regida por procedimento próprio, aplicando-se a ela apenas subsidiariamente as normas do Código de Processo Civil. "Dentre essas, não me parece cabível a regra que trata de litigância de má-fé", concluiu.
Efeito sistêmico
O voto-vista do ministro Salomão, que especificamente aprofunda a discussão, indica como o esse precedente da Corte Especial tem efeito potencialmente sistêmico para o Judiciário.Isso porque a utilização desmedida do mandado de segurança gera não apenas o abarrotamento dos tribunais, mas abre espaço para manobras processuais.
O caso julgado foi definido como "um exemplo do manejo abusivo do mandado de segurança contra decisão de órgão desta Corte Superior". O acórdão da 4ª Turma atacado por MS não apenas aplicou jurisprudência pacífica como confirmou todas as outras decisões exaradas pelas instâncias ordinárias.
Já o mandado de segurança ajuizado se volta contra a decisão do TJ-SP e apenas ataca o acórdão da 4ª Turma a partir do 72º item da petição inicial. Longe de indicar qualquer teratologia, é usado como substituto de recurso ou mesmo de ação rescisória. Essa situação, inclusive, não é incomum.
Levantamento da Coordenadoria de Governança de Dados e Informações Estatísticas do STJ indicou que, entre 2016 e 2020, o STJ recebeu 576 mandados de segurança atacando decisões de órgãos do próprio tribunal. A segurança foi concedida em apenas 8 deles, o que representa 1,39% dos casos.
"Por isso, a meu ver, o manejo infundado e, portanto, abusivo do mandado de segurança incide, por analogia, na conduta prevista no artigo 80, VI, do CPC e, assim, rende ensejo à aplicação de multa por litigância de má-fé, nos termos do artigo 81 do CPC", concluiu.
Crises recorrentes
Previsto pela primeira vez no Brasil na Constituição de 1934, o mandado de segurança tem processos cíclicos de utilização exagerada no Judiciário, uma ocorrência ligada diretamente às constantes alterações processuais da legislação brasileira.Na sua criação, por exemplo, visava preencher a lacuna aberta pela restrição do uso do Habeas Corpus. A primeira lei para disciplinar o tema surgiu em 1951 (Lei 1.533), e desde então a jurisprudência e, em especial, o Supremo Tribunal Federal, pelo viés constitucional, vêm agindo para delimitar seu uso.
"De fato, toda vez que o legislador almejou diminuir os meios de impugnação das decisões judiciais, fatalmente houve um incremento na utilização da garantia constitucional do mandado de segurança", apontou o ministro Luís Felipe Salomão.
E ainda cabe mais mudança. O voto prevê que o Código de Processo Civil de 2015, ao restringir as hipóteses de interposição do agravo de instrumento e criar um rol taxativo das matérias para as quais é cabível, pode causar um novo aumento de mandados de segurança para impugnação imediata de decisões.
As crises são paralelas ao que ocorre, por exemplo, com o Habeas Corpus. Hoje, seu uso extensivo para atacar quaisquer ilegalidades em processos criminais é criticado por magistrados. No STJ, ministros apontam que o volume de HCs ameaça, inclusive, inviabilizar o trabalho nas turmas, por prejudicar a análise de teses.
Especialista em Direito Processual Civil e integrante da 5ª Turma, que julga matéria penal, o ministro Ribeiro Dantas explicou à ConJur em entrevista em 2019 que a atual inflação de Habeas Corpus pode ser comparável ao que o Judiciário viveu entre a década de 1970 e 1980 com o mandado de segurança.
"Como foi que se resolveu o problema? Não foi com leis que restringissem o mandado de segurança. Ele voltou ao seu leito natural quando as leis processuais para procedimentos foram melhoradas. Quando se criou, por exemplo, a tutela antecipada", pontuou.
Clique aqui para ler o acórdão
MS 25.474
Por Danilo Vital
Fonte: Conjur
Postar um comentário
Agradecemos pelo seu comentário!